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'No Brasil, a expectativa é que a discussão sobre o aborto se dê no Judiciário', diz Debora Diniz

Uma das principais pesquisadoras do tema no país, antropóloga avalia que aprovacão do direito ao aborto na Argentina poderá impactar toda América Latina
Debora Diniz pesquisa o aborto no Brasil há 25 anos Foto: Arquivo Pessoal
Debora Diniz pesquisa o aborto no Brasil há 25 anos Foto: Arquivo Pessoal

RIO — O Senado argentino aprovou, na madrugada desta quarta-feira (30), a legalização do aborto no país , com a possibilidade de interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana. Para a antropóloga, professora da Universidade de Brasília (UNB) Debora Diniz, uma das principais pesquisadoras do tema no Brasil, a decisão poderá impactar o debate sobre o aborto em toda a América Latina, inclusive no Brasil.

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A fundadora do Instituto Anis de Bioética crê que a decisão histórica no país vizinho possa apressar a apreciação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de matéria relativa ao tema, embora ele não esteja na pauta da Corte no primeiro semestre de 2021. A Argentina, diz, mostrou que a discussão do direito ao aborto faz parte intrínseca das democracias contemporâneas.

"Nós somos muito parecidos com os argentinos, vivemos uma ditadura militar, temos presença forte da Igreja Católica. E eles mostaram ser possível tratar do aborto e cuidar das mulheres pobres na sua integralidade, não deixar que elas morram", afirmou.

As mulheres agora têm o direito de decidir sobre o aborto na Argentina. A mudança legal no país vizinho irá influenciar o debate sobre o tema no Brasil?

A decisão da Argentina tem possibilidades de projeção de impacto no Brasil e em toda geopolítica da América Latina. É o maior país da região a ter legalizado o aborto. A descriminalização inclui o aborto universal e gratuito em todo serviço publico. Ela se dá por um longo processo de debate da sociedade civil argentina com o Legislativo, incluindo a apresentação de 13 projetos de lei e a defesa do tema na campanha eleitoral do presidente Alberto Fernández.

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Como a decisão pode influenciar especificamente o debate no Brasil?

No Mercosul, Uruguai e Argentina descriminalizaram o aborto e o Chile vive o processo de elaboração de uma nova Constituição (em que o tema será tratado). São países com tradições religiosa e militar muito semelhantes às nossas. A Argentina mostrou ser possível separar religião, profissão privada de fé, da cidadania, como pontuam as mulheres argentinas. E isso mesmo com o Papa Francisco, que é argentino, sendo muito próximo do presidente Fernández. No Brasil, há ação à espera de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema e ela trata justamente da linguagem constitucional usada na Argentina: discute-se a proteção da vida das mulheres e a garantia da cidadania delas.

O Senado argentino também sancionou projeto de lei que cria o "seguro de mil dias", com o objetivo de fortalecer o atendimento à mulher durante a gravidez e os cuidados dos filhos nos primeiros anos de vida...

Sim. A Argentina nos mostrou ser possível tratar do direito ao aborto e ao mesmo tempo cuidar do direito das mulheres a maternar. É  possível cuidar do momento em que as mulheres conseguem ter filhos — na hora que elas decidirem — e não permitir que mulheres pobres morram por aborto. O exemplo da Argentina pode influenciar a sociedade brasileira a compreender que é possível fazer política e enfrentar questões consideradas difíceis, inclusive com o potencial de comprometer a carreira dos políticos. A Agentina nos mostra que é possível enfrentar a questão do aborto e manter popularidade.

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A senhora pontuou que a decisão na Argentina se deu após debate extenso na sociedade civil. O mesmo acontece hoje  no Brasil?

O debate sobre o direito ao aborto sempre teve força no Brasil. Mas na Argentina ele passou por um dos poderes da Republica, o Legislativo. No Brasil, a questão vem sendo enfrentada prioritariamente nos tribunais, assim como na Colômbia e no Chile. É preciso pressionar o STF para que se julgue a ação referente ao aborto, que lá chegou há dois anos,justamente por força da sociedade civil organizada. Esse é um debate permanente do movimento das mulheres e dos trabalhadores de saúde no Brasil.

A decisão da Argentina mudará a estratégia do movimento feminista no Brasil em relação ao aborto?

Vai fortalecer. A "onda verde" (a cor foi o símbolo dos defensores do direito ao aborto na Argentina) tem potencial de contágio, a começar pela bandana verde, que já é usada também aqui. Mas a expectativa no Brasil é que a questão do aborto seja enfrentada muito mais nos tribunais do que no Congresso Nacional. Há agora sim uma pressão, até mesmo pela situação na região das fronteiras (com a Argentina e o Uruguai, onde o direito ao aborto foi determinado), para que o STF decida (logo) sobre a ação que está há dois anos a espera de apreciação.

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Por que há essa expectativa?

É dever do STF a revisão de uma lei de 1940, como é o Código Penal, que criminaliza o aborto. Quando se faz a leitura de que (se aprecie o direito ao aborto) ou no Congresso ou no Judiciário, pressupõe-se que apenas uma forma é legítima de garantia da democracia, da igualdade, de valores republicanos. E o que também aprendemos com a Argentina é que na Câmara dos Deputados a principal força para a aprovação do projeto de lei veio dos deputados e deputadas mais jovens. É preciso uma mudança estrutural na política brasileira, com mais juventude,  mais mulheres. E não repetir que "a sociedade brasileira é conservadora". Nós somos muito parecidos com os argentinos, vivemos uma ditadura militar, temos presença forte da Igreja Católica. Não poderia haver cenário mais inóspito para a aprovação da lei, o Papa é argentino, a Argentina vive uma crise econômica sem precedentes. Mas a transformação da política mostrou que é possível tratar de temas que, no Brasil, são abordados hoje com ameaças a quem ter cargo eletivo, até com ameaças às vidas das pessoas. A Argentina mostrou que a discussão sobre o direito ao aborto faz parte da democracia.