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Celina

'Atendi várias pessoas agredidas e vi o adoecimento mental de profissionais', diz Carla Akotirene sobre trabalho no SUS durante a pandemia

Assistente social e uma das principais pensadoras da interseccionalidade hoje, ela diz que a esquerda precisa de um olhar que priorize raça e que todos deveríamos visitar nossas identidades para construirmos um projeto político ético
Carla Akotirene: 'Insterseccionalidade não é uma guerra de identidade, mas sim a consolidação de um ponto de vista capaz de enfrentar as estruturas do capital, de gênero e de raça' Foto: Divulgação
Carla Akotirene: 'Insterseccionalidade não é uma guerra de identidade, mas sim a consolidação de um ponto de vista capaz de enfrentar as estruturas do capital, de gênero e de raça' Foto: Divulgação

Passaram-se alguns dias de negociação até que Carla Akotirene pudesse conceder esta entrevista a CELINA. Bacharela em Serviço Social, mestra e doutoranda em Estudos sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), ela também atua como assistente social no SUS em Salvador, sua cidade, e conta que os atendimentos aumentaram na pandemia. “Eu estou dando um plantão atrás de outro".

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Autora do livro “Interseccionalidade”, da coleção Feminismos Plurais (ed. Pólen), coordenada por Djamila Ribeiro, Akotirene lança um olhar interseccional à pandemia de Covid-19 e observa que foi o período em que, por exemplo, mais foram contratadas mulheres que estavam desempregadas para serem expostas ao vírus — e, assim, acabarem infectando suas comunidades.

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Primeira mulher de sua família a chegar à universidade, ela enfrentou racismo dentro da Academia e conta que não se vincula à luta feminista por uma opção teórica, mas que conjuga o lado acadêmico com as vivências dos temas que estuda.

— Lembro perfeitamente do que o marido de minha tia tentou quando eu tinha 13 anos. A delegada disse a mim e à "mainha": "A sua filha é bem descaradinha" — confidencia.  — Eu sou muito visceral nesses assuntos porque eles constituem a minha experiência e, você sabe, a experiência é um ponto de vista intelectual.

Carla Akotirene Foto: Divulgação
Carla Akotirene Foto: Divulgação

Para Akotirene é justamente a experiência o que falta aos partidos progressistas: uma reorganização da esquerda precisa passar por um olhar interseccional que priorize raça, diz ela:

— A esquerda representa a população que é pobre e marginalizada, mas ela não vive na periferia, não toma tiro. Fica muito na intelectualidade representando algo que é orgânico no discurso, mas não é orgânico na vivência. A gente não tem poder partidário, a gente não tem poder para botar as pessoas em lugares estratégicos. Isso dificulta muito — afirma.

Confira abaixo a íntegra da entrevista de Carla Akotirene a Celina:

CELINA: O que é interseccionalidade?

CARLA AKOTIRENE: É a sensibilidade analítica que propõe que cada um de nós enxergue a realidade concebendo que o racismo, o capitalismo e o cis-heteropatriarcado existem juntos e de maneira inseparável. Quando essas três estruturas se articulam e há um dinamismo nessa interação, provocam acidentes nas identidades de mulheres, dos negros, das travestis e transexuais, exatamente pela velocidade com que se articulam. Essas três estruturas têm contribuições epistêmicas e também políticas. Insterseccionalidade não é uma guerra de identidade, mas sim a consolidação de um ponto de vista capaz de enfrentar as estruturas do capital, de gênero e de raça, que existem separadamente.

Não dá para ignorar nenhuma dessas três estruturas.

Toda vez que ignoramos raça, fortalecemos o capitalismo porque ele precisa do racismo. Toda vez que a gente não dá conta, do ponto de vista epistêmico, da violência contra as mulheres, as submetemos a serem mais expropriadas pelo capitalismo, porque ele também precisa não remunerar as mulheres, por exemplo, pelo trabalho doméstico. Interseccionalidade é a capacidade de analisar estruturalmente as identidades submetidas a essas estruturas.

