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'Estão descartando corpos, e não sepultando pessoas', diz presidente de associação do setor funerário

Lourival Panhozzi diz que, sem planejamento, cemitérios podem não absorver aumento de mortes no país
Enterro no cemitério São Luiz, na zona sul de São Paulo. Foto: Caio Guatelli / Agência O Globo
Enterro no cemitério São Luiz, na zona sul de São Paulo. Foto: Caio Guatelli / Agência O Globo

RIO — O crescimento acelerado de mortes pela Covid-19 no país levou o presidente da Associação de Empresas e Diretores do Setor Funerário (Abredif) a procurar as fabricantes de urnas de todo o país. Lourival Panhozzi pediu às principais empresas do setor que trabalhem com sua capacidade máxima, para evitar a falta de caixões para os sepultamentos. Segundo ele, o país tem um estoque de cerca de 100 mil urnas funerárias, mas serão necessárias outras cerca de 400 mil para absorver a estimativa de mortes crescente prevista para os próximos meses.

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Nesta semana, Panhozzi encaminhou ao governo de São Paulo uma requisição para que o funcionamento das fábricas de urnas funerárias seja considerada atividade essencial. De acordo com a Abredif, o estado é responsável pela produção de 50 a 60% das urnas funerárias usadas no país. A entidade também enviou uma recomendação às funerárias para que suspendam as férias de seus funcionários por 60 dias.

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Panhozzi diz querer evitar cenas como as que foram vistas em Manaus, no ano passado, com o enterro em valas comuns. Para isso, a associação lançará um portal em que cemitérios poderão cadastrar suas vagas e indicar a capacidade de sepultamento por hora. Corpos poderiam ser deslocados entre as instituições, sem a necessidade das valas comuns.

Ele lamenta que os velórios tenham sido suspensos e defende que, se organizados, poderiam ser feitos. "O que estamos fazendo hoje é indigno, com enterros em poucos minutos. Estão descartando corpos, e não sepultando pessoas."

O aumento expressivo no número de mortes já tem impacto nos cemitérios do país?

Sim, já estamos sentindo isso de forma generalizada. Algumas cidades mais, outras menos, mas todos sentimos. Nós tratamos de números absolutos de mortes, ou seja, não só Covid. No ano passado, o aumento de óbitos no Brasil foi na casa de 14%. Mesmo sem computar muitos óbitos que não foram ainda registrados, só em março de 2021, em comparação com o mesmo mês de 2020, já experimentamos um aumento na casa dos 30%. Para nós, é um aumento absurdo. Um aumento natural seria de no máximo 2% ao ano, ou seja, conforme cresce a população, cresce também o número de óbitos. Se estamos com 500 mil óbitos previstos no trimestre, são 5.555 óbitos por dia. A média normal era de 3.575 por dia, ou seja, estamos falando em 2.000 óbitos a mais por dia. É uma cidade média que desaparece por mês. É fora do padrão. Sem planejamento, não vamos suportar. Pedimos ao governo de São Paulo que inclua nas atividades essenciais as fábricas de urnas funerárias. Algumas cidades entram em lockdown, mas esses funcionários não podem parar. Se a fábrica de urna parar de produzir nesse momento, vamos ter dificuldades.

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Corremos o risco de enfrentar um colapso funerário, com escassez de caixões, por exemplo?

Seria prepotência minha dizer que não existe risco de faltar urna funerária. Na situação em que estamos, existe risco de tudo. Acredito que isso não vá acontecer no Brasil todo, mas pode acontecer pontualmente. Estamos falando com as fabricantes para tentar dimensionar isso. Pedimos aos que têm capacidade de produzir 110 mil urnas por mês que trabalhem para atingir essa capacidade, porque precisamos que produzam nos próximos três meses no mínimo 390 mil urnas, porque é esperado, para o próximo trimestre, um número absoluto de 500 mil mortes. Nós temos um estoque regulador de pouco mais de 100 mil urnas. Com esse aumento na produção, vamos conseguir adequar à necessidade. Só que a logística é complicada, porque estamos falando de um país continental, e 60% da produção está concentrada em São Paulo. Precisamos de planejamento com urgência.

