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Por Daniel Biasetto — Rio de Janeiro

Dois meses após o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no Vale do Javari (AM), ainda é difícil para a antropóloga Beatriz Matos, viúva de Bruno, falar sobre o assunto. A sociedade chorou o indigenista. Ela chorou o homem, o marido e pai de seus dois filhos, de 2 e 4 anos. Em entrevista ao GLOBO, a primeira em que conversou longamente sobre o episódio, ela diz ter somente hoje a real dimensão da gravidade do crime: “Não só foi uma violência contra a nossa família, foi uma violência contra a defesa dos povos e territórios indígenas do Brasil”.

Na conversa que durou quatro dias, ora interrompida pela emoção, ora para não passar qualquer tipo de dor à família por perto, Beatriz conta que teme pela sua segurança e a dos filhos, tenta vencer as noites de insônia e pediu licença médica da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde trabalha como professora de antropologia e etnologia indígena, para cuidar da saúde mental. Lembra, ainda, do que chama de deboche no tratamento dado pelo governo federal ao caso, das dificuldades em criar sozinha os filhos, e afirma que vai se “desdobrar em duas” para dar continuidade ao trabalho e projetos elaborados por ela e o marido para o Vale do Javari: “É a continuidade dele”.

Como têm sido os dias sem o Bruno?

A cada dia vai se aprofundando a saudade, a falta que ele faz. Para a família, para os filhos, para os amigos. A gente vai sentindo cada vez mais a ausência. É o pai dos meus filhos, o meu marido, uma pessoa que estava com a gente nos fins de semana, que me ajudava no cuidado das crianças. Mas a gente tem que aprender a lidar com isso dia a dia. Aos poucos, conseguir sarar essas feridas para seguir em frente.

As crianças já sabem da morte do pai?

Quando confirmaram as mortes eu contei para eles, com a orientação de uma psicanalista, com que faço análise e que me ajuda a processar isso com eles. Fui falando aos poucos o que aconteceu. Eles sabem que o papai morreu e falei que ele está agora em nosso coração, que ele está presente com a gente. Eles falam sobre o pai e vou processando isso com eles devagarzinho.

Hoje, você vê de forma diferente o que aconteceu?

Compreendo agora tudo o que aconteceu e, cada vez mais, a gravidade e a violência desse crime. Não só foi uma violência contra a nossa família, eu e meus filhos, foi uma violência contra a defesa dos povos e territórios indígenas do Brasil.

Você, que também trabalha pela causa indígena, sente-se mais insegura agora?

Esse crime demonstrou como os ativistas que trabalham com os povos indígenas, além dos próprios indígenas, estão ameaçados e vulneráveis hoje. Depois de tantos avanços com a redemocratização e toda a atenção para a questão ambiental, vivemos uma grande violência contra diversas conquistas e avanços. Toda a equipe da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, com quem Bruno trabalhava) está ameaçada pelos invasores e já solicitou proteção à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

O Bruno já tinha relatado as ameaças que vinha sofrendo?

Ameaças contra ele eu já sabia que havia desde 2015, quando a gente começou a namorar. Ele já tinha porte de arma nessa época. Acho que algumas das ameaças ele não contou para me preservar. A história do bilhete com o nome dele e do Beto Marubo enviado à Univaja, por exemplo, eu não sabia. Ele era sempre muito cuidadoso.

Analisando agora o processo desde o desaparecimento de Bruno e Dom, você acha que as coisas poderiam ter sido conduzidas de modo diferente? Como avalia as ações do governo federal sobre o caso?

Desde a “hora 1”, foram os indígenas que Bruno ajudou a formar que se lançaram nas buscas. Apoiadores da Univaja pagaram diárias para policiais e adquiriram equipamentos para buscas. Houve uma inatividade total do governo. Teve aquela nota Exército que estariam esperando permissão para agir, e só começaram um plano de ação quatro dias após o desaparecimento. Eles não só foram lentos com pareciam debochar da nossa cara. As declarações do presidente da Funai (Marcelo Xavier), do vice-presidente (Hamilton Mourão) e do presidente Jair Bolsonaro foram aviltantes. Eles brincavam com o sofrimento das famílias. Tripudiaram, foram insensíveis, lentos e, quando houve a pressão internacional, tentaram demonstrar serviço, mas muito centrada na Polícia Federal e Polícia Civil. O governo federal não não se importa com indígenas, comunidades tradicionais e quilombolas. Esse é o recado.

