Celina

'A primeira agressão que minha mãe sofreu foi quando estava grávida de mim', revela Hermila Guedes, de 'Segunda chamada'

Em entrevista exclusiva, atriz conta como a violência doméstica que testemunhou em casa influenciou na construção da personagem da série da TV Globo e diz que vê com otimismo a nova onda feminista
Hermila Guedes interpreta a professora Sonia na série "Segunda Chamada", da TV Globo Foto: Maurício Fidalgo / TV Globo
Hermila Guedes interpreta a professora Sonia na série "Segunda Chamada", da TV Globo Foto: Maurício Fidalgo / TV Globo

RIO - A atriz Hermila Guedes, pernambucana de 39 anos, revive um drama pessoal ao interpretar a professora Sônia na série "Segunda chamada" (TV Globo): a violência doméstica. Ela viu, durante anos, a mãe ser agredida pelo pai. Nesta entrevista concedida à CELINA, ela conta que acompanhar os efeitos psicológicos dessas agressões sobre a sua mãe a fez entender de que modo poderia construir a personagem.

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Hermila também revela já ter sofrido assédio em ambiente de trabalho — durante a produção de um filme —, conta por que acha que "as conquistas feministas acabaram gerando um efeito inesperado para as mulheres" e fala sobre que tipo de educação tenta oferecer às três filhas, Celina, Stella e Helena.

"Segunda chamada" é exibida às terças-feiras, logo depois de "A dona do pedaço". Os episódios são disponibilizados sempre com uma semana de antecedência na internet, pelo Globoplay.

Um traço importante da personalidade do marido da sua personagem é o machismo, que leva à violência. Você já viveu essa situação em casa, com seus pais. O quanto a professora Sônia tem da sua mãe?

Tem muito. No caso dos meus pais, era uma realidade dos anos 1980, em Cabrobó, interior de Pernambuco, uma sociedade muito patriarcal. Várias gerações de homens foram educados com essa referência. Meu pai reproduziu isso, sem pensar. Ele tinha muito ciúme, tinha a questão da autoafirmação. A primeira agressão que minha mãe sofreu foi quando ela estava grávida de mim.

Ter essa familiaridade com a violência doméstica me ajudou, de uma maneira infeliz, a construir essa personagem. Quando a mulher sofre um processo de violência, ela fica mais carrancuda, cria uma casca. Não é bem uma força. Parece força, para quem está de fora, mas é uma forma de se proteger, de sobreviver.

A arte já me ajudou muito na vida, e então é muito bom poder usar a arte para falar desse assunto com as pessoas. Hoje, a gente consegue discutir isso abertamente. Hoje, vejo que as mães de meninos são mais preocupadas com que tipo de meninos estão criando.

“Quando a mulher sofre um processo de violência, ela fica mais carrancuda, cria uma casca. Não é bem uma força. Parece força, para quem está de fora, mas é uma forma de se proteger, de sobreviver.”

Hermila Guedes
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Hoje, a gente chama isso de masculinidade tóxica. Você e o Otávio Müller chegaram a discutir algo sobre o tema para decidir como comporiam esse casal?

Olha, o Otávio é bem ocupado, não tivemos muito tempo para discutir antes (risos). Mas a gente já tinha sido um casal, em "Cidade proibida" (série da TV Globo), em que a mulher também era agredida. Então já tínhamos uma noção de como poderíamos fazer esse novo casal. Conversamos um pouco antes das cenas e também usamos nosso instinto.

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Você acha que estamos no caminho para eliminar a masculinidade tóxica?

Eu acredito que só o fato de poder discutir sobre essas questões e lidar mais com essas histórias é muito importante. Eu vejo com otimismo. Daqui a alguns anos, acho que o cenário será outro. Espero que a geração das minhas filhas (de 12, 6 e 4 anos hoje) seja mais consciente.

Hermila na pele de Sônia em cena, pouco antes de a personagem sofrer uma tentativa de estupro de um aluno Foto: Mauricio Fidalgo / TV Globo
Hermila na pele de Sônia em cena, pouco antes de a personagem sofrer uma tentativa de estupro de um aluno Foto: Mauricio Fidalgo / TV Globo

Acha que, se a Lei Maria da Penha existisse na época, teria sido diferente para a sua família?

Não sei... não sei se a minha mãe teria tido o acesso, sabe? Não consigo dizer se teria mudado especificamente a realidade dela. Mas acho que a elaboração dessa lei foi um avanço enorme. No caso da minha família, não aconteceu nada pior. Mas poderia ter acontecido.

E o que acha da Lei do Feminicídio, sancionada em 2015?

Importantíssima. Temos que saber, claro, que a lei sozinha não muda a realidade. Precisamos discutir mais sobre o feminicídio, sobre a cultura da violência contra a mulher. Temos que ter educação. Mais do que a lei, a educação é o que muda.

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Lembrando sua própria história de vida, você já se emocionou em cena a ponto de ter que parar a atuação por alguns instantes?

