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Celina

Caso Tatiane Spitzner: entenda em cinco pontos por que condenação de Luís Felipe Manvailer por feminicídio é considerada um marco

Após julgamento, especialistas em direitos das mulheres reforçam necessidade de se discutir omissão da sociedade perante a violência doméstica, paridade de gênero nos júris populares e a violência vivenciada pelas mulheres no sistema de justiça
Luis Felipe Manvailer foi condenado a 31 anos de prisão pelo feminicídio de Tatiane Spitzner Foto: Reprodução
Luis Felipe Manvailer foi condenado a 31 anos de prisão pelo feminicídio de Tatiane Spitzner Foto: Reprodução

Faz quase três anos que as imagens de Tatiane Spitzner sendo agredida pelo marido, o professor Luís Felipe Manvailer , no elevador do prédio onde moravam em Guarapuava, interior do Paraná, chocaram o Brasil. As cenas gravadas pelas câmeras de segurança do edifício mostram os momentos que antecederam a morte da advogada , na noite de 22 de julho de 2018. Tatiane foi asfixiada e jogada pela janela do apartamento do casal. Na última segunda-feira (10), Manvalier foi condenado a 31 anos, 9 meses e 18 dias de prisão pelo feminicídio de Tatiane e por fraude processual.

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As imagens no elevador chocam por sua violência, mas também pela omissão de vizinhos, que não intercederam quando ouviram a advogada pedir por socorro. O crime teve grande repercussão na época, não só por sua crueldade, mas também por mostrar como a violência doméstica ainda é tida como um problema de foro íntimo , mesmo depois de mais de uma década de vigência da Lei Maria da Penha.

Por isso, para as especialistas ouvidas por CELINA , a condenação de Manvalier pode ser considerada um marco importante no combate à violência contra a mulher no Brasil. Elas apontam ainda a necessidade de se discutir, a partir deste julgamento, a paridade de gênero nos conselhos de sentença, uma vez que os componentes do júri que julgou Manvalier eram todos homens. Outro ponto criticado foi a “simulação de agressão”, utilizada pelo advogado de defesa do réu nas alegações finais, que chacoalhou uma colega em pleno tribunal.

Abaixo, entenda em cinco pontos porque a condenação de Manvalier pelo feminicídio de Tatiane Spitzner é um marco e quais debates precisam ser feitos a partir deste julgamento:

1. Condenação dá resposta firme à violência contra a mulher

O crime que tirou a vida de Tatiane Spitzner ocupou por alguns dias o noticiário nacional após serem divulgadas as imagens que antecederam a morte da advogada, em que ela é agredida pelo marido na garagem e no elevador do prédio onde moravam.

— A brutalidade das agressões registradas por câmeras de segurança gerou muita repercussão. A sociedade acabou sendo transportada para aquele lugar. São cenas muito fortes e que chamam atenção — relembra Silvia Chakian, promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo. Para ela, a condenação de Manvalier dá uma resposta “fundamental” de repúdio a esse tipo de violência feminicida.

A advogada Sandra Lia Bazzo Barwinski, designada pela OAB do Paraná para acompanhar o processo, explica que não houve novidade na condenação, que veio em linha com aquilo que tem sido praticado pelo judiciário paranaense, mas que o resultado do julgamento não deixa de ser simbólico, em função da repercussão que o caso ganhou na época em que ocorreu. Ela ressalta ainda a transformação ocorrida na cidade de Guarapuava depois do crime.

— A cidade reagiu de maneira muito intensa ao que aconteceu. Mudou complemente. Houve uma mobilização forte para combater a violência contra a mulher, com campanhas e novas legislações municipais. A cidade se tornou muito ativa, muito atenta para isso.

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2. Perspectiva de gênero aparece na sentença

Em crimes contra a vida, o acusado é julgado por um júri popular, que o considera inocente ou culpado, mas a sentença é determina pelo juiz, que faz a dosimetria da pena. Manvalier foi condenado a 31 anos, 9 meses e 18 dias de prisão pelo homicídio de Tatiane, com a qualificadora de feminicídio, e por fraude processual. Chakian e Barwinski ressaltam pontos positivos e simbólicos na sentença proferida pelo juiz Adriano Scussiato Eyng.

