A cidade de Muçum (RS) foi uma das mais afetadas pelas enchentes que encobriram o Rio Grande do Sul nos últimos dias. Em menos de um ano, o local foi tomado e destruído pela força da água três vezes, sendo a primeira delas em setembro de 2023. O município ainda tentava se reestruturar do baque e não estava preparado para uma nova tragédia. O prefeito Mateus Trojan (MDB) estima que cerca de 30% da área urbana precisará ser reconstruída em outro local.
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— Precisaremos remanejar de forma imediata a logística. Pelo menos 30% da cidade vai ter que ser reconstruída em outro lugar. Envolve muitos fatores, logística, recursos, é muito complexo, não acontecerá de uma semana para outra. Temos que avançar nas áreas que vamos precisar fazer em terraplanagem, ter o licenciamento. Isso demanda desapropriação de terras, além de aspectos culturais, de infraestrutura, água, e que vão além da capacidade financeira do município – elenca Trojan, que reforça a importância de ajuda federal e estadual.
Foram mais de 200 casas destruídas no ciclone de setembro do ano passado, e o prejuízo atual não foi sequer dimensionado ainda. Trojan também deixa claro que a cidade já tinha o planejamento de se reestruturar desde a última cheia, quando parte da população já foi realocada.
— Estávamos neste processo desde os eventos do ano passado. Já tínhamos feito a proibição de moradias nas áreas destruídas e removido quem estava em áreas com risco iminente, mas ainda era algo em desenvolvimento. O que foi destruído em 2023, as pessoas já estavam cientes que não era possível reconstruir no mesmo lugar. Agora é ir de encontro com os novos afetados, explicar o que vamos fazer, qual é o projeto, para tentar levar uma nova vida a essas pessoas — contou.
Devido aos temporais, o nível do Rio Taquari superou 25 metros e provocou a destruição de 80% da zona urbana e deslizamentos no entorno de Muçum. A prefeitura aponta que os 5 mil habitantes ficaram isolados por conta dos 748 mm de chuva registrados até o dia 4 de maio. Segundo Trojan, a cidade ainda tentava se reerguer diante do prejuízo de R$ 231 milhões do ano passado, mas a recuperação se encontrava limitada ao orçamento de R$ 38 milhões disponibilizado pelo governo estadual.
Ver a cidade destruída mais de uma vez em tão pouco tempo, diz o prefeito, desperta algo que vai além dos desafios pragmáticos e causa toda uma crise de identidade nos moradores.
– A gente se sente desiludido, desarmado de munição para conseguir combater um novo evento desse. E com um abalo emocional muito grande. Há uma perda do nosso senso de pertencimento à cidade, e também de autoestima do local em que a gente mora.
A população do município do Vale do Taquari temia por uma nova tragédia, mas não esperava que acontecesse de maneira tão próxima as outras, é o que conta a fotógrafa Carolina Sellmer, de 25 anos.
— Ninguém imagina que isso poderia acontecer tão depressa. A gente é avisado, se previne, mas tem coisa que é difícil de acreditar, né? Ainda era tudo recente, minha mãe tinha acabado de voltar a morar lá após passar um tempo comigo em Cachoerinha para se reestruturar. Eu fiquei três dias sem falar com ela, apreensiva, não sabia o que estava acontecendo porque a cidade ficou sem comunicação. Por sorte não perdemos nada dessa vez — disse ela.
Assim como a mãe de Carolina, o publicitário João Augusto Pelegrini, de 26 anos, ainda estava se restabelecendo após a última enchente, que aconteceu em novembro de 2023. Apesar dele e dos pais já estarem em alerta sobre uma possível cheia dias antes, não conseguiram tirar todos os itens de casa.
— Tínhamos voltado em fevereiro, com alerta ligado já e conseguimos tirar bem mais coisa dessa vez. Perdemos camas, geladeira e guarda-roupas, o resto salvamos, botamos nos carros, mas como não tínhamos onde deixar, só salvamos o que deu para levar em uma viagem— detalhou ele.
João também descreve que nesta cheia sua casa e entorno foi afetada pelo lodo vindo da água do rio e, por isso, ainda não conseguiu voltar de forma definitiva a residência. Além disso, conta que a questão psicológica também o tem abalado.
— Estamos fazendo a limpeza da casa. Tem muito mais lodo agora do que na enchente passada. Digo que está menos distribuído, parece que antes era uniforme em todos os locais e dessa vez tem ruas com menos e ruas com mais. Para tirar isso requer um trabalho braçal e como tem menos voluntários pelas vias ainda estarem fechadas, então é menos gente e mais trabalho para quem mora aqui. Além do físico, tem o cansaço mental, tu quer fazer, quer limpar, quer ver sua casa de novo, mas não tem forças, é muito difícil — lamentou ao GLOBO.
Devido ao impacto das águas, a área estipulada de 30% do território que precisará ser realocada também afetará a economia local. Na região, funcionavam indústrias de pequeno porte, estabelecimentos comerciais, e prestações de serviços, que serão remanejados, segundo Mateus, "não se sabe para onde". Os servidores da prefeitura tem atuado do Hospital Nossa Senhora Aparecida, único ponto com sinal de celular e energia graças a um gerador.
Na quarta-feira, a atriz Carol Bresolin visitou a cidade onde nasceu para poder auxiliar com resgates e doações. Ao chegar, encontrou a antiga casa que morava com seus pais quando criança completamente destruída, assim como boa parte do município.
*Estagiário sob supervisão de Alfredo Mergulhão