Brasil Celina

'Na África, uma mulher vê mais chances de futuro se perder um braço do que um seio', diz médica sobre estigma do câncer de mama

Oncologista Yehoda Martei, que nasceu no Gana, deu forte depoimento durante o maior congresso da área no mundo. Segundo ela, todos têm uma opinião para dar quando se trata de mastectomia: 'de quem é o peito, afinal?', questiona
Médica destaca que existe uma "percepção social da funcionalidade do seio de uma mulher" Foto: Arte de Nina Millen
Médica destaca que existe uma "percepção social da funcionalidade do seio de uma mulher" Foto: Arte de Nina Millen

CHICAGO - Eu fico perplexa que em partes da África subsaariana, quando uma mulher é diagnosticada com câncer de mama e ela tem a opção de fazer uma mastectomia, todos na sociedade têm uma opinião sobre isso. Estão incluídos aí o marido que ameaça deixar o casamento se ela mutilar seu corpo, e outras mulheres que a julgam e tendem a vê-la como menos mulher após a cirurgia.

Então a pergunta que faço é a seguinte: de quem é o peito, afinal?

Em 2008, eu conheci uma jovem diagnosticada com câncer de mama no Gana que me disse que, assim que recebeu o diagnóstico, recusou uma mastectomia porque acreditava que isso diminuiria sua capacidade de despertar desejo sexual em possíveis pretendentes ao casamento.

A médica Yehoda Martei participou do congresso anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco), este mês em Chicago Foto: David DeBalko / Divulgação
A médica Yehoda Martei participou do congresso anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco), este mês em Chicago Foto: David DeBalko / Divulgação

Segundo ela, “é mais provável que uma mulher com uma perna ou um braço encontre um marido do que uma mulher com só um seio”, e por isso ela preferia morrer com dois seios do que viver com um.

Eu fiquei chocada porque acreditava que lutar pela sobrevivência superava todo o resto. E tenho vergonha de dizer que também a julguei, refletindo sobre que mulher no século XXI colocaria o desejo de casamento e a atração sexual acima de defender sua própria saúde.

“Já ouvi um homem dizer: 'Eu nunca permitiria que minha mulher cortasse fora seu seio. Não é possível porque um seio é meu, e o outro é para o meu bebê'.”

Yehoda Martei
Oncologista

Dez anos depois, no ano passado, eu assistia a eventos de conscientização do câncer de mama no Gana quando vi um homem sendo entrevistado por uma importante rede de televisão sobre suas crenças sobre o câncer de mama e seu tratamento cirúrgico. Ele, então, disse em Twi, que é uma língua comum no Gana: "Eu nunca permitiria que minha mulher cortasse fora seu seio. Não é possível porque um seio é meu, e o outro é para o meu bebê".

Por mais grosseiro que pareça, tal fala destaca a percepção social da funcionalidade do seio de uma mulher. Também ressalta a complexidade da prestação de cuidados oncológicos no Gana e em outros países da África subsariana. Essa complexidade é também o que me inspira a entender melhor algumas dessas barreiras, a fim de identificar maneiras de melhorar o fornecimento de terapia oncológica de alta qualidade nessa região.

Então, o que devemos fazer?

Acredito que o primeiro passo é o reconhecimento dessas complexas dimensões socioculturais que influenciam a tomada de decisão das pessoas nos países em que praticamos a oncologia global. Também precisamos perceber que as mulheres nessas regiões não têm culpa, e que esse estigma autoimposto é um subproduto de uma percepção social mais sistêmica da sexualidade na África subsaariana.

Como sociedade, atribuímos um prêmio tão alto ao casamento, de modo que, quando uma jovem é diagnosticada com câncer de mama no Gana, ela se pergunta como a continuidade do tratamento cirúrgico pode comprometer suas chances de atingir essa meta social — o casamento. E, para as mulheres casadas, há a apreensão adicional de não apenas perder o marido, mas potencialmente perder apoio financeiro para seus filhos, se o parceiro for embora.

