Em depoimento ao MP, ex-assessora de Flávio Bolsonaro confessa rachadinha e entrega de valores para Queiroz
Luiza Souza apresentou extratos bancários e disse ter sido orientada a devolver a maior parte do que recebia como salário; essa é a primeira vez que um ex-assessor admite o esquema ilegal no gabinete do parlamentar
Juliana Dal Piva, Bela Megale e Chico Otavio
04/11/2020 - 10:14
/ Atualizado em 04/11/2020 - 18:12
O senador Flávio Bolsonaro em seu gabinete Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
RIO - Um dos episódios finais antes de o Ministério Público do Rio
denunciar o senador Flávio Bolsonaro
por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa foi o depoimento de Luiza Sousa Paes, ex-assessora do antigo gabinete do "01" na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Nos detalhes do depoimento, feito em setembro e obtido pelo GLOBO, ela admitiu que nunca atuou como funcionária do filho do presidente Jair Bolsonaro e que também era obrigada a devolver mais de 90% do salário. Além disso, Luiza apresentou extratos bancários para comprovar que, entre 2011 e 2017, entregou por meio de depósitos e transferências cerca de R$ 160 mil para Fabrício Queiroz, ex-chefe da segurança de Flávio.
Luiza Sousa Paes foi nomeada entre os assessores de Flávio em 12 de agosto de 2011 e lá ficou até 11 de abril de 2012. Depois, foi nomeada em outros setores da Assembleia: na TV Alerj e no Departamento de Planos e Orçamento. Mesmo assim, durante todo esse período, Luiza relatou ao MP que teve que devolver a maior parte do que recebia como salário. O primeiro contracheque dela no período em que trabalhou no gabinete de Flávio tinha um valor bruto de R$ 4.966,45. Já o último, na TV Alerj, de R$ 5.264,44.
SIGILO RECUPERADO - Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) votaram, no dia 23 de fevereiro de 2021, a favor de um pedido da defesa do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) para anular a quebra de sigilo fiscal e bancário no caso das rachadinhas Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
MOVIMENTAÇÃO ATÍPICA - No fim de 2018, o Coaf apontou “movimentação atípica” de R$ 1,2 milhão, em 2016 e 2017, nas contas de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio. Oito assessores do ex-deputado estadual transferiram recursos a Queiroz em datas próximas ao pagamento de servidores da Alerj. Segundo o Coaf, Flávio recebeu 48 depósitos no valor de R$ 2 mil Foto: Arquivo pessoal
DENUNCIADO - O procurador-geral de Justiça do Rio, Eduardo Gussem, denunciou ao Tribunal de Justiça do Rio o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), seu ex-assessor Fabrício Queiroz e mais 15 pessoas pelos crimes de organização ciminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita no escândalo da rachadinha no antigo gabinete de Flávio na Alerj. A denúncia foi oferecida no dia 19 de outubro Foto: ADRIANO MACHADO / REUTERS
PRISÃO PREVENTIVA - Ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz foi preso na manhã de 18 de junho de 2020, em operação conjunta do Ministério Público do Rio de Janeiro e da Polícia Civil de São Paulo denominada Anjo – apelido de Frederick Wassef, advogado de Flávio e proprietário do imóvel onde Queiroz foi encontrado, em Atibaia, interior de São Paulo Foto: Nelson Almeida / AFP
PRISÃO DOMICILIAR - Com prisão temporária decretada em junho e dada como foragida, antes mesmo de ser encontrada, Márcia Aguiar, a mulher de Fabricio Queiroz foi beneficiada por decisão do pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, no dia 9 de julho, que determinou prisão domiciliar para o casal Foto: Betinho Casas Novas
ANJO - Queiroz foi localizado em imóvel de propriedade de Frederick Wassef (à esquerda), que esteve na posse de Fábio Farias como ministro das Comunicações na véspera da prisã preventiva de Queiroz. A operação do Ministério Público do Rio de Janeiro e Polícia Civil de São Paulo foi batizada de Anjo, apelido do advogado do senador Foto: Jorge William / Agência O Globo
A FILHA - Equipe do MP esteve, em 18 de dezembro de 2019, no condomínio onde morava Evelyn Queiroz, filha do ex-assessor de Flávio Bolsonaro, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
