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A iniciativa do Ministério Público Federal de investigar a participação do Banco do Brasil no comércio de escravizados no século XIX se soma a uma vertente de estudos que está ampliando a compreensão da importância do fenômeno na formação da sociedade brasileira: os relatos de episódios e incidentes isolados registrados por escrito que são peças do grande mosaico de um sistema de injustiças que marcou a História do Brasil.

O historiador Flavio Gomes se especializou em contrariar o senso comum de que há poucos documentos que registrem como viviam os escravizados, como era a relação com seus senhores, e os temores e violações de direitos que se tornaram inseparáveis do cotidiano do Brasil escravocrata.

Três destas histórias são contadas abaixo. As três falam do temor deixado pela Revolta dos Malês, mesmo fora da Bahia, da influência que as quitandeiras tinham no comércio carioca, e da incrível história do africano que teve de lutar duas vezes pela sua liberdade e para provar que era um oficial do exército britânico. Um episódio que mistura a suspeita jurídica que sempre pairou sobre a população negra no Brasil pré-abolição a uma evidência de que o papel de escravizado não era o único possível de ser exercido por este contingente de pessoas.

Gomes é professor da UFRJ há mais de 25 anos — com pós-doutorado na USP e FGV-SP, pesquisador visitante em New York University (NYU) — com experiências em arquivos de Madri, Lisboa, Guiana Francesa e nas fontes digitais sobre Barbados, Cuba e Martinica.

Epidemias e cores do medo: Rio, 1835

No período colonial e no Império, as cidades brasileiras podiam ser cercadas por violência, doenças epidêmicas e desastres ecológicos. Em 1835, o Rio de Janeiro foi tomado por uma epidemia de medo.

Após os episódios e repercussões da Revolta dos Malês ( apelido de africanos ocidentais islamizados) que assustaram Salvador, o pânico que assolou os cariocas apareceu nas investigações de um desembarque de africanos ocidentais provenientes da capital baiana transportados pelo Brigue Triunfo. Em quarentena, o navio permaneceu fundeado de maio a julho na Baía de Guanabara, aguardando autorização policial. Havia suspeitas de que nele se encontravam participantes da insurreição baiana. Foi preciso abrir um processo cível e inquirir testemunhas, moradoras de Salvador, inocentando as pessoas a bordo de qualquer participação na "desordem africana" de janeiro. Chegou a ser decretada uma lei que exigia “folha corrida” para impedir a entrada, no Rio de Janeiro, de "certos escravos vindos da Bahia”.

Neste ano, o ministro da Justiça, Manoel Alves Branco, em correspondência reservada, alertava ao chefe de Polícia da Corte sobre "medidas indispensáveis" para acalmar os ânimos na cidade. A palavra de ordem era evitar a reprodução das "cenas de horror” de uma revolta africana. Não era para menos: a concentração urbana de escravizados era grande. Se em Salvador chegava a 27 mil em 1835, no Rio, ultrapassava os 50 mil.

Cais do Valongo: tombado pelo Iphan, maior porto de escravizados no país e onde morava africano respeitado por outros que eram iniciados em práticas religiosas que amedrontaram moradores em 1835 — Foto: Hermes de Paula
Cais do Valongo: tombado pelo Iphan, maior porto de escravizados no país e onde morava africano respeitado por outros que eram iniciados em práticas religiosas que amedrontaram moradores em 1835 — Foto: Hermes de Paula

Nas cercanias do Cais do Valongo, onde não mais funcionava o porto devido à legislação que proibiu o tráfico desde 1831, chegaram denúncias de que morava um africano a quem rendiam o “maior respeito” muitos escravizados que se iniciavam no local em "princípios religiosos". Não paravam de chegar denúncias de "ajuntamentos" de africanos. Falava-se mesmo da preparação de um "movimento insurrecional” na véspera do Natal de 1836.

Com as partes centrais da Corte cercadas por freguesias populosas — Inhaúma, Irajá, Ilha do Governador, Engenho Velho, Jacarepaguá e outras que alcançavam o Recôncavo da Guanabara (atual Baixada Fluminense) ou Bangu e Campo Grande, com muitas fazendas e engenhos — o temor maior era que os escravizados da cidade se articulassem com os da zona rural. Jornais publicavam cartas e se multiplicavam bilhetes anônimos com denúncias.