—  A pena é significativa, e foi bem dosada e fundamentada pelo juiz. Ele abordou a situação da violência contra a mulher no país, trouxe estatísticas , relembrou a condenação internacional do Brasil no caso Maria da Penha Fernandes, que deu origem a Lei Maria da Penha. Tudo isso foi muito emblemático. Passa uma mensagem importante para a sociedade de não tolerância à violência contra a mulher — avalia a promotora do MPSP.

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Para Barwinski, o juiz determinou a pena sobe uma perspectiva de gênero. Isso significa dizer que a forma como o juiz elaborou sua sentença demonstra que foi feita uma análise sob uma perspectiva que permite visibilizar as assimetrias de poder entre homens e mulheres na sociedade brasileira e a forma como as desigualdades de gênero permeiam os papéis e as normas atribuídas às mulheres, criando um ambiente em que a violência contra elas é autorizada e até mesmo incentivada.

— É uma sentença que fala da não violência e traz uma condenação dura e consistente, que dá uma resposta a um clamor social. O juiz usa até o termo misoginia para explicar porque a violência contra a mulher acontece. Conheço poucos juízes que saberiam definir esse conceito — diz a advogada.

3. É preciso debater a paridade de gênero e a presença das mulheres no sistema de justiça

Luís Felipe Manvailer e Tatiane Spitzner: em 22 de julho de 2018, a advogada que foi
encurralada, espancada e sufocada pelo marido em Guarapuava, no Paraná Foto: Arquivo Pessoal
Luís Felipe Manvailer e Tatiane Spitzner: em 22 de julho de 2018, a advogada que foi encurralada, espancada e sufocada pelo marido em Guarapuava, no Paraná Foto: Arquivo Pessoal

Manvelier foi condenado pelo júri, mas o fato de o conselho de sentença ser formado apenas por homens foi bastante questionado ao longo do julgamento. Ao todo, foram convocadas 30 pessoas para participar do sorteio para integrar o corpo de jurados. Quatro mulheres foram sorteadas, mas acabaram dispensadas após pedidos da defesa do acusado. De acordo com o G1, em três casos a dispensa foi sem motivo - o que é um direito da defesa. A quarta dispensa foi autorizada pelo juiz, após os advogados argumentarem que a sorteada havia curtido uma página favorável a Tatiane em uma rede social.

Além dos sete jurados homens, ainda segundo informações do G1, estavam presentes em plenário um juiz, um assistente do juiz, sete advogados de defesa, um réu, um promotor, um assistente de promotor, quatro assistentes de acusação e apenas uma mulher, assistente do promotor.

— A questão da paridade nos júris precisa ser colocada. Estamos estudando propor um projeto de lei para alterar a composição do júri nesse sentido. Não é aceitável um júri só de homens para julgar um feminicídio. A decisão final poderia ter sido influenciada por isso. Felizmente não foi, mas havia esse risco — afirma Barwinski.

Ela também questiona as motivações que levaram à condenação.

— Será que o júri condenou porque olhou Tatiane como uma filha ou como um ser humano digno de respeito? Esse processo é complicado e a concepção pode ter sido equivocada — completa a advogada.

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Para Chakian, o corpo de jurados ideal é aquele diversificado, capaz de representar a sociedade de forma mais abrangente.

— Quando você restringe esse olhar à população masculina, esse júri não é tão representativo assim. Que bom que tivemos uma resposta de condenação deste júri. Caso contrário, esse debate estaria com muito mais ênfase hoje, porque de fato um júri só de homens não é o ideal — diz a promotora.

4. ‘Simulação de agressão’ é inaceitável e desrespeitosa

Uma cena durante as alegações finais da defesa de Manvalier chocou o país e foi alvo de críticas de profissionais de Direito do Brasil. Nas imagens que vieram a público, o advogado do réu Cláudio Dalledone Junior simula agressões e uma esganadura na advogada Maria Eduarda Lacerda, na tentativa de convencer os jurados de que Manvailer não teria conseguido agir da forma descrita pela acusação. As imagens mostram a profissional sendo sacudida e chacoalhada pelo colega em plenário e geraram indignação.

