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Celina

Carolina Maria de Jesus: intérprete do Brasil

Em artigo, a historiadora Giovana Xavier reflete sobre os 60 anos de "Quarto de Despejo", celebrado pela FLUP, e o pensamento das intelectuais negras brasileiras
A escritora Carolina Maria de Jesus, cujo livro "Quarto de Despejo" completa 60 anos Foto: Reprodução
A escritora Carolina Maria de Jesus, cujo livro "Quarto de Despejo" completa 60 anos Foto: Reprodução

13 de maio de 2020. Lembro que começou ontem o ciclo de debates da Festa Literária das Periferias Urbanas (FLUP), que, sob a impecável curadoria de Julio Ludenir, este ano homenageia Carolina Maria de Jesus e o aniversário de 60 anos de seu brilhante livro "Quarto de despejo: diário de uma favelada". Com uma programação virtual inovadora, além das discussões abertas ao público, o evento conta com o curso de formação “Uma revolução chamada Carolina” , ministrado por 40 ilustres professoras. Entre elas: Ana Maria Gonçalves, Ana Paula Lisboa, Eliana Alves Cruz, Mirian Santos, que compartilharão seus conhecimentos com 210 jovens escritoras, selecionadas através de cartas de próprio punho remetidas a Carolina. Tal ideia, por sinal belíssima, foi eternizada pela mestra em Educação Hildália Fernandes em 2014, quando na obra " Onde estaes felicidade? ", lançando mão da escrita criativa, enviou sua missiva à autora.

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Sobre ontem, que momento! Na atual vibe, a vida é uma live, durante duas horas milhares de pessoas acompanharam animadas o painel digital “Uma revolução em instantes” , onde se deu o diálogo entre a escritora Conceição Evaristo e a professora Vera Eunice de Jesus , filha de Carolina. A “noite de gala”, expressão escolhida pela jornalista e mediadora Flavia Oliveira para definir o acontecimento, foi marcada por antídotos aos “perigos da história única”. Aplicados através das narrativas das duas educadoras que, emocionadas, conversaram com o público sobre as muitas versões de Carolina. Mulher. Mãe. Escritora. Migrante. Favelada.

Mantendo a tradição, as mineiras refletiram sobre temas centrais no pensamento feminista negro - cuidado, educação, maternagem, sororidade - sob seus pontos de vista específicos. Oportunidade ainda raríssima, se lembrarmos que apesar de muitos avanços, o pensamento de Carolina Maria de Jesus e da maioria das intelectuais negras brasileiras permanece desconhecido para a maioria do público. Hoje, 13 de maio, quando completam-se 132 anos da assinatura da Lei Áurea, em uma pandemia global que afeta drasticamente a população negra mundial , é oportuno perguntar: por que a história e a obra de Carolina Maria de Jesus permanecem desconhecidas fora dos circuitos acadêmicos e ativistas? O que nos ensina o fato de que um dos últimos registros fotográficos da escritora é como catadora de papel na rodoviária de São Paulo nos anos 1970?

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Há muitos anos dedicando-me às dores e delícias da escrita acadêmica da História de intelectuais negras, para responder  essas questões, em vez de silêncio ou apagamento, penso em desvalorização. Palavra-chave que nos instrumentaliza para analisar a inadequação e falta de tato das elites e ciências hegemônicas para lidar com a autenticidade, o talento e a criatividade das classes trabalhadoras. Ou, na expressão de Conceição Evaristo, para compreender a “linguagem culta-oculta” de Carolina. A mesma gramática reinventada por milhões de mulheres que nutrem a tradição intelectual negra chefiando sozinhas lares. Educando crianças, cultuando diários, preenchendo cadernos de receitas e, claro, pagando boletos. Quando a fome de comida é saciada no papel de pão recheado com palavras, uma tarefa se coloca para as novas gerações: aprender a diferenciar - cientificamente - jeitinho de inventividade:

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“Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém.Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade”.

Carolina Maria de Jesus - Intérprete do Brasil.

Por que não?

Giovana Xavier é historiadora e professora doutora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Este artigo também é publicado pelo blog Conversa de Historiadoras, onde as historiadoras Hebe Mattos, Martha Abreu, Ana Flávia Magalhães Pinto, Giovana Xavier, Keila Grinberg e Mônica Lima compartilham suas reflexões sobre os significados do passado escravista para o país e sobre o papel da disciplina História para a implantação de políticas públicas de combate ao racismo, nos campos educacional  e cultural.