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Passageiros de navio com surto de Covid testam positivo após desembarque e relatam caos em cruzeiro da MSC: 'Eles perderam o controle total', diz mulher que estava a bordo

Doença, brigas, desinformação e falta de serviços básicos compõem o drama vivido em viagem: 'Está mais para cárcere privado do que isolamento', relata irmã de confinada em cabine
A fotógrafa Bárbara Francisco disse que a situação saiu do controle Foto: Reprodução
A fotógrafa Bárbara Francisco disse que a situação saiu do controle Foto: Reprodução

Tinha tudo para ser um grande Réveillon: os passageiros que embarcaram no navio MSC Splendida em 26 de dezembro, no Porto de Santos, em uma viagem em cruzeiro que duraria uma semana e culminaria na festa da virada em Copacabana, no Rio, viram o sonho ruir de um dia para o outro. Na última terça-feira (28), eles não desceram na parada de Balneário Camboriú (SC) por conta de casos confirmados de Covid-19 a bordo. A escala no Rio foi cancelada e eles tiveram de retornar ao Porto de Santos na quinta, onde ficaram ancorados até começarem a ser liberados, entre ontem e hoje, para desembarque.

A virada do ano foi sobre o mar, no navio, para a maioria dos passageiros, confinados pelo surto. Mas se, para uns, a festa seguiu animada, com aglomeração e sem máscaras como se nada estivesse acontecendo, outros relataram o "sufoco" da viagem, com confinamento em cabines, onde havia pouca oferta de comida e serviços precários (como o de coleta de lixo); desinformação sobre os rumos do navio e o retorno seguro para casa; muitas brigas entre tripulantes; e passageiros que entraram no navio com resultados negativos para o coronavírus e saíram infectados.

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"Já são três dias e duas noites confinadas a bordo mesmo testando negativo para Covid. (...) Não temos acesso a nenhuma informação. Não temos ideia do que está acontecendo dentro ou fora do navio", desabafou a aposentada Viviane Cardoso, em post no Facebook ontem, dia 31 de dezembro.

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Segundo Viviane, que viajava com a filha Vitoria Cardoso no cruzeiro, os ramais de telefone oferecidos pela empresa estavam "sempre ocupados" e elas não conseguiam pedir ajuda, em plena véspera de Ano Novo. Viviane também relatou que não havia limpeza dentro das cabines, que o lixo se acumulava, e que a comida ofertada era pouca. Após ficar sem o jantar, ela mostrou fotos do que teria sido o café da manhã: três pãezinhos pequenos e café. "A alimentação, se não for pedida (ramal sempre ocupado) não está chegando até nós. Quando chega está fria. Hoje pela manhã recebi este café da manhã. Não temos escolha. Ou comemos isso ou não comemos nada", disse.

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Indignada com toda a situação vivida pela família, a irmã de Viviane, Cristiane Cardoso escreveu ""Minha irmã continua confinada dentro do navio #mscsplendida, aliás está mais para cárcere privado do que isolamento, já tentamos de tudo, até a polícia", disse, consternada. No fim da manhã deste sábado (1), ela exibiu uma notícia do Portal G1 sobre o caso e disse "E foi assim que ela conseguiu sair do navio!!!".

Postagem de Viviane nas redes sociais Foto: Reprodução
Postagem de Viviane nas redes sociais Foto: Reprodução

'Muita gente que saiu de lá  depois fez o teste e deu positivo'

Também pelas redes sociais, a fotógrafa Bárbara Francisco, que estava embarcada no navio junto com o marido, relatou o caos dentro do navio e afirma que a situação saiu do controle da MSC Cruzeiros. Após uma noite "recuperando-se do bode", Bárbara contou o que viveu nos dias em que esteve no navio. "Ocorreu um surto dentro do cruzeiro. Nós fomos já sabendo que poderia contecer isso, e infelizmente aconteceu. Havia muitos casos, a tv não deu a dimensão do problema. Você precisava de teste negativo para entrar, mas por n questões, como um falso negativo ou teste falsificado, a coisa aconteceu. A galera do cruzeiro anterior já começou a apresentar casos, então acredito que a tripulação tenha pegado bastante da viagem anterior, mas não tem como saber", diz Bárbara que conta que trabalha com crianças e grávidas e se organizou para voltar a atender seus clientes só no final de janeiro, para o tempo de ter uma quarentena.