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Lacerda afirmou que simulação é corriqueira, treinada e foi previamente acordada entre as partes. Ao G1, Dalledone também afirmou que a simulação foi combinada e que se trata de uma “dinâmica de plenário” corriqueira. A OAB do Paraná vai apurar a conduta.

A promotora Silvia Chakian, que atua há mais de dez anos em casos de violência doméstica, afirma que o tipo de dinâmica utilizada pela defesa do réu não é usual.

— Você pode até ter reconstituição e algumas simulações em plenário, mas aquilo ultrapassou qualquer limite e se afastou muito dos parâmetros éticos de justiça e do respeito ao princípio da dignidade humana — afirma. — Não foi só uma simulação para supostamente reconstituir os fatos. Aquelas agressões dirigidas a uma mulher atentaram contra a memória da vítima, contra a dignidade de todas as mulheres e desrespeitaram os familiares de Tatiane. Foi de uma  violência simbólica muito forte — completa.

Barwinski faz coro:

— O recurso que ele usa é odioso. É  uma forma de naturalizar e perpetuar a violência que Tatiane sofreu e atentar contra a sua imagem. E o argumento de reveste de juridicidade. Tenho visto isso em diversos processos. Via de regra, toda vez que há indícios de violência doméstica, a vítima passa a sofrer todo tipo de ataque da defesa do agressor em plenário — afirma a advogada.

Ela considera que a “simulação” é desconectada do momento atual e ofende tratados nacionais e internacionais de Direitos Humanos.

— O comportamento do advogado não é compatível com o atual momento social do país. Não é possível mais tratar mulheres como tratávamos na década de 40, quando o Código Penal foi adotado.

Imagens do circuito interno do edicífio ondem Tatiane e Luís Felipe moravam mostram agressões que antecederam a morte da advogada Foto: Reprodução
Imagens do circuito interno do edicífio ondem Tatiane e Luís Felipe moravam mostram agressões que antecederam a morte da advogada Foto: Reprodução

5. Sociedade precisa parar de se omitir

Quando o vídeo das agressões sofridas por Tatiane dentro do edifício onde morava com Manvalier foi divulgado, em 2018, chamou atenção o fato de os pedidos de socorro da advogada não terem motivado nenhuma interferência dos vizinhos. Durante o julgamento, testemunhas relataram terem ouvido os barulhos dos golpes, o choro e os gritos de Tatiane.

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— Como tudo isso aconteceu sob as nossas vistas? Isso choca. Essa é a maior reflexão que precisa ser feita sobre esse caso, sobre a omissão da sociedade em relação à violência doméstica. Sobre como ,mesmo passados 15 anos da Lei Maria da Penha , ainda há quem resista a interferir e pense em não ajudar acreditando que aquela violência está restrita ao foro íntimo e não é um problema de todos — diz Chakian. Para a promotora, o caso deve ser um exemplo de como o feminicídio é um crime evitável e como a violência doméstica é um problema de todos e todas.

— Todos temos o dever de interferir, ajudar, prestar auxílio, interceder quando uma vítima grita por socorro e pede ajuda. Nao é uma briga de casal onde não se deve meter a colher, é violência pode e deve ser denunciada. A polícia deve ser acionada, porque as vidas podem ser salvas — reforça.

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Barwinski,  que integra o Comitê Latino-Americano para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), reforça que feminicídio pode ser evitado e que é um crime que dá sinais, não acontece num episódio isolado.

— Não se trata de uma responsabilidade de um ou de outro, porque é da nossa cultura. Mas a Lei Maria da Penha coloca a educação como fundamental para a mudança do paradigma da violência contra a mulher. Se tivéssemos uma sociedade educada para a não violência e para perceber esses sinais, esse crime poderia ter sido evitado. É preciso um letramento em gênero, é preciso educar para a não violência e para a igualdade de gênero para que esses padrões parem de se repetir.