Quando eu vi que a personagem ia viver mais ou menos a situação que a minha mãe viveu, eu tentei disfarçar para mim mesma que eu tinha vivido isso. Porque, quando a mulher sofre violência em casa, a vítima não é só ela, mas toda a família. Então esse assunto, para mim, que testemunhei isso como filha, é muito sensível. Depois que eu terminava as cenas, eu ficava muito mexida, afetada por aquelas situações, claro. Mas fazia o máximo para criar uma separação muito clara na minha cabeça, para evitar que aquilo me fizesse o mesmo mal que já fez um dia.

“A sensação que eu tenho é de que a gente evoluiu, mas os homens ficaram na mesma. A gente pode fazer mais coisas, mas os homens, não.”

Hermila Guedes
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Sua personagem representa as muitas brasileiras que sofrem com a dupla jornada de trabalho, o que a leva a se viciar em medicamentos para se manter acordada. Para você, quais são os impactos de uma carga mental excessiva sobre mulheres?

As conquistas feministas acabaram gerando um efeito inesperado para as mulheres: mais trabalho. Porque as mulheres conquistaram o direito de sair de casa, de trabalhar, de entrar em atividades que antes não podiam. Mas os homens não passaram a fazer as tarefas antes só das mulheres. A sensação que eu tenho é de que a gente evoluiu, mas os homens ficaram na mesma. A gente pode fazer mais coisas, mas os homens, não.

E ainda tem o seguinte: a gente está em mais áreas, mas temos que ser incríveis em todas elas. Ser uma super-mulher: a mãe mais incrível do mundo, uma profissional incrível, uma dona de casa ótima, tem que ser muito bonita, superatraente. Ou seja, as mulheres, depois de tantas conquistas, estão sendo sobrecarregadas mais uma vez. Eu acho esse papel feminino hoje muito difícil.

Hermila Guedes contracena com Nanda Costa, intérprete da aluna Rita, que se descobre grávida do quarto filho e quer fazer um aborto Foto: Mauricio Fidalgo / TV Globo
Hermila Guedes contracena com Nanda Costa, intérprete da aluna Rita, que se descobre grávida do quarto filho e quer fazer um aborto Foto: Mauricio Fidalgo / TV Globo

A sua personagem sofre também uma tentativa de estupro.

Sim, e toda discussão é muito bem-vinda. O corpo feminino tem que parar de ser visto como objeto de consumo masculino. A gente tem que parar de cultuar o corpo feminimo como a gente cultua. E às vezes o homem nem percebe que está sendo abusivo quando faz algum comentário sobre o corpo de uma mulher, por exemplo. Ele acha que está sendo só elogioso, que a mulher precisa ouvir certas coisas.

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Você já sofreu assédio ou algum tipo de situação que te incomodou?

Já sofri no ônibus, que é o clássico. E numa situação de trabalho também, e que na hora eu nem sequer percebi. Só um tempo depois é que eu fui parar para pensar, e, conversando com algumas amigas e lendo sobre assédio, é que fui me dar conta.

Foi mais ou menos assim: eu estava fazendo um filme e haveria uma cena em que a minha personagem usaria uma lingerie. A direção desse trabalho me pediu para fazer um desfile com essa lingerie para eles. Na hora, eu me senti muito incomodada em fazer isso por conta do figurino. Não estava me sentindo confortável, mas fiz, já que foi pedido. Eu não estava sozinha com eles no estúdio. Havia outras mulheres. Pensei que eles poderiam precisar ver antes da cena como eu ficava no figurino, para decidir algo sobre a luz... não sei. Depois é que percebi que, na verdade, aquilo era desnecessário. Não fazia sentido.

A série está sendo chamada por alguns em redes sociais de "Sob Pressão da educação", em comparação com a série da TV Globo sobre o SUS. Você considera essa abordagem urgente no Brasil de hoje?

Sim, educação sempre foi algo muito deficiente no nosso país, e a gente tem visto uma perseguição com professores, uma desvalorização da área. Eu acredito que essa série traz temas muito reais. As pessoas estão se identificando. Essas histórias são muito parecidas com o que vemos na vida. E é essa sensibilização que faz as pessoas se darem conta da brutalidade das coisas e tentarem, a partir disso, mudar a realidade.

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Você tem três filhas. Tenta dar uma educação feminista a elas?

Eu tento alertá-las, empoderá-las. Eu e meu marido discutimos muito assuntos relacionados ao feminismo... e há momentos em que ele não percebe que está sendo machista, mas ele sempre é muito aberto a ouvir o que eu penso e, se aponto que algo que ele fez em relação a mim ou às meninas foi machista, ele ouve. Ainda bem.

Eu mesma me policio para não reproduzir algo machista. Acho que vivo num casamento de transição, porque tanto eu quanto ele fomos criados de acordo com pensamentos patriarcais, mas questionamos isso. Estamos tentando melhorar a cada dia. Para as minhas filhas, já é diferente: elas fazem parte da geração que, eu espero, vai conseguir se libertar de vez do machismo.

Quem são as mulheres que mais te inspiram?

As mulheres da minha família. Tenho uma família composta por muitas mulheres. Minha mãe e minha avó foram muito importantes na minha formação. Há também minhas tias Neném, Diene, Bibiu. As três são professoras lá em Cabrobó, então foram minha inspiração para atuar em "Segunda chamada".