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Celina

Autoras negras brasileiras ainda são pouco publicadas por grandes editoras, seja na literatura ou na não-ficção

Grande mercado editorial do país segue majoritariamente masculino e branco. Enquanto isso, editoras de pequeno e médio porte se fortalecem ao atender demanda de público leitor por vozes diferentes
Nos últimos anos, aumentou a publicação de autoras negras no Brasil, um esforço de pequenas e médias editoras Foto: Arte de Clara Brandão
Nos últimos anos, aumentou a publicação de autoras negras no Brasil, um esforço de pequenas e médias editoras Foto: Arte de Clara Brandão

RIO - Autores homens e brancos têm a maior fatia do mercado editorial brasileiro, e isso não é de hoje. Um levantamento feito pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UNB) analisou mais de 600 romances de autoria nacional publicados entre 1965 e 2014 por grandes editoras e constatou que mais de 70% foram escritos por homens e 90% por pessoas brancas.

A pesquisa não avaliou o mercado nos últimos cinco anos, mas uma passeada pelos catálogos disponíveis nos sites das editoras de grande porte do país é suficiente para constatar que o cenário continua parecido. No entanto, cada vez mais, os leitores demonstram interesse em ler outras vozes.

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Por dois anos consecutivos, as autoras dos livros mais vendidos na Festa Literária de Paraty (Flip) são mulheres negras — Grada Kilomba ( Memórias da Plantação , Cobogó) em 2019 e Djamila Ribeiro ( Quem tem medo do feminismo negro?, Companhia das Letras) em 2018. Porém, no portfólio das maiores editoras do país, escritoras negras ainda são exceções perto de uma vasta maioria de autores homens e brancos.

Do autores mapeados pelo Portal LiterAfro, iniciativa de pesquisadores de diversas regiões do Brasil sediada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), cerca de 90 estão vivos e publicando hoje, mas a maioria o faz por editoras menores ou pelo sistema de auto-publicação, afirma o coordenador do projeto, professor Eduardo Assis Duarte.

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Entre as autoras negras que participam da 19º Bienal Internacional do Livro do Rio, que começa nesta sexta-feira, 30, o padrão se repete, afirma a escritora e curadora do evento Ana Paula Lisboa. Ela lembra da já consagrada e premiada Conceição Evaristo, que tem seus livros publicados por editoras menores e segmentadas, como Malê e Pallas, e de Cidinha da Silva, que tem mais de 15 livros publicados, alguns deles também pela Malê e Pallas, e outros pela Kuanza Produções, editora criada por ela.

“Voz a gente sempre teve, mas a gente agora consegue a chegar em outros ouvidos”

Ana Paula Lisboa
Escritora e curadora da Bienal do Livro do Rio 2019

— Acho que as próprias editoras ainda têm muito medo. O lugar da fala negra é um lugar de questionamento. Uma mulher negra vai questionar o lugar da branquitude. E muitas editoras não estão prontas para serem questionadas ou para questionar o seu próprio público — avalia Lisboa.

— Editoras segmentadas têm conquistado cada vez mais espaço justamente porque as grandes editoras historicamente não se ocupam com a diversidade de autores e temas. Se temos hoje um número muito maior de autoras e autores negros publicados do que há décadas atrás, isso é resultado da ação de várias editoras de pequeno e médio porte, que têm provocado a mudança — afirma Fernanda Miranda, doutora em letras pela Universidade de São Paulo (USP).

Entre elas está a Pallas, que dedica a maior parte do seu catálogo a temas da relacionados à cultura afro-brasileira desde 1975. A empresa tem cerca de 300 livros ativos atualmente, incluindo o vencedor do prêmio Jabuti em 2015, "Olhos D'água", de Conceição Evaristo.

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— Editoras menores cumprem um papel importantíssimo na difusão de autores africanos e afro-brasileiros, que muitas vezes batem a porta de editoras maiores e têm dificuldade — explica Mariana Warth, editora na Pallas. Ela confirma que a demanda por esses autores é cada vez maior. — Há uma demanda maior, um movimento importante já de alguns anos de afirmação e de ocupação de espaço, que é fundamental.

Também ganha cada vez mais espaço a editora Malê, criada no Rio de Janeiro em 2015 por Vagner Amaro e Francisco Jorge com o intuito de dar visibilidade a escritores e escritoras negros contemporâneos e aumentar o acesso às suas obras. Entre os livros do catálogo da Malê estão títulos de Conceição Evaristo, Eliana Alves e Giovana Xavier, que participam da Bienal do Livro.

“As grandes editoras, que têm real poder de distribuição, também não podem se eximir de diversificar os seus catálogos”

Fernanda Miranda
Doutora em letras pela Universidade de São Paulo (USP)

Em Minas Gerais, a Mazza Edições também tem foco nas publicações de autoria negra. Em julho, a editora lançou a antologia "Vozes insurgentes de mulheres negras", uma iniciativa da Fundação Rosa Luxemburgo organizada pela jornalista e pesquisadora Bianca Santana. A publicação reúne 24 textos de autoras negras que são referência no Brasil, como Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Leci Brandão, Elisa Lucinda, Sueli Carneiro, entre outras.

