A fuga de 17 presos da Penitenciária Dom Abel Alonso Núñez ontem, em Bom Jesus (PI), jogou luz sobre um problema crônico do sistema prisional brasileiro: um a cada três estabelecimentos prisionais no Brasil tem condições ruins ou péssimas, segundo o monitoramento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). De 2000 até junho do ano passado, o déficit de vagas nos presídios do país quase dobrou, passando de 97 mil para um excedente de 166 mil presos, segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen). E o crescimento da população carcerária em um sistema que não tem capacidade de absorver todos os detentos levou a uma piora das condições de cumprimento das penas.
A Penitenciária Dom Abel Alonso Núñez foi considerada de péssimas condições pelo CNJ, em uma vistoria feita em janeiro. Projetada para receber 76 detentos, abrigava 185 quando foi feita a inspeção. Destes, 146 eram presos provisórios, que aguardavam a sentença. Para escapar ontem, os presos teriam conseguido arrombar cadeados e furar uma parede da unidade. A fuga em massa foi na semana seguinte à de dois detentos da Penitenciária Federal de Mossoró (RN).
A constatação de que 33% dos presídios estão em em condições ruins ou péssimas foi feita a partir de inspeções em 1.778 estabelecimentos municipais, estaduais e federais pelo CNJ, a maior parte no ano passado (houve duas em 2019 e uma em 2022). O Piauí tem o maior déficit de vagas em presídios. São 6.481 pessoas ocupando o que deveriam ser 3.076 vagas nas suas 21 unidades. Roraima é segundo pior estado, com 95% de presos a mais do que suas unidades podem comportar. Em Pernambuco, o terceiro pior, o percentual é de 80%.
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Mais doenças
Para especialistas, a superlotação é a principal causa das más condições nas unidades prisionais. Por causa da desproporção entre vagas e pessoas, surgem ou se intensificam efeitos como insuficiência de assistência médica, de acesso à água, de condições de sono e de alimentação adequada.
Os ambientes superlotados ainda são propícios para a proliferação de doenças (especialmente as respiratórias, como tuberculose). Entidades de direitos humanos apontam a recorrência de denúncias de torturas e de castigos físicos e coletivos. Procurada, a Senappen não se manifestou.
Segundo o CNJ, existem 83.028 agentes penitenciários para um universo de 682.674 presos no país. Com isso, há uma média de oito detentos por agente. De acordo com a resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, de 2009, o máximo deveria ser de cinco presos por agente.
— Tudo de ruim começa pela superlotação. O ambiente fica insalubre e as pessoas, mais expostas às doenças. Já visitei unidade onde a máscara de nebulização era compartilhada entre os pressos — diz a defensora pública federal Letícia Torrano, secretária de atuação no Sistema Prisional (Sasp), que chama a atenção para o alto número (180 mil) de presos provisórios, que sequer receberam sentenças, e dos presos que cometeram crimes não violentos (59%).
O último relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), que compilou inspeções de 2022, ilustra grande parte desses problemas. No presídio de Uberlândia (MG) — considerado péssimo pelo CNJ — as celas eram superlotadas, “extremamente escuras e mal ventiladas”. Segundo presos e até servidores, não era incomum a comida ter sido entregue estragada, “com insetos ou crua”.
Nas inspeções, peritos encontraram diversos casos de “cadeias vencidas”, em que alvarás de soltura haviam sido concedidos meses antes, mas não foram informados.
— A superlotação pode configurar tortura, porque acaba impactando toda a estrutura de funcionamento — alerta Ana Valeska, perita do MNPCT, que destaca como esse contexto leva a rebeliões. — Falta de assistência de saúde adequada é ponto forte de tensão.
Em outubro do ano passado, o STF reconheceu, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, a existência da violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro. Com isso, determinou a elaboração, em seis meses, de um plano especial para o controle da superlotação carcerária e para combater a má qualidade das prisões, pela União e pelos estados.
Mas segundo as especialistas, as ações do governo costumam ser a construção de novas unidades, em vez de ser solucionado o que definem como hiperencarceramento. Em meio às más condições nas unidades, facções criminosas se fortalecem, já que se tornam a forma mais fácil para presos acessarem itens de higiene e melhor alimentação, além de outras comodidades.
— O Brasil prende muito e prende mal. Essas pessoas vão sair da prisão sendo o reflexo do que tiveram lá dentro. Atualmente só enxugamos gelo, nada funciona. Não diminui a criminalidade — critica Torrano, que acrescenta enxergar vontade dos presos em trabalhar ou estudar dentro das unidades, mas faltam vagas.
Torran e Valeska lembram que as condições dignas dos presos são direitos e deveres obrigatórios.
— As pessoas perderam a liberdade, mas continuam com direito à saúde, à educação. Enquanto a sociedade não perceber isso, estará à mercê de um grande caos — afirma Edna Jatobá, conselheira nacional dos Direitos Humanos.