MUDANÇA NO COAF - No dia 8 de janeiro de 2020, presidente Bolsonaro transfere o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Economia para o Banco Central Foto: Jorge William / Agência O Globo
FALTA EM DEPOIMENTO - Após faltar a quatro depoimentos ao MP, alegando problemas de saúde, Queiroz afirmou, em dezembro, que a “movimentação atípica” revelada pelo Coaf teve origem na compra e venda de veículos. Em janeiro, Flávio Bolsonaro também não prestou depoimento, argumentando que iria marcar uma nova data após ter acesso ao caso Foto: Reprodução / SBT
PEDIDO NEGADO - Em janeiro, no recesso do STF, o ministro Luiz Fux suspendeu as investigações temporariamente, a pedido de Flávio. Em fevereiro, Marco Aurélio revogou a decisão e autorizou o MPRJ a continuar com a apuração. Flávio havia pedido a transferência do caso para o STF e a anulação de provas Foto: Jorge William / Agência O Globo
FLÁVIO E 26 - Em entrevista coletiva, o procurador-geral de Justiça do Rio, Eduardo Gussem, afirmou que Flávio Bolsonaro e os outros 26 deputados estaduais com assessores citados em relatório do Coaf são alvo de investigações na área cível Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil / Fernando Frazão / Agência Brasil
DEVOLVOLUÇÃO DE SALÁRIOS - Em março, Queiroz admitiu, em depoimento, que os valores recebidos por servidores do gabinete eram usados para “multiplicar a base eleitoral” de Flávio. Um ex-funcionário afirmou que repassava quase 60% do salário. O MP não encontrou evidências de que o fluxo bancário de Queiroz teve origem no comércio de carros Foto: Divulgação
QUEBRA DE SIGILO - A pedido do MP, o Tribunal de Justiça do Rio autorizou, em abril, a quebra de sigilo bancário de Flávio e de Queiroz para o período de janeiro de 2007 a dezembro de 2018. A medida se estende a seus respectivos familiares e a outros 88 ex-funcionários do gabinete do ex-deputado estadual, seus familiares e empresas relacionadas a eles Foto: Edilson Rodrigues / Agência Senado / 09-05-2019
DINHEIRO VIVO - Em fevereiro, Queiroz pagou em espécie R$ 64,58 mil por uma cirurgia ao hospital israelita Albert Einstein , em São Paulo. Ele foi internado na unidade em janeiro, quando retirou um câncer no cólon. Desde que recebeu alta, nunca se soube o valor das despesas pagas pelo procedimento Foto: Reprodução
DECISÃO LIMINAR - Em 20 de junho de 2019, a Justiça do Rio decidiu suspender a quebra de sigilo da empresa MCA Participação e Exportações e de um de seus sócios, Marcelo Cattaneo Adorno. Ambos integravam a lista dos 95 alvos da investigação do Caso Queiroz Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo
LIMINAR NEGADA - Em 26 de junho de 2019, o desembargador Antônio Carlos Nascimento Amado, do Tribunal de Justiça do Rio, negou pedido de Flávio para suspender a quebra de sigilo feita a pedido do MP-RJ Foto: Márcio Alves / Agência O Globo
NOVOS ALVOS - Em 28 de junho de 2019, a 27ª Vara Criminal do Rio autorizou a quebra dos sigilos de mais oito pessoas ligadas ao antigo gabinete de Flávio. A decisão ocorreu dois meses após a quebra dos silgilos de outras 86 pessoas e nove empresas ligadas ao antigo gabinete do filho do presidente. Foto: Jorge William / Agência O Globo
INVESTIGAÇÃO SUSPENSA - Em 16 de julho de 2019, o ministro Dias Toffoli, do STF, suspendeu processos judiciais em que dados bancários de investigados tenham sido compartilhados por órgãos de controle sem autorização da Justiça. Trata-se de resposta a um pedido de Flávio que pode beneficiá-lo no Caso Queiroz Foto: Agência Senado
QUEBRA DE SIGILO - Em 30 de setembro, Gilmar Mendes decidiu suspender processos envolvendo a quebra do sigilo de Flávio no caso Queiroz. A decisão de Gilmar atende ao pedido do advogado Frederick Wassef, defensor do filho do presidente. Wassef se reuniu dois dias antes com o presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada. A determinação do ministro beneficia apenas o senador do PSL. Foto: Fellipe Sampaio /SCO/STF
