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Celina

Com hino chileno, feminismo radical da América Latina se espalha pelo mundo

Mulheres no Chile, Brasil, Argentina e em qualquer lugar do mundo sabem: para parar a violência contra as mulheres é preciso fazer política e ter poder
'O estuprador é você!': mulheres reproduzem performance chilena 'Um violador em seu caminho' na Marchal Anual das Mulheres em Nova York Foto: Getty Images
'O estuprador é você!': mulheres reproduzem performance chilena 'Um violador em seu caminho' na Marchal Anual das Mulheres em Nova York Foto: Getty Images

SÃO PAULO - Durante o processo de seleção do júri para o julgamento criminal de Harvey Weinstein neste mês, dezenas de mulheres se reuniram do lado de fora de um tribunal de Manhattan para apresentar uma versão da performance conhecida como " Un Violador en tu camino ", ou "Um violador em seu caminho", em português.

Primeiro em espanhol, depois em inglês, elas cantaram: "O patriarcado é um juiz que nos castiga por nascer. E nosso castigo é a violência que você não vê."

Essa performance, que rapidamente se tornou viral, foi criada no ano passado pelo coletivo feminista Lastesis , de Valparaíso, no Chile, e é baseada no trabalho da antropóloga argentina-brasileira Rita Segato . A letra descreve como o Estado defende violações sistemáticas dos direitos das mulheres, através de instituições como a Justiça e a polícia.

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Não é apenas o fato de os membros dessas instituições simplesmente desconsiderarem as denúncias — olhando para o outro lado ou duvidando das vítimas —, mas eles geralmente são os próprios autores.

Mulheres cantam 'o estuprador é você' em frente ao tribunal de Manhattan que está julgando o ex-produtor de Hollywood Harvey Weinstein Foto: JODI KANTOR / NYT
Mulheres cantam 'o estuprador é você' em frente ao tribunal de Manhattan que está julgando o ex-produtor de Hollywood Harvey Weinstein Foto: JODI KANTOR / NYT

"O Estado opressor é um macho estuprador", continua o canto.

"Un Violador en tu Camino" foi apresentada pela primeira vez em frente a uma delegacia de polícia por um pequeno grupo de mulheres durante um protesto em Valparaíso, em 20 de novembro. Foi repetido cinco dias depois na capital Santiago por centenas de ativistas no Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres.

No início de dezembro, um grupo de milhares de mulheres cantou o hino do lado de fora do Estádio Nacional de Santiago, que era um centro de detenção e tortura durante a ditadura militar do Chile. (Em um verso, a música menciona o "desaparecimento" das mulheres.)

A partir daí, o hino se espalhou por todo o mundo : Londres, Berlim, Paris, Madri, Barcelona, Tel Aviv, Nova Délhi, Tóquio, Beirute, Istambul, Cidade do México, Caracas, Lima, Buenos Aires, entre outros lugares. Em Manhattan, de acordo com a agência de notícias Associated Press, causou "uma comoção tão alta que podia ser ouvida em um tribunal do 15º andar."

A dança coreografada começa com uma batida de tambor, enquanto as mulheres fazem um movimento de um lado para o outro e batem o ritmo com os pés. Muitos versos falam universalmente sobre a violência contra as mulheres: mencionam estupro, feminicídio, impunidade para os assassinos.

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"E a culpa não era minha, nem de onde eu estava, nem de como me vestia", elas gritam, como se rejeitassem coletivamente as mesmas velhas formas de culpar as vítimas.

Milhares de chilenas se reuniram sexta-feira (30) em Santiago e em outras cidades do país para cantar 'El violador eres tú', com coreografia ensaiada. Grupos menores de ativistas aderiram ao protestos em outras cidades pelo mundo, como Paris e Barcelona. Nas redes sociais, o movimento emocionou muita gente e rendeu milhares de comentários
Milhares de chilenas se reuniram sexta-feira (30) em Santiago e em outras cidades do país para cantar 'El violador eres tú', com coreografia ensaiada. Grupos menores de ativistas aderiram ao protestos em outras cidades pelo mundo, como Paris e Barcelona. Nas redes sociais, o movimento emocionou muita gente e rendeu milhares de comentários

Mas a performance também carrega elementos locais fortes que podem passar despercebidos para o público em geral. Um verso cita sarcasticamente o hino da polícia chilena, palavra por palavra: "Dorme tranquila, menina inocente / Sem se preocupar com o bandido / Que o seu sonho, doce e sorridente / Será velado por sua amada polícia."

O título, "Um violador em seu caminho" também é uma apropriação irônica de um antigo slogan usado pela polícia nacional, "um amigo no seu caminho."

A apresentação também faz referências ao abuso policial no Chile e, por extensão, nos países vizinhos. Parte da coreografia inclui agachamento, mãos atrás da cabeça, um procedimento de busca comum ainda realizado em muitos países da América Latina: policiais e guardas prisionais geralmente forçam as mulheres — às vezes até crianças — a se agacharem nuas, a fim de fazer uma busca nas partes íntimas.

