Blog do Acervo
PUBLICIDADE
Blog do Acervo

O passado com um pé no presente.

Informações da coluna

William Helal Filho

Jornalista formado pela PUC-Rio em 2001. Entrou na Editora Globo pelo programa de estágio, foi repórter e editor. Hoje é responsável pelo Acervo.


Césio 137: Leide das Neves, de 6 anos, morreu contaminada por radiação — Foto: Arquivo pessoal
Césio 137: Leide das Neves, de 6 anos, morreu contaminada por radiação — Foto: Arquivo pessoal

O prédio onde havia funcionado o Instituto Radiológico de Goiânia estava em ruínas. Não tinha portas, nem janelas, e o mato crescia por toda a parte. Diante da situação de abandono, dois rapazes entraram no terreno e recolheram de lá tudo o que parecia ter algum valor no mercado da sucata. Entre outros itens, eles pegaram um equipamento médico sem ter ideia de que, dentro do aparelho, havia uma cápsula contendo césio 137, um isotopo altamente radioativo. Aquele seria o gatilho para uma tragédia com origem na forma irresponsável com que o material nocivo fora largado no prédio.

No dia 13 de setembro de 1987, há exatamente 35 anos, o equipamento foi vendido a um ferro-velho no Setor Central de Goiânia. Sem noção do perigo que aquilo representava, Devair Ferreira, dono do estabelecimento, abriu a peça com o objetivo de aproveitar o chumbo do seu revestimento. Dentro da geringonça, anteriormente usada para a realização de exames médicos, Devair encontrou um pó que emitia luz azulada. Ficou curioso e continuou explorando o material com os olhos e as mãos, sem saber do que se tratava. Eram, na verdade, 19,26 gramas de cloreto de césio 137.

Daí em diante, o perigo se alastrou. Devair levou um pouco do pó para casa e, dias depois, ele e sua mulher, Maria Gabriela, apresentaram sintomas típicos de radiação — diarreia, náuseas, tontura e vômito. Irmão do pequeno empresário, Ivo Ferreira foi visitar o parente e também saiu de lá carregando uma parte do césio, sem saber que era a causa da doença de Devair. Chegou em casa e foi mostrar para os filhos. Eles apagavam as luzes do quarto e ficavam encantados com o brilho azul do material. Dias depois, adoeceram. A primeira a se sentir enjoada foi a caçula Leide das Neves, de 6 anos.

Césio 137: Maria Gabriela no hospital, dias antes de morrer por radiação — Foto: Arquivo/Polícia Federal
Césio 137: Maria Gabriela no hospital, dias antes de morrer por radiação — Foto: Arquivo/Polícia Federal

Nos postos de saúde e hospitais de Goiânia, as pessoas expostas ao césio foram medicadas como se tivessem uma doença convencional. A hipótese de radiação não foi sequer cogitada. Somente 17 dias depois da abertura da cápsula no ferro-velho de Devair, a contaminação por césio foi identificada, e o caso ganhou as páginas de jornais. Mas, então, era tarde. Aquele seria considerado o maior acidente radioativo fora de uma usina nuclear no mundo, devido ao número de pessoas afetadas.

Em sua edição de 1º de outubro de 1987, O GLOBO noticiou na primeira página: "Acidente radiativo fere 17 em Goiás". A comprovação da suspeita de contaminação se dera no dia anterior, a partir da análise de cientistas e técnicos da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), com sede no Rio. No dia 3 de outubro, Maria Gabriela Ferreira e a pequena Leide foram transferidas para o Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio, onde poderiam receber um tratamento mais adequado.

Mas não foi possível salvá-las. A mulher de Devair foi a primeira a morrer, pela manhã de 23 de outubro. Ela adoecera três dias depois de entrar em contato com o material. Ao longo das semanas seguintes, a vitima desenvolveu hemorragia interna em várias partes do corpo e perda de cabelo.

Césio 137. A pequena Leide das Neves no leito do hospital, no Rio — Foto: José Doval/Agência O GLOBO
Césio 137. A pequena Leide das Neves no leito do hospital, no Rio — Foto: José Doval/Agência O GLOBO

Horas depois, a pequena Leide também sucumbiu. A criança, que chegara a ingerir um pouco do césio, apresentou inchaço na parte superior do corpo, danos em órgãos vitais e hemorragia interna. Sua morte gerou comoção. No Dia das Crianças, naquele mês, ela havia recebido várias bonecas de presente e brincava com elas o tempo todo, até que as sequelas da radiação não mais permitiram. No seu enterro, em Goiânia, houve protesto de milhares de pessoas temendo que o corpo da menina contaminasse o solo. Ela foi sepultada apenas dias depois, em um caixão de chumbo lacrado.

Outras duas mortes aconteceram ainda em outubro: Israel Batista dos Santos, de 20 anos, e Admilson Alves de Souza, de 18, eram funcionários do ferro-velho. Ao longo dos anos seguintes, de acordo com a Associação das Vítimas do Césio 137, mais de cem pessoas morreriam por causa do acidente, devido a câncer e outros problemas. Uma delas foi o próprio Devair. Ele sobreviveu aos efeitos imediatos da radiação, mas, ao longo dos anos, desenvolveu depressão, alcoolismo e faleceu, em 1994, por cirrose hepática. Já o irmão dele, Ivo, começou a fumar em excesso e faleceu de enfisema pulmonar. Segundo parentes e amigos, ambos estavam tomados por tristeza e culpa.

A descontaminação da região produziu 13.500 toneladas de lixo atômico, cujo perigo para o meio ambiente é de 180 anos. O material foi depositado em 14 contêineres e enterrado sob uma parede de um metro de espessura de concreto e chumbo, no município de Abadia de Goiás. A CNEN mandou avaliar toda a população local. No total, mais de mil pessoas haviam sido expostas, muitas de forma superficial, e sua contaminação foi revertida a tempo. Mas dezenas de vítimas ficaram com sequelas e, anos depois, denunciaram a situação de abandono em que se encontravam, sem tratamento.

Cinco pessoas foram condenadas por homicídio culposo devido à forma como o equipamento contendo o material radioativo foi deixado nas ruínas do Instituto Radiológico de Goiânia. Entre elas, quatro eram profissionais ligados ao instituto e um era proprietário do prédio abandonado.

Césio 137. Presidente José Sarney visita vítimas do acidente radioativo, em 1987 — Foto: Arquivo/EBN
Césio 137. Presidente José Sarney visita vítimas do acidente radioativo, em 1987 — Foto: Arquivo/EBN
Césio 137. Tambores para coleta de lixo contaminado, em Goiânia — Foto: Jamil Bittar/Agência O GLOBO
Césio 137. Tambores para coleta de lixo contaminado, em Goiânia — Foto: Jamil Bittar/Agência O GLOBO
Césio 137. Protesto durante enterro da criança Leide das Neves — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Césio 137. Protesto durante enterro da criança Leide das Neves — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Mais recente Próxima