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Celina

'A vida invisível': como o machismo pode anular a história de uma mulher e qual o impacto disso na sociedade?

Filme brasileiro na corrida do Oscar retrata a trajetória das irmãs Eurídice e Guida, jovens da década de 50 que têm seus sonhos sufocados por normas patriarcais. 'Vejo alguns pontos da Eurídice em mulheres da minha família. Isso é muito interessante, mas também muito dolorido', diz a atriz Carol Duarte
Carol Duarte como Eurídice, em cena de 'A vida invisível', de Karim Aïnouz Foto: Bruno Machado/Divulgação
Carol Duarte como Eurídice, em cena de 'A vida invisível', de Karim Aïnouz Foto: Bruno Machado/Divulgação

RIO - Por mais sonhos que pudesse ter, o destino de uma jovem carioca de classe média nos anos 50 já estava definido. Não por ela, mas pela moral conservadora e patriarcal da época. Com raras exceções, seu projeto de vida tinha que ser um só: se tornar uma boa esposa e uma boa mãe. A vida da maioria das mulheres desta época foi traçada independente dos seus desejos. Mas quantos sonhos não ficaram para trás e quantas renúncias não foram feitas por causa disso? Essa é a história contada no filme "A vida invisível" (assista abaixo ao trailer), dirigido por Karim Aïnouz e com Fernanda Montenegro no elenco, selecionado para representar o Brasil no Oscar 2020.

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O cenário é o Rio de Janeiro de 1950. As protagonistas são as irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guida Gusmão (Julia Stockler). Filhas de uma família portuguesa conservadora, as jovens inseparáveis alimentam seus sonhos: a primeira, de se tornar pianista profissional, e a segunda, o de viver um grande amor.

Porém, a vida lhes reserva caminhos diferentes. Elas acabam sendo separadas pelo pai e, sozinhas, tentam retomar o contato e as rédeas do próprio destino. As cicatrizes deixadas pela separação e pelas renúncias que tiveram que fazer, no entanto, são evidentes.

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A trajetória das duas em muito se assemelha com a de inúmeras mulheres nascidas no Brasil no início do século XX. Inspirado no romance "A vida invisível de Eurídice Gusmão" (2016), de Martha Batalha, a trama faz um retrato de como o machismo deixou e ainda deixa marcas profundas na vida das mulheres.

O longa terá sua première no Brasil na abertura do Cine Ceará, nesta sexta-feira (30), e chegará primeiro nas salas da região Nordeste, em 19 de setembro. Já a estreia nacional acontece em 31 de outubro.

— Eu nunca tinha parado para pensar tão profundamente nessas mulheres. Mas tem uma força nelas que eu só descobri com o filme. É muito difícil estar presa numa relação que você nem sabe se quer estar. Nada foi muito perguntado para a Eurídice. Ela foi vivendo o que era compulsório viver — afirma a atriz Carol Duarte, que faz sua estreia no cinema e divide o papel de Eurídice com Fernanda Montenegro.

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Ela conta que, durante a construção das personagens, a equipe do filme conversou com diversas mulheres que viveram os anos 50 para conhecer melhor a sua relação com casamento, com a primeira relação sexual e até mesmo com aborto. Carol também buscou referências nas histórias da própria família para dar vida à Eurídice.

— Vejo alguns pontos da Eurídice em algumas mulheres da minha família, como a minha avó. Muitas mulheres que assistiram ao filme também me disseram que a Eurídice fala de suas avós ou de suas mães em algum ponto. Isso é muito interessante, mas também muito dolorido. O filme dá luz a essas mulheres que abdicaram mesmo dos seus sonhos, da sua vida — afirma Carol. — Mas o filme também me fez perceber que a minha avó foi muito grande naquilo que ela pôde ser. Percebi que o legado dela existe em mim.

Direções e realidades opostas

A preparação das atrizes foi intensa. Julia e Carol, que não se conheciam, passaram um mês na sala de ensaio. Precisavam construir uma relação profunda de afeto para as personagens, que passam a maior parte do filme separadas. É o amor entre as irmãs que move a trama. E a química na tela é evidente.

O amor entre as irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Júlia Stockler) move a trama do filme 'A Vida Invisível' Foto: Bruno Machado/Divulgação
O amor entre as irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Júlia Stockler) move a trama do filme 'A Vida Invisível' Foto: Bruno Machado/Divulgação

Embora muito ligadas, Guida e Eurídice têm personalidades opostas e também vivenciam as opressões do machismo de forma diferente. Enquanto Eurídice, determinada a ser uma pianista, batalha durante anos por uma vaga em um conservatório, mesmo sem o apoio do pai e do marido, Guida é expulsa de casa, forma uma família menos convencional e é obrigada a trabalhar para garantir o próprio sustento.

— A Guida é uma personagem que, diferente da Eurídice, que fica, vai para o mundo. Quando o pai a impede de ficar em casa, ela se torna invisível no mundo, enquanto a Eurídice é a invisível de casa — diz a atriz Julia Stockler, que também faz sua estreia no cinema dando vida à Guida. — Ela fica sem dinheiro nenhum e vai morar com a Filó, que é essa mulher da vida que a acolhe. Ela dá esse salto que faz com que a vida se torne mais concreta. A Guida não tem muito tempo para sofrer, como a Eurídice. O tempo da vida dela é absolutamente preenchido pelo trabalho.

