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Celina

Dia das Mães: 'Quero encontrar meu filho, vivo ou morto', diz mãe de um dos meninos desaparecidos desde dezembro em Belford Roxo

Tatiana Ribeiro e Mirtes Renata de Souza, duas mulheres negras que tiveram seus filhos arrancados de si pelo racismo e o descaso da sociedade, falam sobre a dor e a luta contra a desumanização de suas crianças
Racismo presente nas mortes e desaparecimentos de crianças negras no Brasil marca para sempre vida de mães que perdem seus filhos Foto: Arte de André Mello
Racismo presente nas mortes e desaparecimentos de crianças negras no Brasil marca para sempre vida de mães que perdem seus filhos Foto: Arte de André Mello

Este é o primeiro Dia das Mães que Mirtes e Tatiana passam sem os seus filhos. Miguel Otávio, filho de Mirtes Renata Souza, morreu em 2 de junho de 2020, aos cinco anos de idade, após cair do nono andar de um prédio de luxo no Recife (PE) enquanto estava sob os cuidados de Sari Corte Real, para quem a sua mãe trabalhava como empregada doméstica. O filho da dona de casa Tatiana Ribeiro, Fernando Henrique Soares,11 anos, está desaparecido desde 27 de dezembro de 2020, quando saiu para brincar com os amigos Lucas Matheus Silva, 8 anos e Alexandre da Silva, 10, em Belford Roxo, onde moram. Duas mulheres negras, duas mães, que neste domingo (9) compartilham dores e angústias semelhantes.

' Pensar que um filho sofreria o mesmo que eu me dá medo ': como o racismo impacta a decisão de jovens negras pela maternidade

— Está faltando um pedacinho de mim aqui, vai ser triste. Eu não sou mais a mesma, às vezes eu até penso em tirar minha vida. Porque ser mãe do Fernando era uma alegria. Eu cuidava muito dele, fazia de tudo para ver ele sorrindo — conta Tatiana, emocionada.

Todo domingo de Dia das Mães, ela ia com os três filhos almoçar na casa da mãe. A dona de casa brinca que, para Fernando, a melhor parte era se esbanjar com os quitutes feitos pela avó. Mais de quatro meses se passaram desde que Lucas, Fernando e Alexandre desapareceram. Com o caso praticamente paralisado por falta de provas sobre um possível paradeiro das crianças, a data, que antes era especial, será marcada pela angústia.

Mirtes também chora ao lembrar que não terá o pequeno Miguel ao seu lado neste domingo. Ela relembra com carinho as homenagens na escola e como o menino gostava de presenteá-la.

— É umas datas que dói muito para mim. Ele com certeza já estaria super animado, querendo comprar batom, perfume, pó para botar no meu rosto. Ele sempre dizia isso: “mamãe eu vou comprar um batom pra senhora.” Ele gostava de me ver arrumada. Acordava com ele me dando cheiro. Ele sempre lembrava. Sabia sempre do Dia das Mães. Dizia: “bora almoçar fora”. Era o dia de almoçar fora — relembra.

Familiares dos três meninos desaparecidos em Belford Roxo em encontro com autoridades do Estado em fevereiro. Lucas Matheus, 8 anos, Alexandre da Silva, 10 anos, e Fernando Henrique, 11 anos, saíram de casa na manhã de 27 de dezembro e não retornaram Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo
Familiares dos três meninos desaparecidos em Belford Roxo em encontro com autoridades do Estado em fevereiro. Lucas Matheus, 8 anos, Alexandre da Silva, 10 anos, e Fernando Henrique, 11 anos, saíram de casa na manhã de 27 de dezembro e não retornaram Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo

A dor e o trauma que Tatiana e Mirtes compartilham têm impactos individuais e coletivos, explica a doutora em psicologia social e psicóloga do Instituto AMMA Psique e Negritude, Clélia Prestes. Não só pela morte ou desaparecimento em si, mas pelo processo de desumanização ao qual essas crianças e suas mães são submetidas. E esse processo tem relação direta com a cor de sua pele.

— O impacto para essas mulheres é bastante intenso. Não só pela morte ou desaparecimento em si, mas pela desumanização que acontece com essas crianças. Processos semelhantes que acontecem com crianças de outros grupos sociais e raciais, a comoção é outra e as reivindicações de justiça têm outra intensidade — afirma.

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Desde que os meninos desapareceram, Tatiana não poupa críticas à Polícia Civil. De acordo com ela, apesar de o governo do estado ter prometido apoio às famílias dos meninos, o tratamento que recebem dos responsáveis pela investigação é o pior possível. O caso é investigado desde o fim de dezembro pela Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense. Desde então, as três famílias seguem cobrando respostas e realizando manifestações para que o caso ganhe visibilidade.

Logo no início da apuração, a Polícia Civil colheu gravações de câmeras de segurança e informou não ter encontrado imagens dos desaparecidos. No entanto, deixou passar uma cena na qual os meninos aparecem passando pela Rua Malopia, perto de onde moravam. O trecho do vídeo foi descoberto em março por especialistas do Ministério Público do Estado do Rio. Desde então, as famílias sofrem sem novas informações sobre o andamento das investigações.

Câmeras de segurança flagraram crianças em rua perto de suas casas no dia 27 de dezembro, quando sumiram. Crédito: Ministério Público do Rio
Câmeras de segurança flagraram crianças em rua perto de suas casas no dia 27 de dezembro, quando sumiram. Crédito: Ministério Público do Rio

Tatiana acredita que o descaso com a situação pode estar associado ao racismo e ao preconceito de classe. Para ela, é visível a diferença com que a polícia e a mídia tratam o caso do seu filho e do menino Henry Borel, morto em 8 de março, aos 4 anos.

