Celina

Após virarem mães, mulheres são 'empurradas' ao empreendedorismo

Ausência de flexibilidade nas empresas e falta de vagas em creches estão entre os fatores que levam mães a abrir o próprio negócio
Decisão de empreender nem sempre está relacionado ao sonho de abrir o próprio negócio ou a uma ideia genial, mas sim à necessidade Foto: Arte de Nina Millen
Decisão de empreender nem sempre está relacionado ao sonho de abrir o próprio negócio ou a uma ideia genial, mas sim à necessidade Foto: Arte de Nina Millen

RIO - O caminho que leva uma mulher ao empreendedorismo nem sempre envolve o sonho de abrir o próprio negócio, uma ideia genial ou o desejo de ser chefe de si mesma. A decisão acontece, em muitos casos, depois da maternidade e por pura necessidade. A ausência de flexibilidade nas empresas e a falta de vagas em creches estão entre os fatores que empurram as mães para fora do mercado formal de trabalho. Sem um emprego com carteira assinada, o jeito é arregaçar as mangas e "se virar".

— As mulheres acabam sendo empurradas ao empreendedorismo depois que se tornam mães. O ambiente corporativo ainda é muito hostil para as mulheres. Quando elas se tornam mães, viram "persona non grata" nas corporações — explica Ana Fontes, presidente do Instituto Rede Mulher Empreendedora.

SIGA CELINA NO INSTAGRAM

A instituição criada por Fontes é responsável por um levantamento feito em 2016 que mostrou que foi após a maternidade que 75% das empreendedoras decidiram ter um negócio próprio. Na classe C, esse percentual sobe para 83%.

— Elas são levadas a isso pela falta de oportunidade de emprego e pela falta de amparo social para cuidar dos filhos — afirma Lucilene Morandi, coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero e Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). — Ainda são excepcionais os postos de trabalho em que há flexibilidade. Para a maioria das empresas, a mulher se torna "menos confiável" quando vira mãe, porque é ela quem cobre todos os problemas relacionados à família. Ela arca sozinha com todo esse custo.

'Perguntavam a idade do meu filho e se tinha com quem deixar'

Foi a falta de oportunidade que fez de Tayná de Souza, 30 anos, uma empreendedora. Ela é formada em Ciências Contábeis e faz pós-graduação em Gestão Empresarial. Começou a trabalhar em 2012, mas, no mesmo ano, a empresa fechou, ela foi demitida e engravidou.

Tayná perdeu o bebê, mas, pouco tempo depois, engravidou novamente. Quando o filho completou 2 anos, em 2015, ela decidiu buscar um novo emprego. Só que o roteiro das entrevistas era sempre o mesmo:

— Perguntavam a idade do meu filho, se ele estava na creche ou se eu tinha com quem deixar. Não diziam que era um problema eu ter um filho pequeno, mas aí falavam que entrariam em contato e nunca mais retornavam.

Tayná de Souza (à esquerda), e a irmã, Tayane Mello, estavam desempregadas desde que tiveram seus filhos; neste ano, decidiram abrir uma loja online de lingerie plus size Foto: Arquivo Pessoal
Tayná de Souza (à esquerda), e a irmã, Tayane Mello, estavam desempregadas desde que tiveram seus filhos; neste ano, decidiram abrir uma loja online de lingerie plus size Foto: Arquivo Pessoal

Depois de quatro anos, Tayná decidiu encerrar a busca por uma vaga tradicional e abriu o próprio negócio junto com a irmã, que também estava desempregada desde que teve uma filha, há três anos. Há pouco mais de um mês, as duas lançaram uma loja online de lingerie plus size.

— Agora estou contente com a escolha que nós fizemos, estou acreditando no nosso negócio. Mas nunca pensei nisso, não era o meu sonho. Eu pensava em trabalhar em uma empresa grande, para poder crescer. Só que fica difícil conseguir um emprego depois que você se torna mãe — diz.

Renda menor ao longo da vida

As mulheres de baixa renda são as mais afetadas por essa dinâmica que expulsa mães do mercado formal, explica a pesquisadora da UFF. Especialmente porque há um déficit na oferta de vagas em creches no país, que hoje acolhem apenas um terço das crianças de até 3 anos. Segundo dados da Pnad Contínua da Educação 2018, havia 3,5 milhões de crianças em creches brasileiras no ano passado, mas 6,7 milhões ainda estavam fora delas.

Enquanto as mulheres com renda maior conseguem pagar por uma escola em período integral e, por isso, podem se manter nos seus postos de trabalho após a maternidade, as de baixa renda muitas vezes não encontram sequer uma vaga em uma creche de meio período, afirma Lucilene Morandi.

A saída encontrada por essas mulheres é a de se afastar do mercado enquanto as crianças estão pequenas. Só que, quando tentam voltar, ou não encontram vagas, ou recebem remunerações menores , pois estão com conhecimentos defasados, afirma a pesquisadora. É aí que decidem empreender.

— O empreendedorismo acaba salvando muitas famílias, mas a chance de essas microempresas virarem uma fonte de renda significativa ao longo da vida é baixa. E isso afeta a renda da mulher, inclusive na aposentadoria. É um quebra-galho, gera renda e permite que a mãe fique mais próxima da famílias. Mas em termos de mercado e renda ao longo da vida, isso é complicado — diz a especialista.

