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Após 150 anos, Convenção de Genebra ainda não é totalmente adotada pelos países

Desde a assinatura do tratado, mais de 50 milhões morreram em duas guerras mundiais, bombas atômicas foram disparadas e continuam os abusos em países como a Síria

Auschwitz. Crianças em campo de concentração em 1945
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Auschwitz. Crianças em campo de concentração em 1945 Foto: SUB / AP

“As ambulâncias e os hospitais militares serão reconhecidos como neutros e como tal protegidos e respeitados pelos beligerantes, durante todo o tempo em que neles houver doentes e feridos”. A frase faz parte do artigo 1º da Convenção de Genebra de 1864, primeiro tratado internacional que tentou estabelecer as “regras das guerras” e amenizar o sofrimento de quem estava na linha de frente dos combates. Cento e cinquenta anos depois, o Direito Internacional Humanitário (DIH) fundado em Genebra ainda não é totalmente respeitado. Desde a assinatura do tratado, a Humanidade testemunhou e ainda assiste aos maiores conflitos da História: foram mais de 50 milhões de mortos — sendo cerca de 60% deles civis — em duas guerras mundiais, além do uso de armas apocalípticas como a bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki e abusos em países como a Síria.

Falta de vontade da comunidade internacional e a ausência de adesão a um tribunal que julgue as violações dessas normas são apontadas por estudiosos como os grandes culpados pela pouca efetividade das leis humanitárias. Mas o consultor jurídico da delegação para o Cone Sul do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), Gabriel Valladares, acredita que há sim motivos para comemorar.

— É importante ressaltar que o Direito Internacional Humanitário serve para amenizar o sofrimento em meio à guerra, e só o fato de existirem essas normas já é algo a se comemorar: elas servem, antes, como dissuasão ao violador. Claro que ficamos em desconforto vendo tantas violações, mas, se não lutarmos para que essas leis reinem no futuro, vamos liberar toda a barbárie por trás da existência humana — afirmou.

ORIGEM DA BATALHA DE SOLFERINO

O “direito dos conflitos armados” é fruto da iniciativa de Henry Dunant, suíço considerado o primeiro correspondente de guerra do jornalismo moderno. Em 1859, Dunant foi enviado ao Norte da Itália para cobrir a Batalha de Solferino, travada entre Áustria, a Sardenha e a França de Napoleão III. Ao presenciar bombardeios a hospitais e execuções sumárias de feridos e prisioneiros, dentre outras atrocidades, o jornalista resolveu agir. Com o desejo de evitar o sofrimento que testemunhou, Dunant criou o CICV em 1863, uma organização voltada inicialmente para o atendimento de feridos e doentes em conflitos armados internacionais. Mas ele foi além. Em seu raciocínio, já que as guerras infelizmente eram parte da natureza humana, era necessário pelo menos regulamentá-las. O jornalista e ativista buscou então apoio das principais monarquias da Europa para que os próximos conflitos não contivessem as cenas que viu nos campos de Solferino.

Em agosto de 1864, representantes de 11 casas reais europeias e a Confederação Suíça se reuniram nos alpes suíços para assinar a “Convenção de Genebra Para a Melhoria das Condições dos Feridos e Enfermos das Forças Armadas em Campanha”, que estabeleceu normas humanitárias para militares alvejados durante as hostilidades.

Foi acertado ali que feridos de qualquer nacionalidade deveriam receber tratamento. Assim que os combates cessassem, era dever dos generais nos campos de batalha repatriá-los, mesmo que fossem para o lado rival. No cenário europeu do século XIX, em alta tensão por conta de conflitos como a Guerra da Crimeia e a rivalidade franco-prussiana, um tratado dessa natureza foi recebido como revolucionário.

Já em Haia, diplomatas lançaram novas regras para a solução pacífica de controvérsias entre os países nos anos de 1899 e 1907. Nesta última, o Brasil teve participação de destaque com o baiano Rui Barbosa, ex-ministro da Fazenda, que ganhou depois a alcunha “Águia de Haia”, por defender firmemente a igualdade de soberania entre os Estados.