AVISO SOBRE OPERAÇÃO - Suplente de Flávio Bolsonaro no Senado, Paulo Marinho (PSDB-RJ) afirmou em entrevista à Folha de S.Paulo que, em 2018, o então deputado Flávio Bolsonaro foi informado de que havia uma operação policial em curso para desvendar o pagamento de propina a deputados na Assembleia Legislativa do Rio. E que num relatório do Coaf, o assessor de Flávio, Fabrício Queiroz, era citado. Foto: Guito Moreto / Agência O Globo
PRISÃO - Queiroz foi preso na manhã desta quinta, 18, em Atibaia, em São Paulo. De acordo com o Ministério Público de São Paulo, ele estava num imóvel do advogado Fred Wassef e deve ser levado para o Rio de Janeiro ainda nesta quinta. A TV Globo noticiou a prisão e a informação foi confirmada pelo Estadão. Foto: POLÍCIA CIVIL/REPRODUÇÃO VÍDEO/DIVULGAÇÃO
O ministro João Otávio Noronha, presidente do STJ, decidiu conceder prisão domiciliar a Fabrício Queiroz e à mulher dele, Márcia de Aguiar. O ministro considerou que a saída de Fabrício Queiroz da cadeia é justificada pelo estado de saúde dele, que o deixaria mais vulnerável à Covid-19. Segundo a defesa, Queiroz tem câncer e recentemente passou por uma cirurgia na próstata. Foto: Lucas Pricken / STJ
STJ SUSPENDE DENÚNCIA -O ministro João Otávio de Noronha, do STJ (Superior Tribunal de Justiça), suspendeu o trâmite da denúncia do MPRJ (Ministério Público do Rio) contra o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), o ex-assessor Fabrício Queiroz e outros 15 investigados no caso das rachadinhas, termo usado para apropriação de salário de servidores públicos. Foto: Jorge William / Agência O Globo
STF MANTÉM FORO - A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) negou pedido do Ministério Público (MP) para devolver para um juiz de primeira instância a investigação das "rachadinhas" envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), filho do presidente Jair Bolsonaro. Com isso, fica mantida a decisão do Tribunal de Justiça (TJ) estadual que deu foro privilegiado a Flávio. Foto: Reprodução
Em depoimento, ela disse que ficava apenas com R$ 700. Além disso, também tinha como obrigação devolver valores relativos a 13º, férias, vale-alimentação e até o valor recebido pela Receita Federal como restituição do imposto de renda. O valor do vale-alimentação, cerca de R$ 80 diariamente, era depositado diretamente nas contas dos funcionários da Alerj sem registro ou desconto no contracheque.
Luiza relatou ainda que conheceu outras pessoas que viviam situação semelhante a dela: nomeadas sem trabalhar. Citou as duas filhas mais velhas de Fabrício Queiroz, Nathália e Evelyn, e Sheila Vasconcellos, amiga da família do policial. Os dados financeiros das três, obtidos na investigação, já identificavam que elas tinham devolvido para Queiroz R$ 878,4 mil.
Por meio de nota, a defesa do senador diz que está impedida de comentar informações que estão em segredo de Justiça, mas que "pode afirmar que o parlamentar não cometeu qualquer irregularidade e que ele desconhece supostas operações financeiras entre ex-servidores da Alerj". "A defesa garante ainda que todas as contratações feitas pela Alerj, até onde o parlamentar tem conhecimento, seguiam as regras da assembleia legislativa. E que qualquer afirmação em contrário não passa de fantasia e ficção", conclui a nota.
A investigação sobre Luiza no caso começou a partir do relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), entregue pelo órgão ao Ministério Público Federal em 2018 e depois repassado ao MP-RJ. No documento, ela foi citada como uma dos oito assessores que fizeram transferências para Queiroz ao longo de 2016. Naquela ocasião, foi verificado apenas um valor de R$ 7.684,00 repassado.
Mas ela entregou mais dinheiro ao longo dos anos. A ex-assessora contou aos promotores como se dava o mecanismo. Ela diz que abriu uma conta na agência da Alerj e foi orientada a fazer todos os meses o saque do salário na boca do caixa, já que no caixa eletrônico há um limite para a retirada. Logo após pegar o dinheiro, ela já solicitava um depósito para a conta de Fabrício Queiroz - às vezes ela identificava o depositante, em outras não. O MP já tinha verificado um total de R$ 155 mil de depósitos dela para Queiroz a partir das quebras de sigilo bancário.