Impacto na distribuição

Na avaliação da historiadora Raquel Barreto, a maior procura por essas autoras é causada, em grande parte, pelas ações afirmativas nas universidades, que geraram uma demanda dos alunos negros e negras de outra epistemologia que lhes representasse.

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Porém, o fato de a maioria dessas autoras ser publicada por editoras menores ou de forma autônoma muitas vezes pode dificultar que os livros cheguem nas prateleiras das grandes livrarias.

— As grandes editoras, que têm real poder de distribuição, também não podem se eximir de diversificar os seus catálogos,  pois elas contribuem, evidentemente, para os processos de manutenção do cânone — reforça Fernanda Miranda.

A pesquisadora avalia que isso se reflete não só na publicação de autoras brasileiras , mas também na tradução de escritoras negras para o português. A autobiografia de Angela Davis, por exemplo, só chegou ao Brasil neste ano, pela Boitempo, 45 anos depois do seu lançamento. A editora tem trazido obras de Davis até então indisponíveis no Brasil desde 2016, quando publicou "Mulheres, Raça e Classe".

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— Percebemos, naquela época, que havia uma predominância quase total de autores brancos em nosso catálogo, resultado em grande parte da composição na academia, de onde vem a maioria de nossos autores, e tomamos a decisão de alterar isso — afirma a diretora da Boitempo, Ivana Jinkings.

Ela conta que os livros de Angela Davis estão entre os mais vendidos pela editora. Desde 2016, já foram comercializados cerca de 80 mil exemplares.

Não é só escrever

— Nosso sonho é ser aquela escritora que senta, toma um café, olha a janela, se inspira. Mas quando você é uma escritora negra, seu trabalho vai muito mais além disso — afirma Ana Paula Lisboa .

Sem apoio nas grandes editoras, ela avalia que a tarefa de publicar um livro para muitas autoras negras envolve outros esforços, de agenciamento, divulgação, produção e até mesmo financiamento da impressão dos exemplares.

— Eu levei 10 anos para publicar meu primeiro livro. Está na terceira edição, mais de 15 mil exemplares, mas continua sendo uma publicação sem editora — conta a escritora e atriz Cristiane Sobral , autora de "Não vou mais lavar os pratos" (2010). — É um livro que vende, mas não tenho distribuição. Hoje fui três vezes aos Correios para enviar encomendas — afirma.

Ela considera que essa é uma vivência comum entre escritoras negras . —Imagina quanto tempo eu não teria para escrever. Tem escritores que simplesmente podem sentar e escrever — desabafa a autora.

Sobral considera que, por não ter acolhimento nas grandes editoras, autores e editores negros reinventam a lógica do mercado editorial de "gigantes". Foi pela Malê que ela publicou seus últimos três livros.

— É  tempo de pensar outras lógicas. Nós vamos assim mesmo, sem ser acolhidos. Vamos de outra maneira. E isso fortalece essa iniciativas menores. Talvez não seja mais o mundo dos gigantes.

— É ruim que a gente tenha que acumular tantas funções, mas a gente teve que criar estratégias a vida inteira para ocupar os espaços. O próprio exemplo da Djamila [Ribeiro], que teve que criar a própria coleção para publicar seu primeiro livro [O que é lugar de fala, da  Coleção Feminismo Plurais], para então ser publicada por uma editora maior — afirma a escritora. — A internet ajuda muito nisso, é óbvio. Voz a gente sempre teve, mas a gente agora consegue a chegar em outros ouvidos.

O que dizem as editoras

A reportagem procurou quatro grandes editoras (Companhia das Letras, Planeta, Record e Intrínseca) para saber quantas autoras negras fazem parte do catálogo e o número de vendas desses títulos.

A Companhia das Letras informou que tem 51 autores negros, dos quais 19 são mulheres: 15 já publicadas e 4 que estão com livros no prelo. Em 2018, os livros de três mulheres negras estiveram entre os mais vendidos da editora: "Minha história", de Michelle Obama; "Quem tem medo do feminismo negro", de Djamila Ribeiro; e "Sejamos todos feministas", de Chimamanda Ngozi Adichie.

"Ao longo de sua história, a Companhia das Letras se preocupou em construir um catálogo amplo, plural e democrático, com obras que se destacassem por sua qualidade e relevância. Sabemos, porém, que esse é um processo constante, longe de ser encerrado. Hoje, mais do que nunca, procuramos dar espaço para a maior diversidade de vozes possível, buscando livros e autores que fogem do cânone tradicional – tanto contemporâneos quanto aqueles que foram historicamente marginalizados ou esquecidos”, disse o publisher Otávio Marques da Costa, em nota enviada à reportagem.

A Intrínseca informou que trabalha com uma "lista enxuta" de livros e hoje possui 300 títulos ativos. "A pauta da inclusão é uma realidade com a qual o mercado inteiro se defrontou e nós estamos trabalhando para trazer mais diversidade ao nosso catálogo. Um sinal disso é um projeto que contratamos ano passado, com Ruth de Souza e Lázaro Ramos como autores", disse em nota. Além de Ruth, as outras autoras negras da lista são quatro: Helen Oyeyemi, Brit Bennett, Ayana Mathis e Cynthia Bond, todas estrangeiras. Ano que vem, devem lançar o livro de estreia da americana Nic Stone, “Dear Martin”.

Planeta e Record não responderam até o fechamento da reportagem.