Garantiam haver entre os escravizados das zonas rurais um “acordo entre eles e os da cidade”. As investigações recaíram sobre um liberto chamado Andrade, dono de uma quitanda na Rua do Rosário, que seria “um dos agentes do plano” de rebelião. Exageradas ou não, brotaram notícias “aterradoras” de "sintomas de insurreição de escravos" em Niterói, Itaboraí, Magé, Maricá e até no distante município de Campos.

Foi um momento de muita intolerância, truculência e perseguição que cercaram a população negra urbana carioca. Em fins de 1835, o presidente da província, Joaquim José Rodrigues Torres, em ofício ao Ministério da Justiça, admitiu que tantos boatos sobre insurreições na Corte e no interior estavam sendo escritas por denúncias exageradas "tintas com a cor do medo". O medo da cor negra da população carioca.

O direito das Quitandeiras: Rio, 1776

Capital colonial desde 1763, o Rio de Janeiro no fim do século XVIII avançava em transformações urbanas. Mudavam-se hábitos de moradia, de alimentação, de uso de roupas e de trabalho, com mais e mais gente, sabores e sons.

Quitandeiras — Foto: Reprodução/Arquivo Nacional
Quitandeiras — Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

De um lado, as autoridades recebiam renitentes reclamações. Comerciantes, fazendeiros e nobres, chamados de “homens bons”, se queixavam de tudo: pântanos que não secavam, ruas sem calçamento, iluminação deficiente, local dos matadouros, etc. De outro, pequenas multidões africanas, além dos poucos indígenas, muitos portugueses e mais outros europeus ocupavam as ruas, diante de conflitos cotidianos que nunca aparecem nos nossos livros de História.

No outono de 1776, pequenas comerciantes — mulheres pretas, escravizadas ou libertas -- enviaram uma petição ao procurador da Câmara da Cidade. Identificando-se como quitandeiras, queriam manter suas bancas nas proximidades da Câmara e “na frente do mar” (onde hoje está a Praça XV), local onde se vendia peixe. Ali elas ofereciam em barracas alimentos e outros produtos. Tinham licença, pagavam impostos e não queriam ser desalojadas.

O juiz de fora (magistrado indicado pela Corte) que presidia a Câmara tinha decidido impedi-las de vender seus produtos em frente ao prédio. As quitandeiras queriam permanecer onde “sempre gozaram a posse de vender suas quitandas”.

Eram comuns reclamações contra quitandeiras que supostamente produziam “alarido” (gritaria) e confusão. Com a petição de 1776, elas provocaram debates na Câmara sobre o impedimento de “venderem nas paragens donde as expeliram” e preocupação com o “tão notável prejuízo das suplicantes”.

Todos pareceriam concordar que a reclamação das quitandeiras tinha amparo legal. Vereadores chamaram atenção da importância delas na venda de alimentos para a população urbana que diariamente ali se aglomerava.

Mas houve argumentos a favor que justificaram a intransigência do juiz de fora, que morava na área onde elas trabalhavam, alegando que o representante da Corte estava enfermo e ficava mais atormentado ainda pelo barulho.

Passado alguns meses, a disputa foi decidida pelo ministro da Justiça, que decidiu pela volta das quitandeiras às suas costumeiras áreas de comércio entre o prédio da Câmara e da Cadeia. “O bem comum deve prevalecer a qualquer utilidade particular”, justificou.

A suspeição: Belém, 1820

Durante quatro séculos, o tráfico atlântico através da escravidão, do comércio e do sequestro de pessoas conectou partes do continente africano e as Américas. É neste contexto que se passa a história do africano Mister Gray, supostamente soldado inglês e confundido nas ruas de Belém com um escravizado.