No depoimento ao MP, ela contou que se viu envolvida no esquema aos 19 anos, quando estava terminando a faculdade de Estatística. O pai dela, Fausto, era amigo de Fabrício Queiroz. As famílias chegaram a ser vizinhas de rua durante algum período em Oswaldo Cruz, na Zona Norte do Rio. Originalmente, segundo Luiza, quem queria um emprego era o pai dela. Luiza pediu posteriormente um estágio e Queiroz disse que iria ajudar.
Ela informou ao MP que só ficou ciente das condições da "rachadinha" no dia em que foi tomar posse, em 12 agosto de 2011. Nesse momento, Queiroz disse a ela na Alerj que a equipe do gabinete não tinha nenhuma tarefa para ela, mas quando tivesse avisaria. No entanto, a equipe de Flávio nunca pediu nenhum trabalho para ela. Luiza fez um acordo com o MP para devolver todos os valores que efetivamente embolsou desde 2011.
Cerca de um ano depois da nomeação, ela foi informada de que a vaga que ela tinha no gabinete seria extinta e que iria ser nomeada em outro cargo na própria Alerj. O esquema de devolução dos valores, porém, devia continuar da mesma maneira com Queiroz.
Luiza disse que não podia se manifestar devido ao sigilo do processo. Procurado, o advogado Caio Padilha, que atua na defesa de Luiza, informou por nota que a defesa "não foi notificada do oferecimento de denúncia e ainda desconhece seu conteúdo". Na nota, o defensor disse ainda que "nesse momento inaugural do processo sobre o qual recai sigilo, não é possível tecer qualquer tipo de comentário extra-autos sobre as fases da investigação".
Nos documentos da "Operação Anjo", o MP relatou um episódio de fraude no ponto da Alerj que envolvia um advogado e Luiza Paes. A situação foi descoberta após a apreensão do celular dela em dezembro do ano passado.
Em janeiro de 2019, o advogado Luiz Gustavo Botto Maia, que representa Flávio Bolsonaro em causas eleitorais, comunicou a Luiza, por mensagens, que ela tinha uma "pendência" para assinar na Alerj, referente a 2017. Posteriormente, Luisa relatou ao pai que Maia queria que ela preenchesse um ponto não assinado antes de apresentá-lo a jornalistas.
"Parece que os jornalistas começaram a perturbar o juízo dele, aí eles foram levantar o meu ponto e parece que tá faltando alguma informação. (...) Aí ele supostamente está querendo ajudar antes de entregar isso para jornalista. Só que eu não lembro de não ter assinado algum ponto, entendeu?", disse Luiza.
De acordo com as mensagens, Luiza só foi assinar o ponto na Alerj depois que o pai dela recebeu mensagens de Queiroz, no fim de janeiro de 2019, confirmando a orientação. Desse modo, ela foi orientada a assinar o ponto de anos posteriores, mesmo sem ter trabalhado, apenas como meio de responder à imprensa.
Depois disso, Maia, que estava atuando na assessoria parlamentar na Alerj, foi exonerado assim como Matheus Coutinho, outro funcionário da Casa envolvido no episódio.
A defesa do senador Flávio Bolsonaro não quis comentar o depoimeinto de Luiza. Sobre a denúncia afirmou, em nota, que já era esperada, mas não se sustenta.
"Dentre vícios processuais e erros de narrativa e matemáticos, a tese acusatória forjada contra o Senador Bolsonaro se mostra inviável, porque desprovida de qualquer indício de prova. Não passa de uma crônica macabra e mal engendrada. Acreditamos que sequer será recebida pelo Órgão Especial. Todos os defeitos de forma e de fundo da denúncia serão pontuados e rebatidos em documento próprio, a ser protocolizado tao logo a defesa seja notificada para tanto".
Já o advogado Paulo Emílio Catta Preta, da defesa de Fabrício Queiroz, informou por nota que "Luiza também é investigada - e agora acusada - sendo certo que o ordenamento legal lhe assegura o direito de apresentar qualquer versão que entenda como favorável à sua defesa, inclusive versão que não condiga com a realidade". O advogado disse ainda que "sua versão não tem nenhum valor probatório". Sobre a denúncia, informou que Queiroz irá provar sua inocência.