Ele foi separado da mãe quando bebê. Felpudo e dono de um olhar com expressão que lembra a dos recém-nascidos humanos, recebeu o nome de Paixão. Passou três anos preso. Em vez da copa das árvores, vivia numa jaula de madeira.
Paixão é um macaco-barrigudo (Lagothrix cana) da Amazônia e ameaçado da extinção. Sua história retrata a de muitos primatas da região mais rica do mundo em espécies de macacos e saguis, onde são exterminados pelo desmatamento, a caça e o tráfico de animais.
O macaco foi resgatado em abril pelo Instituto Mamirauá numa comunidade ribeirinha de Uarini (AM), no Médio Solimões. A família que o criava pediu ao instituto para que o levassem, depois que o animal começou a ficar agressivo.
— O barrigudo tem um olhar como o nosso e vemos o medo e a tristeza em seus olhos. Precisa do grupo para ser feliz. Foi ficando agressivo por viver aprisionado — conta biólogo Miguel Monteiro, do Mamirauá.
Com 8,2 quilos, Paixão foi para o Centro de Triagem de Animais Silvestres do Ibama, em Manaus. Foi o início de uma longa jornada que, para a maioria dos animais selvagens criados em cativeiro, quase nunca tem como desfecho a liberdade na floresta.
Paixão não aprendeu a viver como um macaco e seu destino, provavelmente, será passar o resto da vida cuidado em um cativeiro, afirma Renata Bocorny de Azevedo, coordenadora do Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Primatas Amazônicos.
— É muito difícil encontrar zoos ou criadouros que possam recebê-los. Precisam de espaço e cuidados — ressalva Azevedo, primatologista do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB/ICMBio).
Os barrigudos estão entre os maiores macacos da Amazônia, inspiradores de lendas de povos originários. Mas também estão entre os animais mais afetados pelo desmatamento, pois se alimentam das folhas e frutos das grandes árvores. Também são dos mais caçados. Principalmente, para serem comidos.
Leandro Jerusalinsky, coordenador do CPB e vice-presidente do Grupo Especialista em Primatas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), diz que a maior ameaça é a perda de habitat com o desmatamento e a degradação das florestas. A segunda maior, a caça.
Na Amazônia, a caça ao macaco faz parte das tradições de indígenas e ribeirinhos, lembra Jerusalinsky. A carne é apreciada, assim como a criação de filhotes. O uso de armas de fogo pelos indígenas e o acesso a áreas remotas intensificam a pressão da caça sobre essas espécies.
Estudos mostraram que em áreas com muita caça o número de símios é cerca de dez vezes menor do que nas demais. Há indicação de extinção local em diversos lugares.
— A caça tradicional não era um problema quando os animais eram abundantes. Mas esse tempo acabou — alerta Jerusalinsky.
Azevedo acrescenta que a caça é feita por subsistência ou por tradição. E difere entre indígenas e ribeirinhos. Há ainda a caça esportiva, quase sempre de pessoas de fora. Outras ameaças são o tráfico para a venda para pesquisa biomédica e para colecionadores, atropelamentos e ataques de cães. Mudanças climáticas, assentamentos rurais, agropecuária e expansão urbana fecham o cerco.
— Traficantes matam os pais para pegar os filhotes, mais fáceis de lidar. Arrancam os dentes, dopam, embriagam e mantêm em péssimas condições. A maioria morre — lamenta Jerusalinsky
Diálogo para preservar
O Brasil tem a maior diversidade de primatas da Terra e 70% de todos os que vivem nas Américas. A IUCN reconhece 152 espécies e subespécies, o que representa 20% do total global. Mas Jerusalinsky diz que o número pode ser ainda maior:
— Em alguns lugares, não se sabe o que existe.
Primatas estão entre os maiores dispersores de sementes. Vivem em grupos com dezenas de indivíduos e, ao defecar, as lançam prontas para a germinação. Podem contrair muitas das infecções que nos ameaçam. Se suas populações adoecem, acendem o alerta.
Para reduzir a caça, o caminho é o trabalho conjunto e o diálogo, diz Azevedo. Na Reserva Extrativista do Alto Tarauacá, no Acre, os macacos-aranhas, abatidos por sua carne, quase desapareceram. Mas a população aceitou uma moratória de caça de cinco anos e passou a fiscalizar a atividade.
As espécies que podem desaparecer
O desmatamento e a caça chegaram a dimensões tão devastadoras no Brasil que três espécies amazônicas poderão desaparecer nos próximos anos, se medidas de conservação urgentes não forem tomadas.
A primeira é o sauim-de-coleira (Saguinus bicolor), que tem um dos menores habitats do mundo. Ele vive apenas em florestas do entorno de Manaus e dos vizinhos Itacoatiara e Rio Preto da Eva. É também um dos macacos de pelagem mais peculiar, sendo metade branco e metade marrom.
A população desse sauim diminuiu à medida que as cidades avançaram e destruíram a floresta. Está criticamente em perigo, e uma esperança para a sua salvação está no Refúgio da Vida Silvestre do Sauim-de-coleira, de 15,3 mil hectares, em Itacoatiara (AM), criado em 5 de junho.
Leandro Jerusalinsky chama a atenção para outras duas espécies, ambas do Arco do Desmatamento da Amazônia Legal. A primeira é o cairara (Cebus kaapori), cuja área de ocorrência são as matas entre Belém e São Luís.
— Ele está numa área da qual sobraram farelos de florestas. Está sendo rapidamente arrastado para a extinção. É uma espécie extremamente sensível a qualquer perturbação, confinada em fragmentos sob pressão do desmatamento e do tráfico de drogas e de animais, uma área violenta — alerta o cientista.
A terceira espécie é o coatá-de-cara-branca ou macaco-aranha-de-cara-branca (Ateles marginatus), que vive no que restou de Floresta Amazônica entre o Mato Grosso e o Pará. Uma parte considerável da população remanescente está na Terra Indígena do Xingu.