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Política Bolsonaro

Nova corrida pelo ouro na maior reserva indígena do país cria tensão e rastro de destruição

Garimpo atrai 15 mil homens e se dá em paralelo ao anúncio do presidente Bolsonaro de que pretende legalizar a exploração em áreas indígenas
Rotina: Na foto, garimpo ilegal na reserva indígena ianomâmi, em Roraima Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
Rotina: Na foto, garimpo ilegal na reserva indígena ianomâmi, em Roraima Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

RESERVA IANOMÂMI (RR) - Aos 57 anos, “Irmão” viu-se sozinho e com quatro filhos pequenos para criar. Morador da Ilha da Fazenda, um vilarejo com 80 casas encravado no Rio Xingu, no Pará, há 15 meses ele decidiu deixar as crianças com a avó. Foi tentar a sorte num garimpo ilegal a 1.500 quilômetros de sua família, no coração da terra indígena ianomâmi, a maior do Brasil, em uma área da floresta amazônica em Roraima. A poucos metros de sua casa, a mineradora canadense Belo Sun se preparava para começar a extração de ouro, mas “Irmão” não via chance de emprego.

— Eu mal sei assinar meu nome — diz.

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“Irmão” é como ele é chamado no garimpo ilegal em que trabalha na terra indígena. Lá, todos se conhecem por apelidos. Filho de garimpeiro, ele seguiu seu irmão, com quem compartilha o ofício, e que está há mais tempo trabalhando em um barranco à beira do Rio Uraricoera. “Irmão” está no Mucajaí, um rio próximo. Os dois buscam os gramas de ouro com as mãos.

A nova corrida pelo ouro se dá em paralelo ao anúncio do presidente Jair Bolsonaro de que pretende legalizar a exploração mineral em áreas indígenas. Na reserva ianomâmi, a ação ocorre hoje nesses dois rios (Uraricoera e Mucajaí), que também são os mais importantes para seu povo.

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Garimpam ali, pelas estimativas das lideranças indígenas e dos próprios garimpeiros, de 10 mil a 15 mil pessoas, num universo de tensões, violência, conflitos e destruição ambiental. Já os ianomâmis são cerca de 23 mil vivendo em Roraima e no Amazonas.

A Reserva yanomami
Uraricoera
Mucajaí
Boa Vista
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RESERVA
YANOMAMI
venezuela
brasil
Amazonas
Roraima
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A Reserva yanomami
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Mucajaí
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O GLOBO esteve durante quatro dias na terra indígena ianomâmi e subiu o Rio Mucajaí. O rio é largo, curvilíneo e margeado por uma exuberante floresta. Tem águas mais turvas do que o comum para o atual período de chuvas, um indicativo da atividade garimpeira na região. Os invasores sobem o rio em canoas de médio porte e motores potentes, por dias, para chegar às áreas de exploração de ouro. Uma fumaça na mata, um banco de areia na margem ou um motor exposto, sugando a água do rio, são os sinais mais óbvios de que, naquele lugar, está em operação um garimpo ilegal. Pelo ar rasgam, o tempo todo, pequenos aviões carregados de gente e ouro. A mata densa esconde trabalhadores abrigados sob a lona. Quando estão trabalhando, eles submergem nas crateras abertas após o desmatamento. Dali, sairá o metal cobiçado: o ouro.

“Irmão”, como é conhecido, deixou o Pará e está há um ano e três meses como garimpeiro ilegal na terra ianomâmi Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
“Irmão”, como é conhecido, deixou o Pará e está há um ano e três meses como garimpeiro ilegal na terra ianomâmi Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

Febre do ouro na reserva

Ao longo das décadas, garimpo teve altos e baixos; Hoje, os ianomâmi estão pressionados pelo garimpo, com o mercúrio correndo nos rios
Garimpo ilegal de ouro na reserva indígena ianomâmi, em Roraima Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
Garimpo ilegal de ouro na reserva indígena ianomâmi, em Roraima Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

No fim da década de 1980, pistas clandestinas de pouso e decolagem de avionetas rasgaram a terra dos ianomâmi e a quantidade de garimpeiros no local explodiu. Chegou a 40 mil pessoas. Ao longo das décadas, a febre do ouro na reserva teve altos e baixos. Hoje, com a nova leva de exploração, os ianomâmi estão pressionados pelo garimpo, com o mercúrio correndo nos rios. E os garimpeiros — ora pobres, ora miseráveis — tentam a subsistência e a fortuna. Em Boa Vista, a capital mais próxima, outro drama torna o cenário mais desolador: com a chegada de milhares de refugiados venezuelanos, o emprego não qualificado rareia.

