Direitos Humanos
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Por Flávia Barbosa — Rio


Ana Flávia Magalhães Pinto, da Universidade de Brasília (UnB), é autora de “Escritos de liberdade” — Foto: Webert da Cruz
Ana Flávia Magalhães Pinto, da Universidade de Brasília (UnB), é autora de “Escritos de liberdade” — Foto: Webert da Cruz

Em “Escritos de liberdade”, livro de 2018, a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, da Universidade de Brasília (UnB), uma das articuladoras da Rede Nacional de Historiadores Negros, usa a trajetória de sete negros livres e letrados, de Luiz Gama, para muitos o maior dos abolicionistas, a Machado de Assis, com o objetivo de retratar a luta por liberdade e cidadania plena após a Independência.

Para a acadêmica, resgatar o protagonismo negro é mais do que passar 200 anos de História a limpo: trata-se de forçar o Brasil a fazer o exercício de se olhar no espelho e entender a dimensão e a persistência do racismo no tecido social. A luta negra, diz, não é anexa à História brasileira.

— Como disse a (historiadora) Beatriz Nascimento, é preciso fazer a reintegração de posse da contribuição negra ao Brasil — defende.

Cria do movimento negro, a brasiliense de 42 anos aponta o ensino da historiografia afro-brasileira nas escolas como medida transformadora.

— O Brasil aprendeu a ser racista. Temos que fazer o caminho contrário — afirma.

Que projeto de nação inauguramos em 1822, e como os negros foram inseridos nele?

O Brasil independente surgiu com o silêncio sobre a escravidão. Com o compromisso com a escravidão. Com uma hierarquização racial da população. Ora, o novo país nasceu com a maior comunidade de negros libertos do mundo e a primeira escolha de arcabouço legal da nação, a Constituinte de 1823, que dará na Carta de 1824, institucionalizou a exclusão e a incompatibilidade entre ser cidadão e ser negro, ser mulato. A primeira Lei negou cidadania a africanos e aos que nasceram libertos no Brasil. Também não combateu a reescravização. O Brasil não queria, e nunca quis, ser uma nação negra, ou multirracial. Nem em 1822, nem após a própria Abolição, em 1888.

A História que se aprende na escola nega o protagonismo aos negros como agentes da luta pela liberdade, como se a Abolição tivesse sido uma concessão assinada pela Princesa Isabel. Como se deu de fato a luta negra neste período?

O século XIX foi de lutas pela afirmação da liberdade negra, um período de “abolicionismos”. Na Regência, surgem os primeiros jornais negros, no Rio, em São Paulo, no Recife, como O Mulato, O Homem de Cor, O Brasil Pardo, O Criolinho, O Cabrito. Publicações que denunciaram a vigência do que denominavam “preconceito de cor”, de pessoas libertas que sofriam uma série de ações cotidianas de interdições ao direito de trabalhar, de ir e vir, da ocupação de cargos públicos, do acesso à educação e à saúde. Eles se opuseram ao empenho cerceador das elites e abriram caminho pruma ampla participação negra no ideário da cidadania brasileira. Há muitos relatos de indignação e de cobrança que influenciaram os debates abolicionistas. Havia uma intelectualidade negra, com figuras como Luiz Gama, e uma experiência de formação de associações de trabalhadores, de sociedades de caridade e de assistência e de irmandades religiosas, que fomentaram uma articulação de ideias, de resistência. Os espaços educacionais também: o Liceu de Artes e Ofício, as faculdades de Direito, de Medicina, a Escola Politécnica. Esses agentes entenderam que a Abolição era condição imprescindível não só pro fim da escravidão, mas também pra acabar com a insegurança e a suspeição de suas liberdades e o respeito às suas cidadanias.

Por que é fundamental entender o século XIX como período de incessante luta negra?

De um lado, pra se derrubar o mito de que em 1822 semeamos uma democracia racial: a elite nunca quis um Brasil negro, africano. E, de outro, pra jogar por terra a ideia de que os negros chegaram a 1888 sem saber o que fazer com a liberdade, o que gerou defasagem e autoexclusão. Também para não se tratar mais a Abolição como uma “anistia”: libertos os negros, fim de papo sobre interdições e exclusão, reescravização e escravização ilegal de crianças. Nunca ninguém foi punido. Há uma carta linda de uma negra liberta pedindo ao governo da Bahia que obrigue um ex-senhor a liberar seus três filhos, mantidos escravos ilegalmente (leia abaixo a carta na íntegra). A resposta? “Não há o que fazer”. Em 1888, as lutas apenas se renovam. Pois essa experiência de “anistia” naturaliza comportamentos de violência contra a cidadania. Que, aliás, se perpetuam até hoje, com os casos de trabalho análogo à escravidão, por exemplo, ou pelo tempo que se levou para se considerar racismo um crime. Ainda assim, quantas pessoas foram mesmo pra cadeia por racismo no Brasil?