Há dois anos Fabiana Soares, 38 anos, desistiu parar de buscar uma vaga tradicional e passou a se dedicar ao seu próprio negócio Foto: Arquivo pessoal
Há dois anos Fabiana Soares, 38 anos, desistiu parar de buscar uma vaga tradicional e passou a se dedicar ao seu próprio negócio Foto: Arquivo pessoal

Trabalhando no próprio negócio há dois anos, Fabiana Soares, 38 anos, ainda precisa fazer outros bicos e conta com o salário do estágio para completar a renda do mês. Ela tem uma filha de quase 3 anos, é mãe solo e faz doces decorados para festas infantis. Decidiu empreender depois de receber alguns "nãos" em entrevistas de emprego e conseguir um "bico" em uma empresa de festas infantis, também liderada por uma mãe empreendedora.

— As perguntas era sempre as mesmas. "É casada?", "'Mora com o pai do seu filho?", "Com quem vai deixar a criança?". Essa empreendedora me acolheu. Hoje não trabalho mais no espaço dela, mas somos parceiras. Faço doces decorados para as festas que ela realiza. Ainda não tenho o fluxo de vendas que gostaria, mas não penso em voltar ao mercado formal — conta Fabiana.

Para ela, a principal vantagem é a de estar mais presente no desenvolvimento da sua filha. A pequena fica na creche durante um período e Fabiana ainda conta com a ajuda da mãe quando precisa resolver pendências da empresa ou da faculdade. Além de tocar o próprio negócio, ela cursa Pedagogia na Unirio e faz estágio na área.

— O horário da creche não atende uma mãe que tem um trabalho formal. Quem não tem rede de apoio ou não pode pagar uma escola integral, não consegue conciliar. Eu queria a estabilidade financeira de uma vaga formal, mas quando entendi isso, vi que não era mais para mim — afirma.

Mães, empreendedoras e unidas

Mulher negra, nordestina, engenheira de produção, mãe do Bento e empreendedora. É assim que Aira Luana Nascimento, 37 anos, se apresenta. Para ela, empreender sempre foi um sonho, mas foi a maternidade que lhe deu o impulso necessário para investir no próprio negócio.

Ela trabalhava numa multinacional havia 11 anos. Quando voltou da licença-maternidade, sentiu a necessidade de mudar o rumo da sua carreira. Passou um ano estudando negócios sociais e, em janeiro deste ano, abriu a Josefinas, uma casa colaborativa em Campo Grande, Zona Oeste do Rio, dedicada a impulsionar negócios de mulheres, principalmente de mães, das classes D e E.

— A maioria das mulheres que vão a minha casa recorrem ao empreendedorismo porque não conseguem um emprego. Elas gostariam de ter um emprego fixo, mas não conseguem. E já que elas foram lançadas ao empreendedorismo por falta de oportunidade, quero contribuir para que façam isso de forma profissional, para que possam modelar esse negócio de forma a não serem jogadas à margem — conta.

A maternidade foi o motor para Aira Nascimento abrir seu negócio; depois da chegada de Bento (foto), ela abriu o espaço As Josefinas, uma incubadora para mães empreendedoras
Foto: Arquivo Pessoal
A maternidade foi o motor para Aira Nascimento abrir seu negócio; depois da chegada de Bento (foto), ela abriu o espaço As Josefinas, uma incubadora para mães empreendedoras Foto: Arquivo Pessoal

Hoje, ela tem quatro empreendedoras residentes e dá mentoria para outras duas. As residentes pagam uma taxa para usar o espaço da casa para tocar seus negócios e também recebem orientações de gestão e empreendedorismo de Aira. No espaço, os filhos são bem-vindos.

A jornalista Gabriela Anastácia, 31 anos, também quer ajudar mulheres e mães que decidiram empreender a estruturarem seus negócios. Para ela, o empreendedorismo veio antes da maternidade. Gabriela abriu a sua empresa de assessoria de comunicação assim que saiu da faculdade de jornalismo, em 2013. Mas foi quando seu filho nasceu, em 2016, que sentiu as coisas mudarem.

— Após a maternidade, tive muita dificuldade para me relacionar com o tempo. Criei uma conta no Instagram num tom de diário, para fazer meus desabafos e falar de organização de rotina — conta.

No 'Papo de Empreendedora', a jornalista Gabriela Anastácia fala das dificuldades de ser mãe e tocar o próprio negócio Foto: Valda Nogueira
No 'Papo de Empreendedora', a jornalista Gabriela Anastácia fala das dificuldades de ser mãe e tocar o próprio negócio Foto: Valda Nogueira

O Papo de Empreendedora rapidamente conquistou outras mulheres que sentiam as mesmas dificuldades e passaram a interagir com Gabriela. Em 2018, ela passou a promover encontros bimestrais com outras empreendedoras. As rodas de conversa são gratuitas, na maior parte dos casos, e já foram realizadas na Baixada Fluminense, no bairro do Irajá, Zona Norte do Rio, e no Largo do Machado, na Zona Sul. Elas funcionam como workshops sobre empreendedorismo , maternidade e auto-conhecimento — a cada encontro, Gabriela traz alguma especialista para dar dicas para as participantes. O projeto ainda não lhe gera renda, mas ela o toca paralelamente a sua empresa de assessoria de comunicação.

— Estou norteando meu projeto para que os negócios dessas mulheres sejam sustentáveis. A ideia é que o Papo de Empreendedora vire um um programa de formação continuada em educação empreendedora — afirma.

Para quem está começando, Ana Fontes, da Rede Mulher Empreendedora, afirma que procurar redes de relacionamento com outras mulheres que trabalham por conta própria pode ser fundamental para o sucesso do negócio.

— Empreender é muito solitário,  e para a mulher mais ainda. Todo dia você tem vontade de desistir. Por isso é legal procurar grupos locais, para criar essa rede de relacionamento — diz ela.