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Brasil

Alvo de Bolsonaro, Paulo Freire é citado em tese de coronel presidente do ICMBio

Dissertação de mestrado de Homero Cerqueira cita ainda filósofo Foucault, criticado por Olavo de Carvalho, para falar sobre a relação entre polícia e direitos humanos
Coronel Homero de Giorge Cerqueira, que era comandante da PM Ambiental de São Paulo, foi indicado para a presidência do ICMBio Foto: Divulgação
Coronel Homero de Giorge Cerqueira, que era comandante da PM Ambiental de São Paulo, foi indicado para a presidência do ICMBio Foto: Divulgação

RIO — Para o presidente Jair Bolsonaro , o educador Paulo Freire (1921-1997) criou "ensinamentos marxistas" que influenciam o desenvolvimento de alunos. Já o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), conhecido por sua crítica ao autoritarismo, é rotulado por Olavo de Carvalho , ideólogo de direita e guru bolsonarista, como "frequentador de clubes de sadomasoquismo".

No meio acadêmico, porém, o novo presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o coronel Homero Cerqueira, usou os pensadores criticados pelo novo governo para explicar a prática policial sob a perspectiva dos direitos humanos.

Cerqueira abre sua dissertação de mestrado em Educação pela PUC-SP, intitulada "A disciplina militar em sala de aula", com uma citação a Paulo Freire : "Educadores e educandos não podem, na verdade, escapar à rigorosidade ética".

Em outra menção, cita Freire: "Estou absolutamente convencido de que a educação , como prática da liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade".

O novo presidente do ICMBio incentiva o uso da filosofia de Freire para argumentar como chegar à " educação universal": "Com criação, reelaboração e renovação haverá provavelmente uma melhoria cotidiana por meio da educação . Por conseguinte, a matéria que é universal constrói o conhecimento do aluno, este aprender a fazer, a viver, a ser e a comandar os agentes sociais na preservação da ordem pública".

'O próprio presidente sabe da minha formação'

Procurado por O GLOBO, o coronel da polícia militar de São Paulo afirmou que é, "antes de tudo, um militar" e que sua atuação "não será ideológica, mas sim técnica". Ele ressaltou que tem mais de três décadas de atuação na polícia ambiental de São Paulo.

Questionado se achava que sua produção acadêmica o tornaria alvo de críticas ideológicas dentro do governo, por citar nomes frequentemente criticados por Bolsonaro , ele disse achar improvável.

— Não vejo problema. O próprio presidente sabe da minha formação. Mas vamos deixar eu tomar posse primeiro.

Por não ter conexão com sua carreira, o coronel conta que fez este mestrado por "desejo pessoal" e que em nada afeta sua futura atuação no ICMBio. Ele prevê que sua posse será oficializada no Diário Oficial da União apenas na próxima semana.

A militarização de escolas é uma pauta do governo Bolsonaro . Em sua dissertação, Cerqueira critica esta estratégia de ensino. Questionado se isso não demonstra que ele está em dissonância com políticas do governo que irá compor, ele desconversou.

— Sabe que eu não tinha pensado nisso até agora? Vou pensar sobre.

Polícia comunitária

É um discurso completamente diferente ao de Bolsonaro , crítico ao trabalho de Freire — segundo o presidente, o educador formava "militantes políticos". Logo após ser eleito, Bolsonaro acusou Freire de estar por trás do "lixo marxista" presente nas instituições de ensino.

Mas Foucault é o principal astro do trabalho de Cerqueira, sendo citado mais de 30 vezes nas 233 páginas da dissertação de mestrado. O novo presidente do ICMBio acredita que os ensinamentos do filósofo francês sobre autoritarismo mostram como a PM, instituição responsável pela ordem pública, evoluiu para ter como molde os direitos humanos.

Cerqueira escreveu, no resumo de seu trabalho: "Ao abordar os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana no trato do policial militar com o cidadão, evidencia-se o equívoco do autoritarismo na formação oficial militar, e ressalta-se a ideia de uma polícia comunitária como forma de contribuição na resolução dos conflitos sociais".

O coronel da PM cita o francês ao afirmar que "o poder não é central nem estatal; existem outros poderes e saberes (...) O poder está na sociedade, em cada um de nós", e por isso não pode ser caracterizado apenas por sua "função repressiva".

Bolsonaro , porém, já manifestou diversas vezes o apoio à violência policial. No início do mês, parabenizou policiais da PM paulista por matarem 11 criminosos em uma tentativa de assalto a dois bancos no município de Guararema, em São Paulo. Seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-RJ), também aplaudiu a operação, afirmando que a polícia antecipou a ida dos assaltantes "para o inferno".

Crise no ICMBio

O ICMBio vive uma crise em sua cúpula desde a semana passada, quando o então presidente Adalberto Eberhard pediu demissão, na segunda-feira (15). Dias antes, o ministro do Meio Ambiente, Roberto Salles, mandou abrir um processo administrativo contra servidores do órgão que não compareceram a um evento em Tavares (RS), em que ambos estavam presentes. Os agentes, porém, não haviam sido convidados para a agenda.

Dois dias depois, Cerqueira foi convidado para o posto. Nesta quarta-feira, porém, antes de sua posse, a diretoria do ICMBio pediu demissão. Deixaram seus cargos o presidente interino, Régis Lima; o diretor de criação e manejo de unidades de conservação, Luiz Felipe de Luca de Souza; e o diretor de ações socioambientais, Gabriel Henrique Lui. Já Leandro Mello Frota, diretor de planejamento, ficou sabendo de sua demissão pela conta de Salles no Twitter. Todos serão substituídos por policiais militares.