— Eu não sei se é pelo dinheiro, pela cor ou pela fama, mas a relação é muito diferente. Depois desse caso, a gente ficou esquecido até na mídia, a gente se sente humilhada, desprezada. Eu quero encontrar meu filho, vivo ou morto — afirma.

A diferença no tratamento do caso dos meninos de Belford Roxo e do menino Henry, tanto pela polícia quanto pela mídia, também é percebida por Mirtes. Ela inclusive está escrevendo um artigo sobre o assunto para o Afroresistência, um dos coletivos em que começou a trabalhar desde a morte de Miguel.

— É uma questão de classe social e de racismo. O menino Henry foi morto e a polícia se empenhou de uma forma para resolver o caso que me deixou surpresa. O padastro e a mãe já estão presos e já finalizaram o inquérito. Já vamos para quatro meses do desaparecimento dos meninos de Belford Roxo e não está havendo nenhum empenho da polícia e da mídia em geral. Vejo uma diferença muito grande. E isso é muito triste. O quanto as mães dessas crianças estão sofrendo? — questiona.

Protesto pedindo justiça pela morte de Miguel Otávio Santana da Silva Foto: Guga Matos / Folhapress
Protesto pedindo justiça pela morte de Miguel Otávio Santana da Silva Foto: Guga Matos / Folhapress

Mirtes busca que sua ex-patroa, Sari Gaspar Corte Real, seja responsabilizada pela morte de Miguel . O menino morreu após cair do nono andar do prédio onde Sari mora e Mirtes trabalhava como empregada doméstica. No momento da queda, Mirtes tinha saído para passear com o cachorro da patroa, que deixou a criança sozinha no elevador e apertou o botão da cobertura. Sari responde na Justiça por abandono de incapaz que resultou em morte, com agravantes de cometimento de crime contra criança e em ocasião de calamidade pública. Mirtes pede por “coerência” no processo e reclama da estratégia da defesa da acusada, que segundo ela, tem tentado pintar Miguel como “responsável pela própria morte”.

— Eu nunca admiti e até hoje não admito que falem mal do meu filho. Nenhuma mãe admite. Querem sujar a imagem do meu filho. É isso que estão querendo fazer ao dizer que Miguel era uma criança impossível, mal-educada, muito levada e muito esperta, e que, na verdade, Sari é a vítima dele — diz Mirtes.

A psicóloga Clélia Prestes explica que as crianças negras passam por um processo de “adultização” e “desvalorização” ao longo da vida e até mesmo, após a morte, e são vistas como “mais arteiras, dadas à sexualidade” e passíveis de responsabilização por qualquer violência que sofram.

— A adultização, animalização e desvalorização de crianças negras se dá o tempo inteiro. Não começa e não termina no assassinato dessas crianças. Essa mãe lida não só com a perda do filho, do seu corpo, da convivência, mas também com a perda da imagem do filho como cidadão — explica.

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Tatiana, mãe de Fernando, passa por situação semelhante ao se ver constantemente tendo que defender a integridade do seu filho desaparecido.

— Ele era uma criança bem carinhosa, brincava muito comigo, as vizinhas gostam dele, ele era bom, nunca mexeu nas coisas de ninguém e sempre me falava que ia ser trabalhador, me enchia de orgulho.

Luto em luta

Com a morte de Miguel, Mirtes tem encontrado na luta um conforto para lidar com a dor. Ela decidiu estudar Direito para poder entender melhor o processo do caso do seu filho e ajudar outras mães na mesma situação. Também foi convidada para trabalhar na ONG Curumim, que atua na defesa dos direitos humanos em Pernambuco, e integrar o coletivo Afroresistência.

— Estou dando uma força a essas mães que não tiveram a mesma força que estou tendo para ficar de pé buscando por Justiça. Escolhi a faculdade de Direito para poder entender melhor o processo do caso do meu filho, mas também para ajudar outras pessoas a não passar pelo que venho passando. Eu não quero ser só advogada. Quero ser promotora, juíza. Eu quero ter o poder nas mãos, para ajudar outras pessoas — conta.

As estratégias coletivas de elaboração do luto são fundamentais para as mulheres negras, explica Clélia Prestes.

— Essas violências têm um impacto coletivo sobre outros jovens negros, sobre as mães negras, sobre todo o grupo social. Mas essa mesma dor, muitas vezes é transformada em combustível de luta. Muitas mães encontram energia para buscar Justiça é isso que lhes dá sentido para manter a vida. Assim como a perda é coletiva, as estratégias de elaboração do luto também são coletivas.

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Para a historiadora e pesquisadora Angélica Ferrarez esses esforços coletivos por justiça precisam de mais projeção na mídia e reconhecimento na sociedade:

— O que quero ver é a projeção dos movimentos sociais que acompanham esses casos na grande mídia, é o compromisso da Justiça em colocar o dedo na ferida, é a empatia da sociedade com a dor dessas mães — afirma a historiadora, e continua: —  A gente precisa se perguntar porque muitos de nós temos mais empatia com o movimento das Mães da Praça de Maio, que tiveram seus filhos desaparecidos e torturados na época da ditadura na Argentina, do que com as mães negras que perdem seus filhos pela violência policial do Estado brasileiro —  finaliza.