As normas dos conflitos armados, no entanto, não se restringiram apenas às primeiras convenções. Também em Genebra, delegações de dezenas de nações se reuniram em 1906 e 1929 para estender os direitos a prisioneiros, civis e combatentes no mar.

REGRAS NÃO CONSEGUIRAM EVITAR SOFRIMENTO

Um dos segmentos mais regulamentados do Direito Internacional, o DIH até meados do século XX, por exemplo, já versava sobre o tratamento a ser dispensado não só a militares feridos ou doentes, como também a prisioneiros, civis e populações de territórios ocupados. Nesse período, quem fosse detido pelas forças inimigas em conflitos internacionais deveria receber tratamento digno — e não ser submetido a torturas para entregar informações privilegiadas — e ser repatriado assim que a guerra acabasse.

Após a Segunda Guerra Mundial e a tragédia do Holocausto, no entanto, ficou evidente que as normas não puderam evitar o sofrimento. Uma nova reunião foi convocada na Suíça, berço da neutralidade, onde mais de 50 nações concordaram em unificar todos os tratados anteriores de DIH, além de criar novas normas para a proteção de civis em tempos de guerra. Nascia a Convenção de Genebra de 1949.

Nela, princípios genéricos como o de evitar o “sofrimento desnecessário” ou mirar em “alvos não-militares” guiaram a maioria das leis, embora ainda dessem margem para outras violações. Era proibido, por exemplo, atacar escolas e hospitais. Mas se ficasse comprovado que esses lugares estivessem servindo como base de operações militares, o bombardeio era liberado. E, por essas regras, quem decidia e classificava o que seria “sofrimento desnecessário” ou “alvos não-militares” eram os próprios combatentes.

Isto porque, pelo princípio da complementariedade, inerente a quase todo o Direito Internacional, são os próprios Estados nacionais os responsáveis pelo cumprimento de regras dentro de suas fronteiras. Tribunais internacionais servem como instância superior.

Para o pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e professor do curso de pós-graduação Clio Internacional, Guilherme Bystronsk, a falta de reconhecimento dessas jurisdições por parte dos países é uma das razões para a impunidade das violações.

— Ao não aceitarem limitações mais incisivas em sua soberania, os Estados impedem frequentemente que o DIH seja implementado de maneira a garantir o respeito de suas normas — explica. — Como não existe um poder superior àquele dos Estados devido à anarquia que caracteriza a sociedade internacional, em muitas situações não existirá nenhum tribunal competente para julgar Estados que, provavelmente, seriam condenados caso o julgamento fosse autorizado — observa o pesquisador.

De fato, não existe tribunal internacional especializado em julgar eventuais crimes humanitários. O mais próximo disso foi a criação de tribunais penais internacionais ad hoc para a antiga Iugoslávia e para Ruanda no início dos anos 1990, que depois serviram de inspiração para a inauguração da Corte Penal Internacional, em 2002. A mais alta instância para julgamento de crimes contra a Humanidade, no entanto, não é reconhecida por países de peso no cenário internacional, como os Estados Unidos.

NOVAS TECNOLOGIAS E A RENOVAÇÃO DO DIREITO

Cento e cinquenta anos após a reunião pioneira em Genebra, especialistas creem que as normas de DIH precisam de renovação face às novas tecnologias e a conflitos contemporâneos. É o caso dos drones utilizados em guerras no Afeganistão ou da violência no Oriente Médio, onde Israel recentemente bombardeou um hospital na Faixa de Gaza afirmando que o Hamas usava o local como base de disparo de mísseis.

— Acredito que o principal desafio ao Direito Internacional Humanitário hoje seja lidar com tecnologias que mudam totalmente a forma como o conflito é travado. É preciso mudar para defender o mesmo princípio desde Genebra, que é a proteção da vida humana — diz o professor da USP Wagner Menezes, membro da Academia Brasileira de Direito Internacional.