As cenas que vimos em Manaus, de corpos sendo enterrados em valas comuns, podem se repetir no país?

Aqui, só houve aquele caos em Manaus, porque a prefeitura cometeu uma série de equívocos e não seguiu nossas recomendações. Por isso, houve vala comum, congestionamento de carros funerários. E muitos prefeitos embarcaram nessa corrida: o corpo de uma vítima da Covid deve ir direto do hospital para o cemitério. Mas isso está totalmente errado. Só pode ir para o cemitério quando estiver com o jazigo aberto.

Morei no Rio e administrei seis cemitérios, como o de Irajá e o de Inhaúma. No de Irajá, nós fazíamos quatro sepultamentos por hora, ou seja, 35 por dia. Nós dávamos conta. Mas e se todos chegassem ao mesmo tempo? Nós não daríamos conta. Em Manaus, foi exatamente isso. Os corpos se acumularam no hospital a noite toda, o médico só liberava o corpo pela manhã, e mandavam levar tudo correndo para o cemitério. Quando chegam 30, 40 corpos ao mesmo tempo, nenhum cemitério do mundo consegue sepultar. Nós tentamos falar isso para a prefeitura de lá.

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Que medidas podem ser tomadas para evitar um colapso funerário?

Estamos lançando um portal nesta semana em que todos os cemitérios podem se cadastrar e informar o número de vagas e a capacidade de sepultamento por hora. As funerárias vão poder acessar esse portal e saber sobre o cemitério, para fazer o planejamento. Não existe nenhum motivo para que o corpo seja sepultado correndo. O que estamos fazendo hoje é indigno, com enterros em poucos minutos. Estão descartando corpos, e não sepultando pessoas. Esses corpos merecem respeito. Podem ir, sim, para funerária, ficar numa sala lá e aguardar o dia seguinte para o momento de sepultamento.

Nosso portal vai mostrar que, se um cemitério está saturado, é possível procurar um cemitério na região, a alguns quilômetros de distância. É muito melhor sepultar um corpo num cemitério mais distante do que numa vala comum. A família desse sepultado pode, daqui a três anos, exumar o corpo e trazer os ossos de volta para um jazigo. Na vala comum, nunca mais se consegue identificar. Isso vai ter um dano psicológico que ainda não sabemos mensurar, algo como uma ferida que não fecha nunca.

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Quais são as recomendações sobre velórios?

A Organização Mundial da Saúde não recomenda a suspensão dos velórios, mas que sejam organizados, feitos com planejamento. O Brasil em grande parte suspendeu os velórios, porque se baseou em outros países que têm matrizes funerárias diferentes. Nos EUA, por exemplo, a operação funerária leva dias. Lá, as funerárias não têm estoque de urna. Elas trabalham com showroom, a família escolhe o modelo, e a funerária entra em contato com a fabricante, que faz a entrega no dia seguinte, e o funeral acontece no terceiro dia. Isso aparece muito nos filmes americanos. A operação no Brasil é diferente. Em 24 horas, fazemos tudo: ocorre o óbito, depois a liberação do corpo, o velório e o sepultamento.

Na pandemia, reduzimos isso para um ciclo de quatro horas, para que as capelas possam fazer mais velórios. E não estou falando um velório para toda a família, é claro. Mas vamos imaginar: a família mais restrita já tem convivência e, se alguém falecer, não tem problema essa mesma família ir para um velório. Até porque o corpo depois de acondicionado em dois invólucros lacrados e numa urna lacrada, ele não contamina absolutamente ninguém. Nenhum agente foi contaminado em razão de manipular o corpo, mas por outras razões.