Julia cita o livro "Quarto de Despejo", escrito em 1960 por Carolina Maria de Jesus , e o filme "Uma mulher sob influência" (1974), do diretor John Cassavetes, como referências para a construção da personagem.

— A Filó, além de enfrentar o patriarcado, enfrenta o racismo. Ela é uma mulher negra e pobre. Uma personagem que vive as opressões interseccionais; estar viva já é uma demonstração de superação. É uma mulher forte, uma sobrevivente, mas também uma mulher criativa — diz a atriz Bárbara Santos, que no longa dá vida à personagem. Ela avalia que o encontro de Filó e Guida no filme faz um retrato do contraste racial e de classes presente na sociedade brasileira.

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— Na vida da Filó, não existem essas possibilidades que existem na vida da Guida ou da Eurídice. Uma vida sem a família era inexplicável para a Guida, mas a Filomena vem de uma realidade em que as pessoas não tem o suporte da família, elas dão o suporte — afirma Bárbara — Quando elas se encontram, elas se "hermanam" no gênero. Mas essa diferença entre elas, racial e de classe, é fundamental de estar ali — completa.

'O filme fala das mulheres hoje'

O destino da boa esposa e da boa mãe não é mais o único reservado às mulheres, mas as atrizes consideram que, apesar dos direitos já conquistados e da emancipação feminina ao longo das últimas décadas, ainda há muito caminho pela frente. Embora faça um retrato da década de 50, o filme, para elas, é atual.

— Eu tenho 28 anos. A minha geração tem uma liberdade muito maior, mas a gente ainda sofre muito.  Essas mulheres dos anos 50 abriram muitos caminhos. Mas o filme também fala de nós mulheres, hoje. Assusta ver que é um filme da década de 50 e tem coisas que a gente ainda vive — afirma Carol.

Inseparáveis, Guida e Eurídice são forçadas a viver longe uma da outra pelo pai, um padeiro português conservador Foto: Bruno Machado/Divulgação
Inseparáveis, Guida e Eurídice são forçadas a viver longe uma da outra pelo pai, um padeiro português conservador Foto: Bruno Machado/Divulgação

— Hoje, a gente consegue falar sobre isso, sobre as nossas vivências mais claramente, do que nos anos 50. Mas o patriarcado está na coluna estrutural da sociedade, está na cabeça dos homens, dos meninos — reforça Julia. — É  um momento fortíssimo para falar sobre isso.

— O filme fala desse lugar, dessas mulheres que estavam começando essa luta. A gente avançou e ao mesmo tempo está no mesmo lugar — diz Bárbara, contando que chegou a ser abordada por mulheres até mesmo no banheiro depois da exibição do filme no festival de Cannes, onde o longa ganhou o prêmio da mostra “Um Certo Olhar”, em maio.

— Nos pararam até no banheiro para falar que viram o filme, que ligaram para a vó, para a mãe, que a história tocou profundamente. O filme falou para esse lugar urgente. Estamos vivendo uma potência. As mulheres estão na frente das mobilizações e, ao mesmo tempo, o assassinato de mulheres aumenta, todo dia tem alguma notícia. O que é isso que a gente avançou tanto, mas nossas conquistas são tão punidas? Os passos que a gente tem dado são diariamente punidos.

Julia afirma que, embora o filme toque mais as mulheres, os homens também têm saído sensibilizados da sala de cinema.

— A gente escutou as coisas mais espetaculares. As mulheres ficam muito tocadas, tem um choro muito dolorido. Mas os homens também. Teve um senhor, de 80 anos, que chorava como uma criança. O filme bate no homem, que se pergunta "eu sou responsável por isso?"— conta.

Ela reforça que a direção do filme é assinada por um homem, mas a primeira fala da história é feminina, da escritora Martha Batalha, autora do livro que embasou o longa.

Em seu terceiro longa-metragem, Aïnouz voltou à temática que tanto o instiga afetivamente: as mulheres. O longa é uma forma de homenagear sua mãe e a sua avó, que foram responsáveis pela sua criação.

— O que me levou a adaptar "A Vida Invisível" foi o desejo de dar visibilidade a tantas vidas invisíveis, como as de mulheres da geração da minha mãe, minha avó, das minhas tias e de tantas outras mulheres dessa época. As histórias dessas personagens não foram contadas o suficiente, seja em romances, livros de história ou no cinema —  afirma o diretor.

— Importa ao Karim falar sobre o patriarcado e falar sobre o machismo. Ele é um homem que se interessa sobre essa questão e se cercou de mulheres na pesquisa e na produção do filme. A equipe é de mulheres feministas — afirma Carol, mencionando a assistente de direção Nina Kopko e a diretora de fotografia Hélène Louvart.

— O filme é fundamental do ponto de vista da cultura e da discussão de gênero. O controle masculino do mundo não é solução. A gente precisa de uma mudança radical. O controle masculino é destrutivo. Essa coisa que a gente chama de masculino também está em discussão e são as mulheres que impulsionam isso tudo — reforça Bárbara — Além da emoção, espero que o filme gere muito reflexão.