Ficou impressionada com a repercussão do caso no Brasil e no mundo?

Essas mortes representam a ruptura total do que tínhamos conquistado em décadas. Era uma coisa que vinha se ruindo e agora se rompeu de vez, revelando a gravidade da situação que vivemos e a escalada da violência. Acho que foi isso que fez com que as pessoas se conectassem a essa questão, se condoessem, sentissem que poderia ter acontecido com qualquer um de nós ativistas.

Com a prisão dos assassinos, você acha que há algo mais para se investigar?

Desde a demarcação da TI no Vale do Javari, em 2001, tem conflito. Mas agora há uma escalada da violência , principalmente em torno da pesca ilegal. A maneira como o Bruno e o Dom foram executados, em plena luz do dia, num rio movimentado, e, depois, a maneira como foram ocultados os corpos e toda aquela violência que sofreram, isso não é comum. O que permitiu que esse método, ligado muito mais a forças milicianas ou ao crime organizado, fosse utilizado para eliminar adversário da pesca ilegal? Para mim, há uma rede de relações desses crimes ambientais, de ilícitos na terra indígena, se conectando com o crime organizado, que lida com coisas mais pesadas e com mais dinheiro. Falta desvendar isso e desmantelar esse tipo de crime que está tomando conta das TIs no país. Olha a Terra Yanomami, vítima de tráfico de ouro e redes criminosas internacionais. Quando você desmonta a política de proteção territorial é isso que acontece: o crime toma conta.

Qual o legado deixado por Bruno?

Eu poderia falar dias sobre isso... Na ausência do Bruno, a gente vê claramente a dimensão do trabalho dele. Ele estruturou tudo muito bem, era uma pessoa central, com uma liderança forte e muito presente. Ele tinha um protagonismo contagiante, era pró-ativo, numa ação muito concreta a favor dos povos indígenas. Ele deixou muita coisa estruturada na equipe da vigilância da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), que ele montou. Ele formou muitos quadros no movimento indígena. Não só na Funai, mas também entre os próprios indígenas, para que entendessem a importância do território. Ajudou a conectá-los com a tecnologia de informação e outros métodos de defesa local, em um contexto que a política pública para proteção dos territórios indígenas é abandonada. Bruno tinha um conhecimento muito grande e era um diplomata, fazia a ponte entre esses dois mundos. Ele tinha muito conhecimento de política pública e deu muitas condições institucionais para que os funcionários da Funai fizessem o seu trabalho. Ele tinha muito respeito pela Funai. Acreditava na instituição e vê-la ruir era muito difícil para ele.

Você dará continuidade ao trabalho de Bruno?

Com certeza. Sou antropóloga e militante da causa indígena. Trabalho há quase 20 anos no Vale do Javari, desde 2005. Conheci o Bruno lá cinco anos depois. Vou seguir como integrante do OPI (Observatório dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato), que é essa organização que ele fundou com outros colegas, e continuar meu trabalho de pesquisadora, como professora de antropologia, formando novos antropólogos. Parece que agora eu tenho muito mais trabalho. Eu e Bruno conversávamos, sonhávamos juntos. A gente tinha vários projetos para o Vale do Javari, dividíamos questões sobre o meu papel o dele. Perdi esse grande parceiro de trabalho, não só o de vida. As coisas que ele deixou ajudam a mantê-lo presente. O trabalho é a continuidade dele, o que a morte não interrompe. Como os filhos. Tenho que dar continuidade ao trabalho e à família. Vou me desdobrar em duas para dar conta, mas conto com a força dele, sinto ele perto de mim.

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