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Por — São Paulo

Meu pai, Edoardo Luciano Marras, era imigrante italiano. Minha mãe, Ruth São Juliano Marras, mineira de Poços de Caldas. Ele faleceu em 1981. Ela, em fevereiro de 2024. Tiveram quatro filhos. O caçula, Leandro Tullio Marras, faleceu em agosto de 2022. Era ele quem, nos últimos 20 anos, apaixonadamente tocava esse cinema (que funciona no imóvel doado à USP, avaliado em R$ 25 milhões).

Durante nove anos, na década de 1970, meu pai construiu esse prédio hoje doado em meu testamento para o Fundo Diversa, destinado a bolsas de permanência estudantil para grupos minoritários, sobretudo cotistas sociais e raciais e em situação de vulnerabilidade socioeconômica, que integra o Fundo Patrimonial da USP.

O prédio abriga no térreo um cinema de rua e, acima, apartamentos. Meu pai o construiu a duras penas, pensando no futuro dos filhos. Já era homem de idade, tinha 50 anos quando se casou com minha mãe, então com 18 anos, e queria garantir alguma segurança para a família.

Meu pai nasceu muito pobre, em Torino, em 1906. Órfão de pai, foi criado pela avó. Só veio a conhecer a mãe, minha nona, aos 18 anos. Ele a trouxe para Poços de Caldas e cuidou dela até o fim de sua vida.

Ainda jovem, na Europa, ele se tornou às próprias expensas um artista pintor. Viajou mundo afora, sobretudo para estâncias balneárias da Belle Époque, retratando os chamados elegantes de estação. Meu mestrado na pós-graduação da antropologia social da USP, que ganhou o prêmio nacional de melhor dissertação de mestrado em Ciências Sociais, em 2003, e foi publicado em livro pela Editora da UFMG, tratou desse fenômeno, com foco na estação balneária de Poços de Caldas.

Foi em Poços que meu pai veio se instalar, por volta de 1938, quando a cidade gozava o auge de sua vocação balneária graças às águas sulfurosas termais destinadas ao deleite e desfrute das elites do Brasil que para lá afluíam nas temporadas atrás de lazer e cura.

— Acho que já vivi o bastante para saber, com clareza solar, que quem quer ter tanto dinheiro já foi tido pelo dinheiro, essa feitiçaria ruim — Stelio Marras

Meus pais nunca foram consumistas. Nunca ostentaram qualquer signo social de classe, nunca quiseram cultivar qualquer pertencimento a elites locais. Nada de automóvel, roupas caras, restaurantes chiques ou mesmo viagens.

Para construírem, durante nove anos, o prédio que foi doado à USP, viveram com moderação, sobriedade e comedimento, que era mesmo o mais natural neles, o mais condizente com suas biografias e suas formações sociais. Isso é o que de mais importante herdei deles. Isso me fez saber e gostar de viver materialmente com pouco.

O que recebi da herança material demanda um alto custo para mim, porque fiquei endividado com irmãos para que o prédio que doei ficasse apenas em meu nome, além de assumir altas custas advocatícias com inventários e partilha de bens, impostos de transmissão, custos de regularização, registros e averbações, manutenção do imóvel, IPTU etc.

Acredito que aos poucos vou quitar essas dívidas, nos próximos anos. Mas o importante é que, se morrer amanhã, esse prédio doado não irá continuar entre descendentes de minha família, que são queridos, mas já têm o bastante. Ademais, legar ainda mais recursos para eles não seria o melhor que eu poderia lhes transmitir.

Se morrer amanhã, então, o prédio será imediatamente transferido para esse fundo da USP. Então já posso morrer. Mas quem sabe Nossa Senhora da Aparecida me dê mais uns 20 aninhos para continuar tentando mais colaborações para a sociedade, em tempos de ataques e ódio às ciências e à cultura.

Até dá para entender os reacionários ideológicos que destilam esse ódio. Eles sabem, ou pelo menos pressentem, o quão transformador para o mundo e para as pessoas em condição vulnerável é esse vetor da educação, da cultura, do conhecimento. Não à toa, a universidade pública vem felizmente mudando de cor, de classe social e de agenda.

Saber viver com simplicidade e modéstia, quero reiterar, é a maior herança que eu recebi de minha mãe, de meu pai e de meu irmão caçula. Viver a morte deles, cujo luto ainda me é muito doído, é viver a minha própria morte. Não há nada de mórbido ou macabro nisso. Tenho 54 anos, boa saúde e gosto de viver. Mas estou convencido de que encarar a morte é uma liberação para a melhor vida que eu posso levar.

Ser amigo da morte não é me entregar a ela. Acho bem o contrário. Já entendo que dar as costas à mortalidade é um modo perverso de perpetuar a concentração de riqueza. Por paradoxal que pareça, é uma espécie de negacionismo da vida e da sociedade que lhe dá suporte. Para mim, um caminho para se recuperar solidariedade no Brasil e no mundo me parece ser esse de encarar nossa condição mortal.

