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Celina

Afinal, é possível equilibrar trabalho e maternidade? Escritora americana defende que não

Lara Bazelon afirma que já se sentiu culpada diversas vezes por priorizar o trabalho. Mas, um gesto do filho aliviou o sentimento
Toda mãe que trabalha ouve esses questionamentos, o que pressupõe que o "equilíbrio entre trabalho e vida pessoal" é viável. Não é. Na verdade, graças a essa expressão, a mulher se vê presa a um círculo vicioso de vergonha e autorrecriminação Foto: NYT
Toda mãe que trabalha ouve esses questionamentos, o que pressupõe que o "equilíbrio entre trabalho e vida pessoal" é viável. Não é. Na verdade, graças a essa expressão, a mulher se vê presa a um círculo vicioso de vergonha e autorrecriminação Foto: NYT

Sou advogada, professora de Direito e escritora. Sou também divorciada e mãe de duas crianças pequenas. Volta e meia ouço alguma versão de: "Como consegue se destacar no trabalho e ainda ser tão boa mãe?"

Toda mãe que trabalha ouve esses questionamentos, o que pressupõe que o "equilíbrio entre trabalho e vida pessoal" é viável. Não é. Na verdade, graças a essa expressão, a mulher se vê presa a um círculo vicioso de vergonha e autorrecriminação .

Como muitas, frequentemente dou prioridade ao trabalho. E faço isso porque, como cabeça de uma casa com apenas um dos pais, sou eu que sustento a família. Meu ex-marido, com quem tenho a guarda compartilhada, é um pai incrível e minha vida seria impossível sem sua presença. Ninguém paga pensão a ninguém.

Minha escolha vai além da necessidade financeira. Dou prioridade ao meu trabalho porque sou ambiciosa e porque acho que é importante. Se não escrevesse, lecionasse e litigasse, parte de mim se sentiria vazia.

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Em 2013, defendi no tribunal a libertação de um negro inocente de nome estranho, Kash Register. Ainda adolescente, em 1979, ele fora condenado à prisão perpétua por um crime que não cometeu devido à improbidade da polícia e da promotoria e de testemunhas mentirosas.

Trinta e quatro anos depois, continuava preso. E, embora tivéssemos apresentado à procuradoria o que acreditávamos ser provas irrefutáveis da inocência de Register, o órgão insistiu no que foi essencialmente uma nova sessão perante um juiz.

Na época, meu filho tinha 4 anos e minha filha, dois. Um mês antes do início do novo julgamento, saí de San Francisco e me mudei para um apartamento minúsculo próximo ao tribunal, em Los Angeles. Ficava longos períodos sem ver meus filhos, que estavam sendo cuidados com o maior carinho pelo pai e pela avó, além de terem toda a atenção da professora da pré-escola dele e da babá dela. Quando eu voltava para casa, raramente estava cem por cento presente. Meu cliente precisava de mim mais que meus filhos e, por isso, me dediquei mais a ele. Muito mais.

Durante esses meses, meu filho fazia muitas perguntas. "Por que você fica tanto tempo fora?" "Por que está sempre no telefone falando com um cara de nome esquisito?" Expliquei a ele o que estava em jogo. Os mocinhos lutando contra os bandidos. Se perdêssemos, o racismo venceria e a vida de um homem seria destruída.

"Você vai ganhar?", ele quis saber.

"É meu trabalho", respondi.

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Por outro lado, perdi várias reuniões para levar meus filhos ao parque ou ao museu, e levantava mais cedo para levá-los à aula de caratê. Há pouco tempo recusei uma turma extra, que me renderia um bom dinheiro, porque não queria abrir mão do meu tempo com eles.

Mas sempre há outros clientes a serem defendidos, outras histórias a serem escritas ou alunos em dificuldades que não podem esperar. Entre outros eventos, perdi o sétimo aniversário da minha filha, o décimo do meu filho, duas férias em família, três Dias das Bruxas, todas as excursões de escola. Nunca acompanhei, supervisionei ou organizei um evento escolar.

Às vezes, minhas escolhas me entristecem. O sétimo aniversário da minha filha foi o pior. Ela chorou e fiz tudo que não poderia ter feito. Eu tinha a sensação de ter uma pedra no estômago – mas haveria um julgamento começando no dia seguinte, dali a apenas seis horas.

Eu escolhera a data, não o juiz, porque sabia que a outra parte não estava preparada. Um atraso mínimo, mesmo que fosse de alguns dias, implicaria em perder uma vantagem crucial. E eu não ia me arriscar, sabendo o que estava em jogo para meu cliente.

É claro que muitas vezes também tenho dúvidas e sinto vergonha e medo. Sei que não sou uma mãe "normal", porque é o que meus filhos vivem me dizendo – e tento me lembrar de que isso não significa que eu seja uma "mãe ruim". Também tento ter em mente que, se fosse o pai, receberia todos os elogios do mundo por todas as vezes que marquei uma consulta no pediatra ou levei um dos pequenos para brincar na casa do amiguinho.

Tenho orgulho do que conquistei, e mais ainda de poder manter a mim e a meus filhos, mas de vez em quando fico pensando se minhas escolhas não vão prejudicá-los.

Em 2017, a classe do terceiro ano do meu filho fez uma festinha de confraternização ao meio-dia, para a qual cada aluno teria de levar um pratinho. Voltando do tribunal, entrei correndo no supermercado, comprei a primeira coisa que vi – um bolo de limão com sementes de papoula – e corri para o colégio. A sala estava cheia de mães e um punhado de pais. Eu era a única em roupa de trabalho. Pus o bolinho sobre a mesa, ao lado de um guisado supercaprichado. Meu filho me olhou e até se encolheu.

Depois da refeição, veio a hora das apresentações. Cada criança recebera um papel laranja no formato de folha com os seguintes enunciados que deveria completar: "Agradeço a meus pais por..." e "Isso me ajuda a...".

Um a um, os alunos foram se levantando e lendo o que tinham escrito. Muitos falaram que amavam suas mães porque elas sempre lhes preparavam comidas gostosas e lhes proporcionavam um lugar seguro para morar.

Ouvindo aquilo, fui ficando cada vez mais tensa, o sorriso congelado no rosto. O que meu filho ia dizer quando chegasse sua vez? Que morava em duas casas totalmente diferentes e volta e meia comia salsicha cozida e nuggets de frango enquanto sua mãe lhe contava histórias de crimes reais? Que uma vez me disse, na maior educação, enquanto nos sentávamos para jantar: "Mamãe, acho que você esqueceu os legumes"?

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Ele foi um dos últimos a falar. Levantou-se e, em voz bem clara, disse: "Agradeço a meus pais por serem advogados porque tiram gente da cadeia. Isso me ajuda muito a refletir, fazer a coisa certa e a ter exemplos positivos."

E olhou para mim de longe, o mais leve sinal de um sorriso no rosto. Eu quis pular da cadeira minúscula em que estava sentada, levantar os punhos no ar e gritar: "Esse é o meu garoto!" Pus a folha laranja na parede do meu escritório. Gosto de olhar para ela de vez em quando, principalmente nas ocasiões em que trabalho até tarde.

Espero que meus filhos entendam. Acho que eles sabem. Eu os amo além da razão, e o fato de existirem dá à minha vida um significado mais que profundo. E sinto a mesma coisa em relação ao meu trabalho.

Lara Bazelon, professora da Faculdade de Direito da Universidade de San Francisco, é autora, mais recentemente, de "Rectify: The Power of Restorative Justice After Wrongful Conviction".