A 115 quilômetros da reserva, Boa Vista ergueu um Monumento ao Garimpeiro, no centro da cidade. Roraima tem 35 mil garimpeiros, todos eles na ilegalidade e com atuação focada na terra ianomâmi.

O Monumento ao Garimpeiro, no centro de Boa Vista (RR) Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
O Monumento ao Garimpeiro, no centro de Boa Vista (RR) Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

A febre do ouro levou a uma reação do Estado, suficiente para sufocar o fluxo de entrada de novos garimpeiros na reserva indígena, mas ínfima no intento de reverter o problema e tirar do local os que ali estão.

Há um ano, a Polícia Federal (PF) deflagrou operação para combater o garimpo ilegal na terra ianomâmi, com foco nos grandes exploradores de ouro, donos de aviões e máquinas. Quase 30 pessoas foram presas e 18 aviões, apreendidos. Entre os investigados, um dono de garimpo já condenado por genocídio de 16 ianomâmis em 1993.

Há dois meses, uma operação do Exército destruiu pontos de exploração de ouro na terra ianomâmi e reativou postos de controle. Consistem em uma corda de ponta a ponta de cada um dos dois rios e bases com jovens militares armados. Os soldados só chegam aos focos de garimpo em transporte aéreo.

Apesar da operação do Exército, os “tatuzões” seguem operando. É muito comum a presença de índios na condução dos barcos de garimpeiros e relatos de pagamentos a representantes dessas aldeias, para que se siga rio acima e entre na mata em busca do ouro. Nos portos improvisados, boa parte dos índios passa os dias alcoolizada.

Cada “tatuzão” é operado por cinco ou seis garimpeiros. A água é bombeada do rio, carregada para valas gigantes abertas e usada para lavar a terra, empurrada para uma caixa que retém as partículas de ouro presentes. Dias depois, os garimpeiros “batem” os tapetes onde o minério fica retido. E aí entra o mercúrio: para agrupar as partículas. Logo depois, é descartado na água, que volta para o rio. O ouro é queimado, o mercúrio evapora — esta é a etapa mais tóxica — e retorna à forma líquida. E cai na água de onde os ianomâmis retiram parte de sua comida.

Os garimpeiros passam os dias na selva. Tomam banho com água da chuva. Dormem em redes. Padecem de malária e leishmaniose. E de crack e cocaína também.

“Irmão” trabalhou três dias seguidos para receber oito gramas de ouro. Cunha, de 43 anos, integra o grupo de “Irmão” no barranco. Recebeu os mesmos oito gramas. A divisão é praticamente cartelizada: o dono do “tatuzão” fica com 70% do ouro; os trabalhadores dividem os outros 30%. E ninguém reclama.

A partilha do ouro, depois da extração e da queima, é tensa. Ninguém quer ser passado para trás. Quando chega aos acampamentos, a comida tem um preço altamente inflacionado: um quilo de carne custam um grama de ouro; uma caixa de cerveja, um grama e meio. O dinheiro perde o valor. Se o câmbio fosse relevante ali, um grama equivaleria a algo como R$ 130.O ouro pode render até R$ 10 mil num mês a um garimpeiro mais braçal.

— É dez mil vezes melhor do que na cidade. Ganho para ter minha caminhonete, minha casa e meus filhos na escola e fora do garimpo — diz Cunha, que já explorou ouro ilegal na Venezuela, nas Guianas e no Suriname.

“Irmão” trabalhou três dias seguidos, 12 horas por dia, para receber oito gramas de ouro. Cunha (acima) integra o mesmo grupo que ele no barrancp Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
“Irmão” trabalhou três dias seguidos, 12 horas por dia, para receber oito gramas de ouro. Cunha (acima) integra o mesmo grupo que ele no barrancp Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

“Irmão” planeja voltar à Ilha da Fazenda, no Pará, só em janeiro do ano que vem. É para quando está previsto um novo cadastro dos moradores do vilarejo pela mineradora Belo Sun, que quer explorar cinco toneladas de ouro por ano, ao longo de pelo menos 12 anos. Populações indígenas serão diretamente impactadas e vêm se opondo ao projeto. “Irmão” quer sair da ilha e ser indenizado. Isto se, de fato, deixar a terra ianomâmi.