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Sobre o fato dos passageiros ficarem ou não confinados, e sobre o controle da empresa do trânsito de contaminados ela diz que "no começo, acho que até teve, mas depois que começou o surto, não tinha mais como controlar. Estava uma bagunça lá dentro, a gente estava no cassino e havia um cara com Covid jogando, o segurança foi lá e pegou ele, eles não tinham o controle total", narra, acrescentando que houve várias "tretas" entre tripulantes e passageiros, com pessoas gritando e brigando para sair do navio, a condição de assinatura de um termo de responsabilização para quem desembarcasse por conta própria, entre outras situações tensas. "Gente, saiu do controle total... Eles falaram que eram poucos casos, mas tinham muitos. A gente passava nos corredores, tinham aqueles caras de branco tipo astronauta, levando comida nos quartos. Estou num grupo de whatsapp de quem viajou e muita gente que saiu de lá, depois fez o teste e deu positivo", afirma.

Televisão fora do ar para evitar notícias sobre Covid

O empresário Juliano Ribeiro foi uma das pessoas selecionadas, dentro do navio, para fazer o teste, no dia 27, como parte da amostragem de 10% da tripulação. Ele afirmou que jamais recebeu a resposta do resultado, então presumiu que teria dado negativo. Mas neste sábado, ao desembarcar, ele e a esposa Aline Ribeiro decidiram fazer novos exames, e o seu resultado foi positivo.

O empresário Juliano Ribeiro testou positivo no dia do desembarque, já em terra Foto: Reprodução
O empresário Juliano Ribeiro testou positivo no dia do desembarque, já em terra Foto: Reprodução

— No desembarque, recebemos uma carta, pra assinar, dizendo que um médico nos orientou a fazer exame ou a ficar cinco dias em casa, mas não recebemos nenhuma visita de médico não. Então nem assinamos carta —  disse Ribeiro, que ainda informou que, por alguns dias, o canal da TV Globo foi retirado do ar, nas televisões dos quartos, para evitar que as pessoas vissem notícias sobre surto de covid no navio. — Quando o cruzeiro parou em Balneário Camboriú, mas não descemos, já desconfiamos que poderia ter a ver com Covid. Mas só foram comunicar aos passageiros quando já estávamos a caminho de Santos, no dia 29. E nunca falaram a quantidade de hóspedes infectados.

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Ribeiro ainda disse que, enquanto alguns passageiros ficaram isolados, nos últimos dias, o restante continuou a aglomerar nas áreas comuns, fazendo festas. O que ele acredita que deve ter proporcionado novas infecções.

— Era aglomeração total — disse o empresário, que, por outro lado, considerou a Anvisa como a principal culpada pela situação. — Vimos na mídia que a Anvisa liberou a excursão anterior, desse mesmo navio, a desembarcar mesmo com pessoas infectadas. Então acho que já deviam ter barrado ali, mas como liberaram, propagou o vírus. E eles também não exigiram nenhum teste hoje, no desembarque.


'Aglomeração era assustadora'


A professora e advogada Juliana Christofani dos Reis está grávida de 15 semanas mas, antes de ter a noticia , decidiu, junto ao marido, comprar passagem para uma viagem de  cruzeiro ao pesquisar os relatos positivos de excursões recentes.  Inicialmente, fariam uma viagem internacional, passando por Argentina e Uruguai, mas o destino foi alterado em novembro, por recomendação da Anvisa. Ao embarcarem no Splendida, as primeiras horas foram de impressão positiva, porque o navio ainda estava vazio. Mas em pouco tempo a felicidade se transformou em angústia, ao perceberem o nível de aglomerações no cruzeiro, e de falta de medidas de segurança.

— Os elevadores estavam sempre cheios, buscávamos usar as escadas. A aglomeração era assustadora. Os protocolos não eram respeitados, faltava a disponibilização de álcool em gel e máscaras. Antes do jantar, eu e meu esposo sempre íamos num bar vazio, pois não tinha música ao vivo e outras atividades, e acabamos fazendo amizade com o bartender. Como disse que estava grávida,  nesse dia ele falou: "não deixe de usar máscara para proteger sua bebê, tem mais casos do que estão falando!". Isso me assustou — explicou Christofani.