De onde vem a interseccionalidade?

De uma tradição negra, feminista. O termo foi cunhado em 1989 por Kimberlé Crenshaw, mas, em 1851, no discurso “E eu não sou uma mulher?”, feito na Convenção das Mulheres, Sojourner Truth já o estava propondo, sem nomear, mesmo porque a colonização submeteu as africanas e os africanos a apagamentos epistêmicos, então a nossa capacidade de autonomeação ficou perdida nesses processos de apagamento.

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De que modo Sojourner Truth antecipou a interseccionalidade?

Quando ela disse “E eu não sou uma mulher?”, afirmando que somente as brancas eram ajudadas a subir nas carruagens ou a pular as poças de lama, estava dizendo que gênero é uma construção de raça, porque é para a mulher branca que está imposto o lugar de feminilidade hegemônica que merece esses cuidados da dominação masculina. Por outro lado, também antecipou Karl Marx, que, em 1857, discutiu a estrutura do capital, dos meios e modos de produção. Ela mostrou que o parto de uma mulher já é um trabalho. Nós produzimos vidas e somos expropriadas das vidas — dentro de um modelo de escravização, as crianças negras viraram mercadorias. Aí Sojourner Truth denunciou uma condição de classe que sequer foi concebida pelo pensamento marxista. Da mesma forma que antecipou a discussão feita por Simone de Beauvoir em 1949 sobre a mulher tornar-se um outro. Ela diz: se ninguém me ajudou a subir numa carruagem, eu sou o outro desse outro. A branca é o outro do homem branco e a mulher negra é o outro desse outro. É uma discussão que Grada Kilomba e Djamila Ribeiro também fizeram mais recentemente.

Em seu livro, você fala sobre racismo epistêmico: as cobranças sobre a linguagem que utiliza, sobre a forma de expressar seus conceitos e seu estudo. Você diz que isso é feito a uma acadêmica negra, mas não a outras pessoas.

Acho uma injustiça quando dizem isso; pela minha história e pela falta de conhecimento também, porque quem faz isso tem uma clivagem sudestina muito forte. As pessoas de São Paulo e Rio de Janeiro, principalmente, se acham mais inteligentes do que as do Nordeste, e eu não tenho constrangimento em dizer que me considero a pessoa mais inteligente nessa área de estudo, porque é a minha formação. Fiz graduação, mestrado e doutorado em Estudos Feministas e lecionava essas disciplinas na UFBA. Dificilmente alguém vai conseguir se equiparar em termos de teoria e prática, porque, além de contribuir teoricamente, eu estou na ponta atendendo vítimas de violência, de estupro, de discriminação. É por isso que, segundo bell hooks, a gente precisa se autonomear intelectual. Eu me coloco como intelectual mesmo.

Milton Santos diz que o papel do intelectual é causar desconforto. Eu não estou aqui para receber aplausos nem para ganhar seguidores. Estou aqui para estabelecer disputa epistêmica. Quem está interessado num conhecimento mais robusto e encorpado vai buscar essa contribuição. Quem quiser firulas da rede social e likes que vá por esse caminho. Eu não arredo o pé em relação às coisas que eu acredito, porque tenho embasamento para dizê-las. Eu não falo as coisas soltas, à toa.

Você mencionou a sua história. Pode contar um pouco mais dela?

Eu não me vinculo à luta feminista por opção teórica. Sou a primeira mulher negra da família a ingressar no nível superior. Meus pais são semialfabetizados, não tenho tradição intelectual na família. Eu entrei na faculdade com 24 anos, com a nota do Enem, porque eu estava no Curuzu (bairro de Salvador), no ensaio do Ilê Aiyê, e três militantes estavam questionando o fato de ser gostosa, mas não saber nada da consciência negra. Um militante me chamou atenção, ele falou: “Isso sempre vai acontecer, porque você é muito desafiadora, esteticamente. Se você não for inteligente, você vai ser sempre ser colocada nesse lugar.” O Ocidente criou esse binarismo: ou você é gata ou é intelectual.