O que eu gosto mesmo é de viver cercado dos meus bons amigos e de meus alunos, cercado de bons afetos e das plantas que cultivo em dezenas de vasos. É isso que me dá alegria e leveza. Acho que já vivi o bastante para saber, com clareza solar, que quem quer ter tanto dinheiro já foi tido pelo dinheiro, essa feitiçaria ruim.

De mais as mais, eu pergunto: que seria isso de viver numa ilha milionária cercada por um mar de pobreza e miséria? Deus me livre. Isso seria apenas brega ou cafona, uma verdadeira aberração estética, se não fosse ainda muito pior, se não se alimentasse de muitos vícios e espalhasse tanta desvirtude, como quando se vê gente esnobando riqueza no país “enfermo de desigualdade”, para falar com Darcy Ribeiro. Viver como um milionário é viver contra a sociedade e contra o ambiente.

Quando eu anunciei, no ano passado, que faria essa doação, alguns me sugeriram que, em vez disso, quitasse tudo que seria preciso quitar e fosse viver uma vida larga. Nem considerei uma tal coisa. Outros, mais lúcidos, sugeriram que eu criasse uma fundação com meu nome ou sobrenome de minha família. Ainda que eu reconheça que isso possa ser algo virtuoso, eu não gostaria que esse meu gesto nem de longe se confundisse com glorificação de meu nome ou dos meus.

Quero honrá-los, não glorificá-los. Não quero entronizá-los como fossem heróis com aura de divindade. Ou, para dizer numa fórmula poética, a de Fernando Pessoa via Álvaro de Campos: “Arre, estou farto de semideuses”.

Quero ainda dizer que desde que essa minha doação se tornou pública, muitas pessoas, conforme eu vou notando nos comentários qualificados que tenho recebido, se mostram bastante surpresas, quando não confusas, com o fato de eu renunciar ao desfrute de uma fortuna. É como se a filantropia, ainda mais quando dá as caras, beirasse as raias do exótico no Brasil. Mesmo muito das tantas pessoas gentis e gratas pelo meu ato de doação, mesmo elas, sensíveis a ondas de solidariedade e empatia com os mais necessitados (pois não é só o ódio e o desamor que viralizam), mesmo elas demonstram grande dificuldade em compreender essa minha renúncia

Eu mesmo, desde que meu pai morreu em 1981, poderia ter vivido muito bem apenas ampliando negócios e rendimentos da herança. Mas lá fui eu fazer teatro, lá fui eu fazer ciências sociais, me formar antropólogo e me tornar professor. Notei cabalmente que essa opção contraintuitiva dá uma espécie de 'tilt' na cabeça das pessoas. Renunciar a viver como um rico e optar pela vida de professor no Brasil? É como se fosse uma desrazão.

Retomo, por fim, os efeitos da repercussão nacional desse meu ato. Sim, eu sabia que essa doação poderia trazer perturbações e angústias, como de fato tem sido, mas resolvi encarar porque essa publicização poderia ter o condão de estimular mais doadores a uma causa mais que justa, urgente e necessária, e junto a uma instituição séria e idônea. Felizmente, isso parece estar acontecendo, a julgar pelo que o Fundo da USP informa sobre maior procura desde então.

Infelizmente, contudo, o preço que tenho pago por essa grande exposição é alto: gente me pedindo dinheiro, como se eu não estivesse endividado, perda de meu relativo anonimato de cidadão comum, coisa que tanto prezo, medos vários, ativação de crises de pânico, que eu não tinha há anos. E tudo isso em ambiente, sobretudo das redes sociais, altamente tóxico e perigoso – e ainda mais considerando-se os ódios latentes e manifestos contra quem é do campo progressista e democrático, como eu.

Penso não ser preciso lembrar que gestos solidários, motivados por indignação a injustiças sociais persistentes, tornaram-se alvo de ensandecidos e insanos. Baste indicar o que vem acontecendo, por exemplo, com o padre Julio Lancellotti.

Creio que, em parte, essa desproteção a que me vi exposto se explica por certo descuido em não se divulgar claramente, ou com a devida ênfase, que hoje sou um professor que acumulou dívidas para que esse imóvel doado em testamento venha a se tornar completamente regularizado, registrado e averbado, incluindo despesas de conservação e mil tributos. Eu vivo de meu salário de professor. Esse salário tem sido comprometido para que eu consiga, pouco a pouco, dar conta dos referidos custos.

Como renunciei a ficar rico, não conto, e espero não precisar contar, com proteções que ricos costumam ter. Daí meu recuo em continuar me expondo tanto. Eis porque, enfim, aproveito aqui para, com isso, justificar minha recusa para novas entrevistas e matérias sobre o assunto. Agradeço o interesse de todos os demais veículos de mídia que têm me procurado, mas peço que compreendam os efeitos perturbadores que a viralização da notícia me tem causado, muito acima do esperado e, creio, pelas razões socioantropológicas que pude apontar aqui.

Sim, eu pude com tudo isso colaborar para a boa e justa causa, mas é hora de me retirar de cena. Hora de voltar à minha adorada clausura acadêmica e ao gosto do recato e do pensamento concentrado que exige uma boa medida de reclusão.

* Em depoimento a Guilherme Queiroz

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