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Brasil

O drama da família da primeira vítima do coronavírus no país

A diarista Rosana Urbano morreu em 12 de março, em São Paulo, mas só foi corretamente diagnosticada mais de 40 dias depois; a Covid levou ainda sua mãe e seus irmãos
Rosana, primeira vítima fatal da Covid no Brasil Foto: Arte
Rosana, primeira vítima fatal da Covid no Brasil Foto: Arte

SÃO PAULO — No dia 11 de março, por volta das 4h, a diarista Rosana Aparecida Urbano, 57 anos, saiu de casa em uma das regiões mais pobres de São Paulo e percorreu 25 quilômetros para ver a mãe, Gertrudes, internada com pneumonia no Hospital Municipal Doutor Cármino Caricchio, no Tatuapé, um dos principais distritos da Zona Leste.

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Ao receber a notícia de que a mãe, de 86 anos, estava intubada, Rosana passou mal. Diabética e hipertensa, acabou internada no mesmo local. Morreu às 19h15m da noite seguinte, 12 de março, após uma parada cardiorrespiratória. Rosana foi a primeira vítima do coronavírus no Brasil. Nos 149 dias decorridos desde então, a doença matou mais de 100 mil pessoas , na maior tragédia sanitária da História do país.

A chegada e as consequências do coronavírus na família de Rosana são um retrato preciso do impacto e da distribuição da pandemia no Brasil. Um estudo feito pelo site Medida SP, que cruzou os dados de mais de 3 mil mortos pela Covid-19 na Grande São Paulo com seus CEPs, constatou que 66% das vítimas viviam em bairros em que a renda média estava abaixo de R$ 3 mil. Já nas regiões com renda superior a R$ 19 mil, houve registro de 1% das mortes.

O Brasil ultrapassou a marca de 100 mil mortos pelo novo coronavírus no fim da primeira semana de agosto. No mesmo momento, o país também chegou a 3 milhões de casos registrados da doença. Com esses números, a Covid-19 ultrapassou doenças cardíacas e armas de fogo em seus níveis de letalidade.
O Brasil ultrapassou a marca de 100 mil mortos pelo novo coronavírus no fim da primeira semana de agosto. No mesmo momento, o país também chegou a 3 milhões de casos registrados da doença. Com esses números, a Covid-19 ultrapassou doenças cardíacas e armas de fogo em seus níveis de letalidade.

Não por acaso, o bairro de Rosana corresponde ao primeiro perfil. Nascido nos anos 80 no extremo leste de São Paulo, a 35 quilômetros do centro, Cidade Tiradentes concentra a maior quantidade de conjuntos habitacionais da América Latina.

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Detém o 10º pior Índice de Desenvolvimento Humano entre os 96 distritos da cidade, e 45% da população local tem renda de até dois salários mínimos. Por ali já foram registradas 270 mortes pelo coronavírus, o 12º maior indicador da cidade até o momento, segundo boletim mais recente da prefeitura.

A primeira vítima fatal da Covid-19 no país vivia há 15 anos em um apartamento de 36 metros quadrados no quinto andar de um desses prédios sem elevador. Dividia a casa com o marido, auxiliar de limpeza, e um filho de 19 anos, que tem atraso de desenvolvimento e epilepsia. Nos últimos anos, Rosana deixou o trabalho de diarista para cuidar do rapaz. Ela tinha ainda outras duas filhas.

— Ela sempre fez tudo, levou a médico, correu atrás de tratamento para ele a vida toda — diz a filha Thaís, de 26 anos, que assumiu os cuidados do irmão. — Foi muito difícil contar para ele. Ele ainda chora de vez em quando, a gente conversa. A saudade vai ser para sempre.

De família católica, Rosana frequentou igrejas evangélicas, mas já não ia aos cultos, concentrada nos cuidados do filho e na saúde da mãe, a quem também era muito ligada.

Resultado tardio

A suspeita dos familiares de Rosana é de que ela se infectou em alguma das idas frequentes a médicos com o filho ou no próprio hospital em que a mãe esteve duas ou três vezes antes da internação, já com queixas de problemas respiratórios. Rosana sempre a acompanhava. As duas acabaram internadas na mesma UTI.

— Minha mãe sempre teve a saúde delicada. Mas não estava com sintomas de Covid. Foi piorando no decorrer do dia. Começou a reclamar de falta de ar. Estava cansada, com a boca ressecada. Os médicos mediram a saturação e estava muito baixa. Pediram tomografia, e ela teve que ser internada às pressas. Um médico me disse que suspeitava de H1N1, mas que iriam fazer exame de Covid. Ainda não havia essa explosão de casos — lembra Thaís.

A primeira avaliação médica no Hospital Municipal Doutor Cármino Caricchio à época indicou broncopneumonia e doença pulmonar obstrutiva crônica. O resultado do exame para Covid-19 colhido em 12 de março foi confirmado no fim de abril. Foram quarenta dias até sair o resultado. A demora na confirmação da primeira morte pela doença é um emblema da falta de testagem que dificultou o combate à pandemia em suas primeiras semanas no país.

