Brasil Conte algo que não sei

'Com a capoeira, aprendi a pôr tudo de cabeça para baixo', diz integrante da The Royal Shakespeare Company, no Reino Unido

Greg Hicks veio ao Brasil para dar oficinas no Fórum Shakespeare
Greg Hicks. Integrante da The Royal Shakespeare Company, no Reino Unido Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
Greg Hicks. Integrante da The Royal Shakespeare Company, no Reino Unido Foto: Guito Moreto / Agência O Globo

RIO - "Estou com 61 anos e passei toda minha vida na The Royal Shakespeare Company. Fiz muitos trabalhos clássicos: Tchékhov, Shakespeare e outros. Há um ano e meio eu me casei com uma espanhola e passei a morar em Madri. Tenho que confiar mais nessa aproximação com Brasil e Espanha"

Conte algo que não sei.

Eu não vejo mais meu futuro criativo na Inglaterra. É uma sensação um tanto assustadora.

Mas onde estaria seu futuro criativo?

Há muitas possibilidades, inclusive o Brasil, ou talvez Madri. Eu me interesso bastante pelo corpo psicossomático do ator, então acho que foi por isso que busquei a capoeira. Acho que sou o único ator inglês que usa a capoeira como método.

Como a capoeira o ajuda em seu trabalho?

Na capoeira, você vive um momento, não há nada predeterminado. Precisa ter um senso de alerta ligado sempre. Mas o principal é que você precisa aprender como mentir. A capoeira é a mentira permanente, e a mentira é central para um ator. Com a capoeira, aprendi a pôr tudo de cabeça para baixo, inclusive mudou a maneira como eu olho para o texto. Eu passei a tratar com o imprevisível, o que é muito libertador para um inglês.

Mas isso funciona num teatro tradicional como a Royal Shakespeare?

Sim, tem muito a ver com Shakespeare. Na capoeira, você constantemente muda as direções dos movimentos. Shakespeare fez o mesmo em algumas de suas peças. Ele criava diálogos que pareciam querer dizer uma coisa, mas na verdade queriam dizer outra.

O que falta para esse seu desejo de se aproximar mais de culturas latinas se transformar numa realidade?

O problema é que isso veio muito tarde na minha vida. Fico nervoso com essas descobertas, com o sentimento de não saber o que vem adiante. Eu volto sempre para a Inglaterra, para trabalhar, mas meu instinto me diz que minha expansão como ator virá do Brasil ou da Espanha.

Você nunca sabe como vai ser o amanhã.

Sim, você nunca sabe. Nas oficinas que fizemos com os atores e diretores cariocas, falamos muito sobre a diferença entre processo e produto. É claro que alguma coisa tem que ser mostrada para uma plateia. Shakespeare sempre foi muito elíptico, você pensa que tem alguma coisa na mão, mas não tem. É libertador. As grandes peças, "Macbeth", "Rei Lear", "Hamlet", são assim.

No mundo atual, é difícil não pensar no produto.

O capitalismo é sempre sobre produtos. Eu dou o dinheiro, você tem quatro semanas e depois desse tempo você me mostra como é ser feliz. Você vende um produto que promete a felicidade. Mas não ensina de verdade como é o processo. Sócrates dizia que a dúvida, e não a certeza, é a origem da verdade. Mas uma pessoa mais conservadora vai dizer que esse papo é uma besteira anarquista de esquerda.

É uma conversa que tem muito a ver com alguém que pensa em abandonar um modo de pensar inglês.

Vou lhe dizer mais uma coisa que você não sabe. Meu pai tem 103 anos. Ele foi piloto da Segunda Guerra Mundial. Suas histórias são incríveis. Depois, se tornou empresário, foi dono de boate. Mas ele nunca quis que eu fosse ator. Quando cheguei ao Brasil, ele me ligou e perguntou onde eu estava. Eu disse "Rio de Janeiro". E ele imediatamente me perguntou a razão. E como explicar isso para ele? Como explicar para um senhor inglês de 103 anos que eu vim para o Rio falar de Shakespeare e capoeira?