Como se não fosse possível ser as duas coisas.

Como Lélia Gonzalez dizia, a "mãe preta" ficou confinada na cozinha com uma imagem que, mais tarde, Monteiro Lobato criou de Tia Anastácia: a mulher preta, gorda e retinta para quem ninguém olha. Já a mucama, por conta da mestiçagem, vai para a rua com a sinhá. Ela é considerada atraente, a retinta, não. Quando eu me coloco como alguém que tem autoestima e trabalho isso do ponto de vista ancestral, incomodo. Querem refazer ainda o lugar da empregada intelectual, como foi a mãe preta. Eu não aceito isso, é um absurdo. Em termos de vivência é isso, venho desse lugar.

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E também venho de um lugar de violência sexual e de violência doméstica. Esses assuntos primeiro atravessam a minha identidade, e é por isso que eu sou tão fervorosa. Essas violências aconteceram na minha família mesmo. Eu lembro perfeitamente o que o marido de minha tia tentou fazer quando eu tinha 13 anos. Ele chegou a ser preso, e lembro da delegada dizendo para mim e para "mainha": “A sua filha é bem descaradinha.” Sou muito visceral nesses assuntos, eles constituem a minha experiência e, você sabe, a experiência é um ponto de vista intelectual.

Muitos intelectuais negros afirmam que a pandemia aprofundou desigualdades. Você atende o público. Pode lançar um olhar interseccional sobre os seus atendimentos na pandemia?

Eu percebo a pandemia de uma maneira multifacetada, em gênero, em raça e em classe. As mulheres sofreram mais violência doméstica porque seus companheiros as encontraram ali, muitos deles ficaram desempregados. É uma transferência de opressão: se eu não posso enfrentar meu patrão, eu vou me colocar na condição de proprietário da minha companheira. Muitas mulheres foram submetidas a homens cuja dependência de substâncias, como álcool e substâncias ilícitas, provocou uma série de conflitos dentro de casa. Foi esse contato que eu tive em termos de atendimento.

Foi o período em que mais se contrataram mulheres que estavam desempregadas para serem expostas ao vírus, por exemplo, e infectarem suas comunidades. Por outro lado também, os meninos foram socializados para o espaço público, então se negaram a estar dentro de casa e, assim, contribuiram para que seus mais velhos e suas mais velhas também ficassem expostos aos riscos. Com um Estado que é genocida e persegue a juventude negra, ficou mais fácil aparatos militares ou paramilitares invadirem territórios porque sabiam que lá encontrariam a comunidade, que estava confinada.

Você sente que aumentaram as agressões?

Eu atendi várias [pessoas agredidas]. Isso sem falar em adoecimento mental, incluindo de profissionais que têm esse cuidado mais sensível, empático. Tem colega que até hoje não voltou. Eu fiquei seis meses de licença porque o psiquiatra falou que eu não estava bem.

A universidade não é acolhedora para pessoas não brancas no Brasil. Imagino que você, que entrou em 2004, tenha vivido muitas violências e desafios.

Eu usava black power. As professoras sempre falavam que eu não tinha jeito para assistente social, que deveria me arrumar. O Serviço Social tem uma tradição católica e uma imagem confinada no conservadorismo. Como eu também fujo desse lugar, era muito criticada, já que estudei na Universidade Católica de Salvador. Fui coordenadora de políticas raciais do DCE, tentava fazer uns enfrentamentos, e os professores achavam um absurdo eu ter uma militância ativa e ao mesmo tempo me dar bem. Então não tinham tolerância comigo. Mas não me arrependo, foi importante.

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As pessoas não percebem que o serviço social é uma dimensão importantíssima na saúde. Tudo passa pela assistência, pela previdência, pela política de civilidade. As profissionais só sabiam falar de classe, classe, classe; não percebiam que aquela marcação não dava conta das mulheres. “Ah, ela apanhou porque depende do trabalho do marido.” Não é verdade. Se não tivesse a presença de gênero ali, até hoje elas estariam com esse mesmo discurso.

