RIO — Aos 11 anos de idade, a bailarina Camila Prins iniciava o difícil processo de se identificar e se assumir enquanto uma mulher transexual, ao mesmo tempo em que já cultivava o sonho — um dos maiores, segundo ela, — de pisar no sambódromo como rainha de bateria. O grande amor pela folia ficava explícito nos festivais que religiosamente participava na infância, planejando as fantasias e produzindo-as com a ajuda da mãe. O preconceito, porém, fez com que Camila vivesse o Carnaval por duas décadas sem levantar a bandeira LGBTQIA+. Hoje, aos 43 anos, o medo foi embora e o sonho da bailarina foi realizado de forma histórica: ela se tornou a primeira rainha de bateria trans em uma escola do Grupo Especial de São Paulo pela Colorado do Brás.
— Minha paixão vem desde a infância, quando eu me vestia de menina e bordava as fantasias para ir para o baile. Mas eu sentia sempre os olhores tortos, como se aquele lugar não fosse pra mim. É muito bom, apesar das dificuldades, saber que hoje deixei de ser a vergonha da minha cidade e virei orgulho — afirma Camila, que é natural de Leme, cidade do interior de São Paulo.
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A bailarina desfilou na última sexta-feira, no Sambódromo do Anhembi. O samba-enredo da Colorado do Brás teve como tema "Carolina – A Cinderela Negra do Canindé", em homenagem à escritora Carolina Maria de Jesus. A rainha de bateria usou uma fantasia inspirada em vedetes, com mais de 800 penas de faisão e cristais, que vieram da Itália.
Camila Prins: Primeira rainha de bateria LGBTQIA+ do Grupo Especial de SP
A vasta representatividade LGBTQIA+ neste Carnaval ajudou a repercutir também a história da primeira rainha de bateria trans do Brasil. Eloína dos Leopardos, aos 31 anos, em 1976, foi convidada a desfilar pela tradicional Beija-Flor e, junto com a agremiação, saiu com os títulos de campeã nesse período.
Trajetória no samba
A carreira carnavalesca de Camila começou nos anos 2000, quando foi chamada para desfilar pela Camisa Verde e Branco. Primeira trans a integrar a escola, ela conseguiu crescer no samba, mas para isso precisou manter em sigilo que havia feito a transição de gênero. Ou seja, na avenida as pessoas pensavam que ela tinha nascido biologicamente uma mulher. Os olhares repressores da época fizeram com que apenas 18 anos depois ela se sentisse livre para se assumir enquanto LGBTQIA+.
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A decisão de mostrar ao mundo a representatividade trans no sambódromo se deu quando Camila conseguiu oficializar seu nome social e mudar seu gênero na certidão de nascimento. A conquista veio acompanhada do convite para ser a primeira Rainha Trans de Bateria do Carnaval da escola de samba Camisa Verde e Branco, do Grupo de Acesso.
Segundo a bailarina, a conquista representou a chance de mostrar ao Brasil, país que mais mata pessoas trans no mundo, que elas podem ocupar espaços que antes as eram negados. Depois da primeira oportunidade, Camila seguiu como rainha da escola em 2019, até conquistar espaço no Grupo Especial este ano.
— Cheguei na Camisa Verde e Branca porque reconheceram o meu trabalho como performer, com meus figurinos lindos. Em 2018 e 2019 eu fui rainha LGBTQIA+, e eu tenho muito orgulho de não ter me deixado abater pelas risadas que davam de mim. Todas as porradas que levei me deixaram mais fortes para desfilar confiante na sexta, porque eu sinto que o carnaval está abrindo alas para nós trans e travestis — diz a bailarina.
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Para Camila, o preconceito ao longo dos anos contra a população trans tem diminuído no Carnaval, graças à participação cada vez maior do grupo em todos os processos de produção da folia: da organização ao desfile.
— Estamos cada vez mais conseguindo nosso espaço. Antes de 2018 eu não era respeitada. Hoje eu sambo sorrindo, me sinto 100% uma rainha. O mundo está mais receptivo e agora temos que ocupar ainda mais esse espaço para que os nossos corpos não sejam vistos apenas de forma promíscua. Nós fazemos arte, inclusive no mundo do samba — afirmou a rainha da bateria.
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Graças ao Carnaval, Camila vive hoje na Suíça, onde se casou, e carrega títulos como musa da folia no exterior. Ela é a primeira rainha trans do Festival Internacional de Samba na cidade de Coburg, na Alemanha.
— Sou casada há 21 anos com um suíço. Foi pelo Carnaval que eu fui parar na Suíça. Sou um grande espelho para as meninas trans e para a comunidade por lá. Agora que conquistei meu sonho, quero que outras mulheres trans conquistem também — disse.