O episódio surge na correspondência do Governo do Grão-Pará, depositada no Arquivo Público do Estado do Pará, numa reclamação que Henrique Dickson, cônsul inglês, faz contra Fernando José da Silva. Foi parar nas mãos de Antônio Manoel Câmara de Sá, então Ouvidor da Comarca em Belém. Os motivos da reclamação foram um escravizado fugitivo e a acusação de que a autoridade inglesa o acobertava na sua própria casa. Pior: promovia "súcias" (pagodes) e bebedeiras com presença de marinheiros ingleses e escravizados, muitos africanos.

Negro dormitando, aquarela de Debret — Foto: Reprodução/Museus Castro Maya
Negro dormitando, aquarela de Debret — Foto: Reprodução/Museus Castro Maya

A reclamação não só causou indignação ao cônsul, mas revelaria faces de tragédias provocadas pelo comércio negreiro. Não era raro, nas áreas portuárias, homens livres africanos serem acusados de roubo e ilegalmente transformados em cativos, sendo desembarcados nas Américas nesta condição.

O suposto cativo reclamado por Fernando José da Silva podia ser Mr. Gray. Africano sim, mas um soldado Inglês que havia sido feito prisioneiro quando estava no porto de Serra Leoa com sua tropa, segundo a reclamação. Neste caso, o cônsul inglês estava ajudando um quase súdito, também inglês, africano, ilegalmente escravizado e traficado. A reclamação maior era de que a residência de Dickson em Belém estava sendo vítima de “injuria e ultrajem”, como se escreveu no documento, com a acusação de proteger fugitivos.

Os documentos do Arquivo do Pará trazem o relato de Mister Gray: ele admitiu ter sido comprado na condição de cativo pelo tal Fernando, mas numa ação ilegal. Havia servido por quase oito anos na Royal African Corp, tropa inglesa em Serra Leoa. Foi então que “foi cercado num campo por pretos e forçosamente levado até Cabinda (no Norte do Congo) e lá vendido” e trazido para Belém, onde novamente foi vítima do comércio de pessoas. Na primeira oportunidade, fugiu e procurou a casa do Dickson. A maior evidência de que Gray estava contando a verdade? Ele contou sua história às autoridades falando inglês.

Instaurada investigação, várias testemunhas foram ouvidas. Havia desconfiança daquela narrativa. Muitas eram as alegações. Fernando Silva garantia ter comprado um “preto bruto” cativo das mãos de Antônio Brandão, numa casa de negócio em Belém. Dickson afirmou que aquele africano procurara caixeiros ingleses e depois, a sua casa, para tentar provar que fora ilegalmente capturado e embarcado como escravizado. Surgiu até a informação de que Gray, já no próprio navio que o havia trazido à força para o Brasil, procurara um marinheiro, de nome Collins, pedindo apoio em inglês.

O Royal African Corp foi uma tropa criada no início do século XX e formada por desertores, condenados e também africanos. Atuaria em Serra Leoa e na Gâmbia e foi dissolvido em 1819. E 1820 foi exatamente o ano de chegada de Gray a Belém. Ter sido levado de Serra Leoa para Cabinda fazia sentido. Com o comércio negreiro sendo ilegal em 1815acima da linha do Equador, muitos traficantes levavam escravizados ao porto do Congo, onde podiam ser embarcados para o Brasil, num tráfico legal que funcionou até 1830.

Até agora, não foram achados documentos que mostrem como terminou essa disputa pela liberdade de Mr. Gray. Podia haver mentiras e verdades por toda a parte. A questão de o africano falar inglês, levantada pelo Cônsul e os que inquiriram Mr. Gray foi também alvo de investigações: havia um multilinguismo dos sertões ao litoral africano, passando pelas travessias do tráfico negreiro.

Nas travessias dos navios, cozinheiros, grumetes, pilotos, sangradores podiam ser marinheiros europeus, africanos ou gente nascida nas Américas. Eram tradutores transatlânticos que embarcavam, desembarcavam, entre conveses e porões improvisados, vivendo períodos em terra, portos, ancoradouros, praias e pequenas vilas litorâneas. Ilegalmente ou não aprisionado em Serra Leoa, Mr. Gray poderia ser visto tão somente como um africano acusado de tentar fugir, e não um soldado inglês.

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