A violência tem a ver com o gênero.

Tem a ver com a noção de propriedade do corpo feminino, com ser instrumento da dominação masculina, segundo Marilena Chauí, que é quem inaugura esse estudo de violência aqui no Brasil, na década de 80. Ela explica que não precisa, necessariamente, o patriarca estar numa cena para ele chegar ali. Isso tem a ver com fenômenos que estão desenvolvidos na nossa socialização, desde pequenas: competir quem é a mais bonita, a rainha disso ou daquilo. A gente cresce nessa condição de viver para o outro, e não com o outro. Viver como filha, como mãe ou esposa de alguém. Sempre pertencendo a alguém. É por isso que a gente tem dificuldade em sair do ciclo de violência, porque a gente se sente pertencente ao outro, e não com autonomia. Marilena Chauí fala que na violência contra a mulher não existe autonomia, e sim heteronomia. A autonomia da gente está na mão do homem.

Como você avalia a discussão racial e a de gênero que vem sendo feita nos meios de comunicação e nas redes hoje?

Eu não usava o Instagram, estou usando mais ou menos há dois anos porque Djamila falou: “Você tem que usar! O alcance é maior.” Eu achava muito superficial, mas fui convencida por ela e por outras mulheres. O alcance das intelectuais do Nordeste é sempre menor. Zelinda Barros [antropóloga, feminista], por exemplo, diariamente compartilha a história de alguma pensadora negra. E as pessoas sequer falam dela. Mas muita gente vai na página dela, copia e fala alguma coisa como se tivesse escrito. Acho isso um absurdo. Eu vejo também vários textos meus sendo refeitos por outras intelectuais como se fosse um ineditismo de sua cabeça.

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Eu digo: “Poxa, peraí, um monte de mulher intelectual morreu sem ter nada, sem ter casa, e fica um monte de gente ganhando dinheiro na rede social para repetir sem nem citar?” Eu acho um absurdo a gente não honrar essas mulheres. Luiza Bairros [ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, de 2011 a 2014] sofreu horrores, morreu de câncer em 2016. Eu vi Durval Azevedo [militante histórico da luta antirracista] dizendo que ela pedia ele “emprestado” à esposa dele para sair para dançar, porque doou a vida dela toda ao MNU (Movimento Negro Unificado), e esse povo se comportando como revolucionário.

Eu sei que é a pergunta de ouro, mas como você sente que o Brasil pode avançar na questão racial?

A esquerda representa a população que é pobre e marginalizada, mas ela não vive na periferia, não toma tiro. Fica muito na intelectualidade representando algo que é orgânico no discurso, mas não é orgânico na vivência. A gente não tem poder partidário, a gente não tem poder para botar as pessoas em lugares estratégicos. Isso dificulta muito. Do ponto de vista de gênero, em algum momento, a mulher branca tem uma interlocução com o homem branco por conta da raça. A própria luta das mulheres reproduz racismo.

A gente avança muito pouco, por conta da interseccionalidade das identidades. Se visitássemos nossas identidades o tempo todo — de que forma eu estou oprimindo e de que forma eu estou sendo oprimida — construiríamos um projeto político ético para todos. Mas a gente sempre quer abocanhar a parte que nos cabe.

Você acha que uma renovação da esquerda precisa passar por um olhar interseccional, que priorize raça?

Com certeza. A esquerda só coloca o negro no lugar de comissão de alguma coisa, diretoria de combate ao racismo... Negros e mulheres são majoritários e majoritárias nesse país, mas só vivem em comissões. Por isso eu nunca me filiei a nada. Fico indignada.

Gostaria de falar sobre algo que não foi perguntado?

A ancestralidade é o meu fundamento. Eu acredito muito na força dos meus ancestrais, guiando a minha fala, a minha ética do cuidado, o meu compromisso. Angela Davis diz que muitos e muitas morreram para que a gente estivesse aqui. É preciso honrar quem passou antes e sobreviveu, silenciando as próprias dores para que a gente pudesse dar um sorriso na rede social.