Imagens de aglomeração no navio Foto: acervo pessoal
Imagens de aglomeração no navio Foto: acervo pessoal



Na noite do dia 29, seu esposo começou a sentir febre e então eles decidiram buscar atendimento, mas receberam a resposta de que os testes não estavam mais sendo realizados aquela hora, porque o médico não estaria mais disponível. No dia seguinte, após reclamações junto com outros passageiros, conseguiram desembarcar, e então fizeram testes em terra: ela deu negativo e ele positivo. Precisaram, então, passar a virada do ano separados.

— O que era um sonho se tornou um pesadelo! Um risco para minha família, especialmente minha filha! Acompanhamos o grupo de Whatsapp do navio e vimos o desespero de alguns hóspedes que queriam sair e não conseguiam — disse Christofani.

Outra passageira, Lisney Daniele, fez um teste neste sábado e o resultado foi negativo, assim como do seu filho. Mas ela reclamou da viagem.

— O atendimento em geral não foi bom. Todos os funcionários, tripulantes, estavam sobrecarregados e estressados, devido à ausência de muitos em isolamento. Houve muitas omissões de informaçoes, que acabaram deixando todos estressados, na expectativa de seguir com a viagem, o que gerou grande frustração — disse Lisney, que ainda destacou que não conseguiu atendimento para seu filho, durante a viagem, mesmo com sintomas. — Levei ele no hospital, e recusaram o  atendimento devido a quantidade de pessoas que estavam infectadas lá dentro, e por ele não usar máscara (pois ele é autista). Por fim mediquei ele por conta própria, com os medicamentos emergenciais que costumo levar quando viajo.

O navio MSC Splendida saiu do Porto de Santos no dia 26 de dezembro e, ao longo de 7 fiass, percorreria Porto Belo, Balneário Camboriú, Rio de Janeiro e Ilhabela, voltando para Santos. Outro navio, Costa Diadema, em cruzeiro atracou em Salvador e também teve sua viagem suspensa. Após a confirmação de casos de Covid-19 nas embarcações, a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomendou ao Ministério da Saúde a suspensão provisória da temporada de cruzeiros no país.

MSC defende protocolo

Em resposta ao GLOBO, a MSC Cruzeiros não informou o número exato de passageiros e tripulantes com casos confirmados de Covid-19 até o momento, mas se pronunciou sobre a situação do Splendida: "Como parte da nossa rotina de monitoramento de saúde, que inclui testagens frequentes e diárias de 10% de todos os hóspedes e tripulantes do navio, ação que integra nosso protocolo de saúde e segurança, líder do setor, identificamos um número limitado de casos de COVID-19 entre os hóspedes e tripulantes do MSC Splendida. Conforme definido pelo protocolo, isolamos imediatamente estas pessoas e seus contatos próximos em uma seção dedicada e separada do navio, longe de todos os outros passageiros e em cabines com varanda, seguindo as medidas previstas para este tipo de situação." A empresa informa, ainda, que realizou uma escala técnica em Santos no dia 30 de dezembro, providenciando o desembarque "em segurança" de todos os casos confirmados e seus contatos próximos, com transporte dedicado e exclusivo.

A nota acrescenta que "Todo o processo foi realizado com a aprovação e acompanhamento das autoridades responsáveis, que têm seguido com suas análises e avaliações epidemiológicas. Devido ao impacto causado no roteiro programado, decidimos, em conjunto com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, pelo cancelamento do cruzeiro atual e oferecemos aos hóspedes as opções de uma carta de crédito no valor do cruzeiro original, que pode ser resgatada em qualquer cruzeiro futuro até o dia 31 de dezembro de 2022, ou o reembolso total dos valores pagos pelo cruzeiro, além do reembolso dos pacotes pré-pagos (bebidas, excursões, etc.), proporcionalmente aos dias não utilizados. Os hóspedes começaram a desembarcar de forma escalonada ontem, e o processo de desembarque continua durante o dia de hoje. Todos que não foram testados nas últimas 24 horas serão testados. A MSC Cruzeiros está dando suporte aos hóspedes, incluindo logística e hospedagem, conforme necessidade e demanda."