Performance chilena 'Um violador em seu caminho' é reproduzida na Marcha Anual das Mulheres de 2020 em Washington Foto: MARY F. CALVERT / REUTERS
Performance chilena 'Um violador em seu caminho' é reproduzida na Marcha Anual das Mulheres de 2020 em Washington Foto: MARY F. CALVERT / REUTERS

As ativistas usam uma venda de renda preta como símbolo das maneiras muitas vezes invisíveis de tornar as mulheres vulneráveis, mas também como um aceno para as centenas de pessoas que foram parcialmente cegas pela polícia chilena nos últimos três meses, em meio a protestos em andamento. (Desde o início das manifestações, o Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile entrou com 1.080 ações judiciais contra o estado, 770 por alegações de tortura e tratamento desumano e 158 por abuso sexual, incluindo quatro estupros.)

Veja também: Mais de 1,2 milhão de mulheres sofreram violência no Brasil entre 2010 e 2017

Nos países latino-americanos, as mulheres que tocam a música também usam 'pañuelos' verdes — os lenços verdes que simbolizam a campanha pelo aborto legal. (O uso de lenços verdes como emblema dos direitos ao aborto deriva dos lenços brancos carregados pelas Madres de Plaza de Mayo, cujos filhos desapareceram durante a ditadura militar da Argentina.)

Mas "Un Violador en tu Camino" é muito mais do que suas especificidades latino-americanas . É por isso que se espalhou tão longe e tão rapidamente. Ele fala sobre algo que é verdade em muitos países — não apenas no Chile, Argentina ou Brasil. "O estuprador é você", repetem as mulheres aqui e em todos os lugares, apontando para um tribunal, para a sede da polícia ou para o palácio presidencial.

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Os versos significam que as violações contra as mulheres não são eventos isolados, não apenas ligados a relações interpessoais, mas essencialmente políticos. As ativistas apontam o dedo para instituições que facilitam a violência de gênero desumanizando sistematicamente as mulheres e promovendo ideologias para mantê-las sob controle.

Para provar que essa é realmente uma questão política global, olhe para a Turquia, onde a polícia interrompeu uma apresentação da música em Istambul e confiscou o megafone dos ativistas. Seis mulheres foram presas por insultar o presidente e degradar as instituições do estado.

Em um incidente separado, os tribunais emitiram mandados de prisão para 25 mulheres que protestaram em Izmir, enquanto outras nove foram detidas. "A Turquia se tornou o único país onde é preciso ter imunidade para organizar esse protesto", disse a parlamentar Sera Kadigil, enquanto ela e outras colegas realizavam uma versão do protesto no parlamento.

Performance 'Um violador em seu caminho' chegou ao Kosovo, onde mulheres protestaram contra o patriarcado em frente ao prédio do governo em Pristina Foto: ARMEND NIMANI / AFP
Performance 'Um violador em seu caminho' chegou ao Kosovo, onde mulheres protestaram contra o patriarcado em frente ao prédio do governo em Pristina Foto: ARMEND NIMANI / AFP

Não é de surpreender que as mulheres representem apenas 17% do Parlamento turco e 11,8% das posições ministeriais. O país ocupa a 130ª posição entre 153 países no Relatório Global de Desigualdade de Gênero do Fórum Econômico Mundial de 2020.

Aqui no Brasil , enfrentamos estatísticas igualmente deprimentes. As ativistas aqui acrescentaram alguns versos às letras de "Un Violador", dizendo: "Marielle está presente. O assassino dela é amigo do nosso presidente."

Referem-se à Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada em março de 2018, e ao fato de o presidente Jair Bolsonaro ter laços com os dois suspeitos no assassinato. (A investigação está em andamento.) No Brasil, as mulheres ocupam 15% dos assentos da Câmara dos Deputados e 9% dos cargos ministeriais.

"São os policiais. São os juízes. É o sistema. É o presidente. O estuprador é você."

De acordo com o Relatório Global de Desigualdade de Gênero de 2020, a maior disparidade de gênero no mundo ainda se encontra na esfera do empoderamento político. Ouso dizer que é onde tudo começa.

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Apenas 25% dos 35.127 assentos parlamentares globais são ocupados por mulheres, número que cai para apenas 21% no nível ministerial. Em nove dos 153 países examinados pelo fórum, as mulheres não estão representadas. Nos últimos 50 anos, 85 países não tiveram uma chefe de estado feminina.

Não é de se admirar que as mulheres do Chile, onde a música foi criada, estejam exigindo paridade de gênero para uma próxima assembleia constituinte. Não haverá justiça para as mulheres enquanto formos mantidas fora do processo político. Não haverá nenhuma esperança de igualdade . Os estupradores continuarão enquanto a maioria de nós estiver impotente diante de tribunais, delegacias e palácios presidenciais, apontando furiosamente para eles, sem sucesso.