O racismo estrutural se alimenta também do apagamento dessas experiências...

Seguimos tratando as infinitas denúncias de violação de direitos como casos isolados, negando a ancestralidade do racismo. O Brasil tentou inventar para si a imagem de que aqui não há racismo. E, se não há, as queixas da população negra seriam infundadas. Ou reflexo da disparidade de renda, o que exclui a cor como elemento central. Logo, elas não geram mobilização nacional que impacte na maneira como lemos o passado, vivemos o presente e projetamos o futuro.

Mesmo com todas as dificuldades, hoje a conversa sobre o racismo está nas casas das pessoas. É uma bela herança das lutas do século XIX?

(As conversas) nunca pararam! Se infiltraram na sociedade e foram construindo uma consciência coletiva. A gente pensa nos imigrantes italianos pra falar de sindicatos, mas a experiência associativa dos negros os precede: os estivadores e os tipógrafos eram quase todos negros. Escolas noturnas para crianças e adultos negros foram criadas pela comunidade, a primeira associação de domésticas foi fundada por Laudelina de Campos Melo, negra, nos anos 1930. Para além da cultura, os negros fizeram muita História nestes 200 anos. E temos a década de 1970...

Quando o movimento negro ganha força e visibilidade inéditos...

Sim, pela primeira vez organizações como o Movimento Negro Unificado conseguem elaborar claramente a necessidade de se desmontar a ideia de democracia racial e cordialidade. Há uma lente de aumento sobre um problema que gerações vinham enfrentando em suas múltiplas dimensões: acesso ao trabalho, à terra, à saúde, à educação, aos espaços de poder. E você passa a disputar a pauta. O movimento negro chegou aos anos 1970 e 1980 disposto a disputar a forma como o Brasil olha para si. E, a partir daí, foi um rastilho de pólvora.

Avançamos muito desde a Constituição de 1988, incluindo a criação do SUS, com 70% de seus “clientes” negros, os direitos das domésticas, as cotas e seus ganhos. Pensando vinte anos à frente, o que precisamos fazer pra acelerar as mudanças e promover inclusão e igualdade?

As vidas negras são desvalorizadas no Brasil. Precisamos, mais do que aceitar, entender como chegamos historicamente a isso. O racismo é uma espécie de cultura. É preciso ter um compromisso real com a universalização de direitos. Precisamos, nos próximos vinte anos, trabalhar na articulação de políticas antirracistas. Não vamos alterar o jogo esperando que todos os espaços — a política, as empresas, as escolas — se moldem espontaneamente. Temos que ensinar o Brasil a ser antirracista, isso ser disciplina escolar. Ou dificilmente afetaremos o modo como se dará a formação de novos profissionais, novos formadores de opinião, novos políticos, novos ativistas. Temos que mostrar o negro para além da imagem da escravidão. E, para isso, precisamos mobilizar toda a sociedade.

Confira a carta na íntegra

Carta foi descoberta pelo pesquisador Itan Cruz Ramos   — Foto: Reprodução/Arquivo Público do Estado da Bahia
Carta foi descoberta pelo pesquisador Itan Cruz Ramos — Foto: Reprodução/Arquivo Público do Estado da Bahia

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor conselheiro Presidente da Província.

[Nota no canto esquerdo do documento:] Informe o Luiz Dr. Juiz de órfãos do termo de Inhambupe. Palácio da província da Bahia, 9 de outubro de 1888.

[Nota no canto direito do documento:] Nada há que providenciar em vista da informação.

Palácio da província da Bahia, [?] novembro de 1888.

Victoria, crioula, mãe de Victorina de doze anos, Eutropio de seis anos e Porcina de dez anos, querendo dar educação aos mesmos seus filhos, acontece que o ex-senhor da suplicante, o cidadão Marcos Leão Velloso, proprietário do engenho Coité, no termo de Inhambupe, não quer entregar os mesmos, tendo no canavial como se fossem escravos e sujeitos a castigos.

Acontece que indo a africana Felicidade, de nação nagô, pedir também os seus netos, os referidos filhos da suplicante, não quis o mesmo Marcos Leão Velloso entrega-los, prendendo-os na despensa da casa onde mora.

Sendo esse fato um ataque ao direito natural de liberdade à lei de 13 de maio que extinguiu a escravidão no império, vem a suplicante pedir providências a vossa excelência certa de que será atendida, mesmo porque quer educar seus filhos para serem úteis à pátria.

Assim

P. deferimento na forma requerida.

E. R. Mce.

Bahia, 8 de outubro de 1888

A rogo da suplicante por não saber ler e escrever.

Eduardo Carijé.

A carta, que encontra-se no Arquivo Público do Estado da Bahia, foi descoberta durante pesquisa do historiador Itan Cruz Ramos e enviada à reportagem por Ana Flávia Magalhães Pinto.

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