“Existe uma percepção social da funcionalidade do seio de uma mulher.”

Yehoda Martei
Oncologista

A África Subsaariana ainda é muito dominada por homens. E embora as campanhas educacionais sobre o câncer de mama tenham sido direcionadas tradicionalmente e apropriadamente a mulheres nessa região, isso precisa mudar. Precisamos envolver homens e líderes influentes em nossa sociedade. Isso inclui líderes tradicionais, líderes comunitários e líderes religiosos, que possam usar sua posição para começar a mudar algumas dessas normas e crenças.

Vai ser fácil? Não. Na verdade, eu olho em volta e percebo que a luta pelos direitos à saúde das mulheres continua a ser a luta dessa nossa era. Por isso, não tenho a ilusão de que vai ser fácil, mas é uma luta necessária.

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Outras soluções devem abordar a imagem corporal. Em muitas partes da África subsaariana, mais de 50% das mulheres diagnosticadas com câncer de mama têm menos de 50 anos. Além disso, a opção cirúrgica mais comum disponível nessa região é uma mastectomia sem reconstrução. Então você pode imaginar o fardo psicológico adicional para mulheres jovens diagnosticadas nessas sociedades.

Assim, uma solução óbvia pode ser a reconstrução da mama, mas é necessário haver uma boa pesquisa para garantir que ela seja viável, culturalmente aceitável e realmente acessível para as mulheres jovens dessas regiões. Na Universidade da Pensilvânia (EUA), onde eu trabalho, fizemos parcerias com organizações locais para doar próteses de mama para sobreviventes de câncer de mama nos países com os quais trabalhamos.

“A opção cirúrgica mais comum disponível nessa região é uma mastectomia sem reconstrução. Então você pode imaginar o fardo psicológico adicional para mulheres jovens diagnosticadas nessas sociedades.”

Yehoda Martei
Oncologista

Como oncologista global, eu vejo que esta tem sido uma experiência humilhante — tenho me dado conta do quão pouco eu sabia de antemão sobre como a doença interage com a sociedade. E olha que se trata da sociedade em que cresci e vivi até os 18 anos. Essa experiência me mostrou também que o sucesso da oncologia global é mais do que simplesmente transportar o que sabemos que funcionou nos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento. Porque isso nem sempre funciona.

Há uma necessidade crítica de pesquisa qualitativa e métodos antropológicos para entender alguns desses comportamentos e crenças. Há também a necessidade de implementação de pesquisas científicas para estudar como nós devemos adaptar alguns desses tratamentos e diretrizes que sabemos que funcionam muito bem, uma vez que eles são culturalmente sensíveis e têm recursos específicos para as áreas onde prestamos assistência.

“O sucesso da oncologia global é mais do que simplesmente transportar o que sabemos que funcionou nos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento. Porque isso nem sempre funciona.”

Yehoda Martei
Oncologista

Finalmente, para a maioria de vocês, que não praticam oncologia global, acho que isso é relevante também. Porque nós vivemos em um tempo em que o mundo chegou até nós. E assim, independentemente de onde você está, temos o privilégio de tratar um grupo diversificado e multicultural de pacientes. E é importante entender em uma consulta clínica que, para algumas dessas mulheres, a experiência do câncer de mama envolve elementos subjetivos e socioculturais que afetam a maneira como elas se percebem. Eu acredito que, se pudermos entender, mesmo que seja apenas uma fração disso, isso nos coloca em uma posição melhor para oferecer um tratamento mais amplo aos pacientes que tratamos.

* Yehoda Martei é médica oncologista que nasceu no Gana, na África, e hoje trabalha na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. Ela apresentou o relato aqui transcrito durante uma sessão do congresso da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco, na sigla em inglês), o maior do mundo na área, realizado entre 31 de maio e 4 de junho em Chicago, nos EUA. A sessão se chama "Asco voices".

* A repórter viajou ao congresso da Asco a convite da Janssen