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Carolina Maria de Jesus inspira novo livro com textos de 180 escritoras negras

Obra, que nasceu no curso de formação de escrita da FLUP, reúne contos, crônicas, diários e relatos autobiográficos de uma nova geração de autoras autodeclaradas negras. Lançamento será no sábado (17)
Carolina Maria de Jesus autografa o livro 'Quarto de Despejo', durante participação no I Festival do Rio Foto: Foto Arquivo/Agência O Globo
Carolina Maria de Jesus autografa o livro 'Quarto de Despejo', durante participação no I Festival do Rio Foto: Foto Arquivo/Agência O Globo

RIO - Foi para dar continuidade ao legado de resistência da escritora Carolina Maria de Jesus que 180 mulheres negras se uniram e deram vida ao livro "Carolinas – a nova geração de escritoras negras brasileiras", que a Editora Bazar do Tempo e a Festa Literária das Periferias (FLUP) lançam em uma série de eventos virtuais a partir de sábado (17).

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Nascido a partir de "Uma revolução chamada Carolina", oficina de escrita destinada a mulheres autodeclaradas negras realizada pela FLUP em 2020, a publicação reúne mais de 200 textos, que transitam entre conto, crônica, diário e relato autobiográfico. A obra celebra os 60 anos de "Quarto de despejo", obra mais conhecida de Carolina Maria de Jesus, e pretende dar visibilidade a mulheres que, apesar dos silenciamentos sofridos, buscam por meio da arte e das palavras cunhar novas narrativas sociais.

Para simbolizar uma das atividades desenvolvidas pela escritora Carolina — negra, favelada e que trabalhou como catadora de papel —, 20 mulheres ligadas às cooperativas de reciclagem do ABC paulista também participaram do projeto. Sob orientação do escritor Eduardo Coelho, elas leram "Quarto de despejo" e discutiram suas próprias narrativas.

Viviane Conceição de Souza, de 43 anos, é uma delas. Moradora de Diadema, na Região Metropolitana de São Paulo, ela produziu o texto intitulado “E dentro de mim eu gritava”, falando sobre sua única história de amor heteroafetiva, que lhe rendeu momentos de invisibilidade e solidão. De acordo com Viviane, ter a oportunidade de estar entre as Carolinas, é poder mostrar ao mundo que é possível transformar dores por meio de redes de apoio.

— A importância de ajudar a escrever esse livro é imensa. Com a minha história, eu mostro que podemos transformar situações. Essa lição, assim como Carolina Maria de Jesus, eu tirei da reciclagem, lugar onde descobri que é possível transformar as pessoas e o produto (material reciclado) — explica.

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Para Érika Araújo, professora da rede estadual de Pernambuco e também uma das escritoras com texto no livro, ler a obra de Carolina Maria de Jesus é fundamental para entender o Brasil e suas desigualdades sociais e raciais.

— Carolina vai desnudando em seus textos várias questões importantes. A fome física é só uma, pois a visão dela era muito mais ampla. Para mim, Carolina é muito mais importante pela ousadia de sonhar, de escrever, de falar sobre política, de amores, ou seja, de resistir.

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Julio Ludemir, organizador do livro e co-fundador da FLUP, aponta no prólogo que a pluralidade vista em "Carolinas – a nova geração de escritoras negras brasileiras" é um passo fundamental para inserir mais mulheres negras na literatura. As autoras têm perfis regionais e acadêmicos variados: todos os estados brasileiros estão representados, 40% das escritoras são formadas e 38% têm o título de mestre ou doutora.

"Os quase 200 textos revelam uma geração de escritoras que impactará o país com a mesma amplitude com que a juventude preta mudou o cotidiano das universidades brasileiras, em seguida à implantação da política de cotas. Está longe de ser um devaneio afirmar que não menos de 30 dessas mulheres farão carreiras relevantes no mercado editorial na década que ora se inicia", escreve.

Ao todo, mais de 500 mulheres negras se inscreveram para participar do processo de formação de escrita da FLUP, composto por 15 encontros semanais com pensadoras negras como a escritora Conceição Evaristo, a atriz Zezé Motta, a rapper e historiadora Preta Rara e a deputada estadual  pelo PSOL-SP Erica Malunguinho. As participantes também receberam orientação de escritores, entre eles a colunista do GLOBO, Ana Paula Lisboa, a autora de "Água de Barrela", Eliana Alves Cruz, e o autor de "Torto Arado", Itamar Vieira Jr.

O lançamento de "Carolinas – a nova geração de escritoras negras brasileiras" será virtual nos dias 17, 24 e 27 de abril, nos canais da FLUP e da editora Bazar do Tempo no Youtube.

Catadora e doutora honoris causa

Carolina Maria de Jesus nasceu em 14 de março de 1914 em Sacramento, Minas Gerais, e foi filha de pais analfabetos. Apesar de pouco ter frequentado a escola, aprendeu a ler e escrever, descobrindo aos poucos o desejo de ser escritora. Depois que se mudou para São Paulo, na década de 1930, se tornou mãe e passou a morar na favela do Canindé, na zona norte da capital paulista.

Devido às condições precárias em que vivia, diante das dificuldades por ser mulher, preta, pobre e mãe solo, a escritora também trabalhava como catadora de papel. A profissão era muito querida por ela, pois além de garantir o sustento da família, permitia que encontrasse cadernos para registrar, em palavras, o cotidiano sofrido da favela.

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A realidade de Carolina só mudou no ano de 1960, quando seus textos foram descobertos por Audálio Dantas, repórter do jornal" Folha da Noite". Um dos diários da escritora deu origem a seu primeiro livro, "Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada", publicado em 1960. A obra virou best-seller, foi vendida em 40 países e traduzida para 16 idiomas.

Em vida, ela publicou também "Casa de Alvenaria - diário de uma ex-favelada", "Pedaços de fome" e "Provérbios". Depois de sua morte, por uma crise de asma em 1977, aos 62 anos, foram publicados seis livros póstumos da autora. Em março de 2021, a Universidade Federal do Rio de Janeiro deu a Carolina Maria de Jesus o título de Doutora Honoris Causa.

* estagiária, sob supervisão de Renata Izaal