Tensão impera entre índios, garimpeiros e militares

Conflitos armados e até mesmo serviço de transporte de corpos em barcos são comuns no local
Garimpo ilegal na reserva indígena ianomâmi, em Roraima Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
Garimpo ilegal na reserva indígena ianomâmi, em Roraima Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

O clima era tenso no amanhecer da última quinta-feira na reserva ianomâmi, em Roraima. Horas antes, cinco barcos com garimpeiros decidiram acelerar e romper o cordão de isolamento estendido pelo Exército, ainda no começo do rio Mucajaí. A ação chamou a atenção dos militares que vigiavam o local e eles se colocaram em alerta.

A notícia da tentativa de furar o bloqueio se espalhou pelos acampamentos do local e provocou reações de revolta entre outros garimpeiros. Isso porque, a partir de então, ficaria mais difícil subir até os pontos mais movimentados do garimpo ilegal devido ao aumento da vigilância.

Na madrugada, os barcos tinham esperado os refletores se apagarem, o que costuma ocorrer por volta da meia-noite, para acelerar em direção ao garimpo. A atuação dos garimpeiros ilegais no local costuma ser mais discreta.

A tensão presente naquele dia, no entanto, não era exceção. Não raro, invasores da terra ianomâmi brigam entre si. Em relação aos militares do Exército, o sentimento também é de extrema animosidade. Garimpeiros dizem sofrer agressão verbal e física; afirmam ser comum que militares escondam o rosto e o nome na farda; e fazem relatos, inclusive, de desvio do ouro apreendido. O Exército afirma já ter instaurado três sindicâncias este ano para apurar denúncias, todas elas arquivadas por falta de provas.

Índios armados

A tensão vai além do embate entre o Estado, materializado na figura dos militares que patrulham o começo do rio, e os garimpeiros. E dos garimpeiros entre si. Há também índios armados. Algumas aldeias permitem a presença dos garimpeiros, mediante pagamento pela estadia. Outras, não. E reagem de forma violenta em situações de visitas indesejadas.

Também é comum garimpeiros circularem com armas na cintura. Os conflitos são frequentes. Uma desavença por ouro, ou por um motivo fútil decorrente de uma bebedeira, é facilmente resolvida a bala. Há influência de facções criminosas nos garimpos ao longo do rio Uraricoera, sem dominação, segundo os próprios trabalhadores. O Uraricoera é considerado mais perigoso e violento do que o Mucajaí. É mais extenso, de difícil acesso e tem mais ouro, segundo garimpeiros.

A violência é tão presente — na mesma proporção do isolamento e da desassistência — que passou a existir a figura do barqueiro transportador de corpos. Ele sobe os rios para buscar pessoas mortas no garimpo. O serviço custa R$ 7 mil, pagos pela família que não quer ver o parente enterrado clandestinamente na floresta.

— Se roubar, morre. Esta é a lei do garimpo — costumam repetir garimpeiros que exploram a terra indígena ianomâmi.

Um animal morto, preso a um galho no rio, já suscita uma dúvida entre ocupantes de barcos que cruzam o rio:

— É bicho ou gente? Tem rabo. É bicho.

A violência aumenta à medida em que a exploração de ouro avança. Se há uma quantidade maior de máquinas enfileiradas, lavando a terra, são maiores as chances de garimpeiros estarem armados.

Os pontos de encontro são as chamadas “currutelas”. Muitas delas estão desativadas, diante da relativa asfixia ao garimpo a partir da retomada dos controles pelo Exército. Outras permanecem. Muito do ouro extraído é gasto com as “plocs” — as prostitutas do garimpo.

LEIA: Especialistas apontam riscos em legalização de garimpo nas reservas

Desde janeiro, 3 mil garimpeiros desceram os rios de volta para suas casas, segundo um cálculo do Exército, que atua diretamente na repressão ao garimpo ilegal, seja no controle do fluxo de pessoas ou em ações de apoio à Polícia Federal (PF) e ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Em uma dessas ações, os militares colocaram abaixo o barraco de “Bigode”, um garimpeiro de 64 anos. Ele é mergulhador em balsas que sugam a terra, maquinário que sumiu das cenas de garimpo em razão das últimas fiscalizações.

“Bigode” é garimpeiro desde 1979. Entre 1981 e 1984, trabalhou em Serra Pelada, no Sudeste do Pará, que atraiu dezenas de milhares de garimpeiros naquela época. Ele era apontador dos homens que carregavam os sacos de terra nas costas, os chamados “formigas”. O corpo já dá sinais de esgotamento. “Bigode” diz querer parar.

— Aqui, o minério é pouco e a gente é molestado pela polícia — afirma.

A Constituição Federal veda a exploração de minério em terras indígenas, a não ser que exista autorização do Congresso Nacional e consulta aos índios, o que, até hoje, nunca ocorreu.