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‘Canibalismo pode voltar a acontecer’, alerta zoólogo americano

Bill Schutt adverte que escassez de recursos levará a uma onda de humanos famintos

Múmia da cultura amazônica Wari batizada ‘A dama da máscara’, encontrada por arqueólogos peruanos: indígenas acreditavam que o cadáver é o lembrete mais poderoso da pessoa morta, então deve ser comido
Foto: Paolo Aguiar/EFE
Múmia da cultura amazônica Wari batizada ‘A dama da máscara’, encontrada por arqueólogos peruanos: indígenas acreditavam que o cadáver é o lembrete mais poderoso da pessoa morta, então deve ser comido Foto: Paolo Aguiar/EFE

RIO — O zoólogo e professor de biologia americano Bill Schutt, de 61 anos, admite que tem uma inclinação por animais estranhos e comportamentos macabros. A atração por estes temas é visível desde o início de sua carreira. Seu primeiro livro de não-ficção, “Banquete negro”, é sobre espécies de morcegos que se alimentam de sangue. Na mesma linha sombria, Schutt chegou aos estudos sobre canibalismo, e o resultado é um livro lançado em fevereiro com dois títulos: no Reino Unido, “Eat me: a natural and unnatural history of cannibalism” (“Me coma: uma história natural e não natural do canibalismo”); nos Estados Unidos, “Cannibalism: a perfectly natural history” (“Canibalismo: uma história perfeitamente natural”). O tema, segundo o autor, era ignorado por acadêmicos, que o consideravam um mero componente de comunidades não civilizadas até o início da década de 1980. Aos poucos, pesquisadores de diversas áreas voltaram sua atenção para o assunto. Historiadores analisaram a trajetória do canibalismo, ecologistas observaram em que situações este fenômeno se manifesta, cientistas sociais se debruçaram sobre o comportamento dos animais, do acasalamento aos cuidados com a prole.

Bill Schutt: fascínio por macabros Foto: Divulgação
Bill Schutt: fascínio por macabros Foto: Divulgação

O canibalismo é frequentemente definido como uma prática abominável de comunidades primitivas. Este retrato está correto?

Infelizmente isso foi (e até certo ponto ainda é) a percepção do público. Em algumas sociedades que não foram influenciadas pelo tabu perverso do Ocidente em relação ao canibalismo, este comportamento era um ritual, muitas vezes relacionado a práticas funerárias. Aquilo que muitos veem como “execrável” pode ser sagrado para outro grupo. Era assim, por exemplo, com a tribo amazônica Wari. As acusações de canibalismo foram comumente usadas para justificar o comportamento abominável de invasores coloniais e outros que não pensariam duas vezes antes de destruir outra cultura. Para mim, essas são as verdadeiras histórias de horror.

O consumo da placenta, uma prática que está se espalhando por diversos países, é uma herança do canibalismo?

Eu vejo a placentofagia como o último ato remanescente do canibalismo medicinal, uma prática que ocorreu no Ocidente por centenas de anos, quando cada parte do corpo, do sangue ao crânio, era consumido para fins curativos. O consumo da placenta é uma prática incomum, mas parece ter ressurgido devido à popularidade da medicina alternativa. Acredito que qualquer vantagem adquirida com isso seja meramente relacionada ao efeito placebo.

O senhor foi convidado para comer uma placenta. Como foi a experiência?

Uma mulher me chamou para comer sua placenta. O prato foi feito pelo marido dela, que é um chef, com um vinho ótimo. Tinha um aroma muito bom, e o gosto não era ruim. Não comeria novamente, mas não me arrependo.

Houve mudanças da interpretação do canibalismo pelos acadêmicos?

Creio que sim. Os cientistas agora consideram o canibalismo um comportamento generalizado no reino animal, muitas vezes não tendo nada a ver com a escassez de formas alternativas de nutrientes ou ao estresse relacionado ao cativeiro. Até recentemente, e com algumas exceções bem conhecidas, como as aranhas viúvas-negras, a maioria dos pesquisadores achava que o canibalismo não humano era raro e, principalmente, ligado ao estresse. Sabemos agora que sua prática também leva em conta fatores como o cuidado parental e a reprodução.

Como foi a prática no Brasil?

Revisei o trabalho da antropóloga Beth Conklin com a tribo Wari, que vivia na floresta amazônica. Ela relatou que, até a década de 1960, este grupo consumia porções de carne humana, assim como farinha de ossos misturada com mel. Entrevistei diversos anciãos e eles estão convictos de que o luto prolongado dificulta que uma pessoa continue com sua vida. Como o cadáver é considerado o lembrete mais poderoso do falecido, os waris acreditam que consumi-lo erradicaria o morto de uma vez por todas, permitindo o alívio de seus entes queridos. No entanto, a tribo foi forçada por missionários e autoridades do governo a abandonar seus ritos funerários e a enterrar seus finados, algo que os estranhos a essa cultura afirmam que é “civilizado”. Isso deixa os waris horrorizados, porque eles acham o solo frio, úmido e poluente, e deixar o corpo de uma pessoa apodrecido na sujeira é desrespeitoso e degradante. Por isso, há tempos os waris não consomem mais os seus cadáveres.

O canibalismo também se manifestou fora de tribos indígenas?

Sim. Os europeus da era renascentista, que ficavam enojados com os rituais alimentares em lugares distantes, como o Caribe, praticavam o canibalismo medicinal. Pessoas de diversas classes sociais, inclusive membros da realeza britânica, aplicavam, bebiam ou usavam misturas preparadas a partir de partes do corpo humano. O sangue, por exemplo, era consumido para tratar a epilepsia. Era comum ver epilépticos assistindo a execuções públicas, prontos para pegar o sangue dos condenados. A gordura servia para tratar queimaduras e problemas de pele. Na China, uma ordem imperial de 205 a.C. permitia a troca de crianças entre famintos, para que ninguém precisasse consumir seus próprios familiares. Na Idade Média, as partes mais consumidas naquele país eram a coxa e o braço. A ingestão do globo ocular passou a ser proibida em 1261.

O canibalismo, então, pode ser resultado, em diversas ocasiões, do desespero devido à falta de recursos. Sendo assim, considerando que vivemos em um planeta em que a população está crescendo exponencialmente, é possível que essa prática recupere sua força?

Hoje só ouvimos falar do canibalismo criminoso ou de sobrevivência, motivado por falta de comida. Foi o caso da expedição Donner (pioneiros americanos encalhados nas montanhas de Sierra Nevada, na Califórnia, em 1847), da equipe de rugby uruguaia presa nos Andes após um acidente aéreo em 1972, e em surtos de fome em países como China e Rússia. Sabemos agora que esse tipo de comportamento é totalmente previsível e ocorrerá em casos extremos de fome. Com o colapso de lavouras, acredito que o canibalismo pode voltar a acontecer. Estamos falando sobre o potencial de sofrimento humano generalizado, não de um filme de zumbis. A comunidade médica e grupos de assistência lidarão com pessoas famintas, e possivelmente doentes. Não são monstros.

Em 2003, quando completou seu centenário, o Instituto Americano do Cinema pediu para que seus membros escolhessem os 50 maiores vilões de filmes da História. O canibal Hannibal Lecter, de “O silêncio dos inocentes”, ficou em primeiro lugar. O canibalismo criminoso gera fascínio?

Sim. Este é um filme de terror maravilhoso, mas não devemos restringir nossa visão sobre o tema a isso. O canibalismo é muito mais complexo (e interessante) do que os casos relacionados à fome extrema ou ao delito dos criminosos — fictícios ou não.