A Secretaria Municipal da Saúde diz que o material foi colhido no dia do óbito, enviado ao Instituto Adolfo Lutz, ligado ao estado, e que o hospital recebeu o aviso do resultado positivo em 30 de abril. O Adolfo Lutz afirma que recebeu a amostra para análise no dia 17 de março e cita a "complexidade de análise de diferentes vírus" respiratórios para a demora no resultado.

Gertrudes morreu três dias depois de Rosana. O diagnóstico de Covid-19 também demorou a sair. Elas não foram as únicas da família abatidas pela doença. Em um prazo de 40 dias, partiram também Emerson, irmão de Rosana, e Rose, irmã. Julio, o pai de Rosana, morreu de "descuido e tristeza", diz Thaís. Nesse período, a família continuou convivendo sem saber dos riscos.

— Não sabemos quem pegou primeiro. E ninguém fez exame porque não se sabia muito sobre a doença no início. Quando minha avó foi enterrada, todos estavam no velório sem máscara — descreve a auxiliar administrativa Jéssica Urbano, sobrinha de Rosana.

A filha Thaís diz que só não pegou Covid por "misericórdia" de Deus. Foi ela quem vestiu a mãe para o velório. E se despediu da avó com um beijo.

— Ninguém nos falou do resultado do exame da minha mãe. É muito triste. A gente espera ao menos ser amparado — diz Thaís, que hoje tem potes de álcool gel em cada cômodo da casa e toda a família usa máscara.

No prédio de Rosana, situado em uma rua pacata no topo de um dos morros de Cidade Tiradentes, os moradores ficaram surpresos ao serem informados nesta semana pela reportagem de que a vizinha havia morrido por causa do novo coronavírus.

— Uns quatro dias antes dela morrer, fui acompanhar um serviço na caixa d'água e precisei usar o alçapão que fica bem na frente do seu apartamento. Ela me disse que estava se sentindo muito mal, com pressão alta. Falei que deveria procurar um médico. Logo depois, soube da morte, mas não sabia que tinha sido pelo coronavírus — afirma o síndico do prédio, José Miguel de Santana.

Não é estranho que os moradores do conjunto habitacional de Cidade Tiradentes tenham se surpreendido. Até junho, a informação oficial era de que a primeira morte por coronavírus no Brasil havia ocorrido no dia 16 de março, de um homem de 62 anos internado no Hospital Sancta Maggiore, também em São Paulo.

Os dados sobre óbitos são atualizados diariamente a partir das notificações enviadas por estados e municípios. Naquele mês, o Ministério da Saúde fez uma revisão das informações. Nessa ocasião, a morte de Rosana, em 12 de março, passou a constar no sistema. Nesta semana, a pasta validou a informação ao GLOBO.

No início, a pandemia do coronavírus no Brasil foi associada principalmente às camadas mais ricas da população, sobretudo entre aqueles que haviam visitado a Europa recentemente. A confirmação da morte de Rosana como a primeira do país revela a real face da pandemia no Brasil e seu peso entre os mais pobres.

O primeiro paciente diagnosticado com a doença foi um empresário de 61 anos que havia visitado a Itália a trabalho em fevereiro. Rosana morreu apenas 15 dias depois da confirmação da chegada da Covid-19 ao país, o que torna ainda mais difícil para sua família entender como o vírus atingiu uma moradora do extremo Leste de São Paulo.

Atendido no Albert Einstein, um dos melhores hospitais do país, o paciente número 1 não chegou a ficar internado e foi declarado curado em 13 de março, mesmo dia em que ocorreu a cremação de Rosana.

Para o geógrafo Ricardo Barbosa da Silva, professor no campus Zona Leste da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a letalidade do vírus foi acelerada pelas disparidades socioeconômicas do Brasil:

— Quando a Organização Mundial da Saúde declarou pandemia, a faixa etária elevada era a característica mais apontada como vulnerabilidade. Depois começaram a falar das comorbidades. Mas a desigualdade foi determinante para aumentar a vulnerabilidade à doença no Brasil — afirma.

Essa desigualdade se expressou na combinação entre territórios periféricos e ausência de infraestrutura, serviços essenciais e acesso à saúde.

— Os primeiros dados mostravam como o contágio era maior nas áreas centrais e ricas. Em contraposição, os óbitos foram crescendo nas áreas mais pobres e periféricas — diz o geógrafo.

Mas a disparidade não surgiu com a pandemia. Ela foi sempre constante em espaços segregados, em que há muito tempo a população sofre com problemas diversos, pontua Silva:

— Vivemos em um país com desigualdades historicamente conhecidas, em vários âmbitos: de renda, racial, de acesso a bens e serviços públicos. A Covid só tornou tudo isso mais evidente.