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Celina

Como combater o racismo nas escolas brasileiras? Educadores e familiares dizem o que deve ser feito

Especialistas afirmam que punição aos alunos, contratação de professores negros e mudança no currículo de História devem ser levados em consideração. Pai da menina Fatou, que é educador, resume: 'O Brasil está vivendo apartheid, mas não tem consciência disso'
A estudante Fatou Ndiaye, de 15 anos, vítima de crime de racismo no colégi oFranco Brasileiro, no Rio de Janeiro Foto: Arquivo Pessoal
A estudante Fatou Ndiaye, de 15 anos, vítima de crime de racismo no colégi oFranco Brasileiro, no Rio de Janeiro Foto: Arquivo Pessoal

Esta semana, um caso de racismo em uma escola particular da Zona Sul do Rio reacendeu a discussão sobre o tema no meio escolar. A adolescente Fatou Ndiaye, de 15 anos, recebeu prints de um amigo com comentários racistas em um grupo de WhatsApp de jovens de sua escola, como revelou o colunista Ancelmo Gois. O conteúdo logo caiu nas redes sociais. Chocados, os pais da menina não deixaram que ela assistisse mais às aulas online. A escola emitiu uma nota de repúdio nas redes sociais, mas afirmou na tarde desta sexta-feira (22) que, por se tratar de um fato ocorrido fora, encaminhou o caso ao Conselho Tutelar e está à disposição das autoridades. Cinco adolescentes foram identificados pela polícia como suspeitos pelos ataques racistas. Segundo Juliana Almeida, delegada titular da 9ª DP (Catete), que investiga o caso, o ato cometido pelos jovens se enquadra no caso de auto de infração, que se equipara ao delito de injúria por preconceito. Eles e um representante da escola serão ouvidos pela polícia.

Mas o Franco-Brasileiro, onde estudam os adolescentes em questão, não é a única instituição de ensino da rede particular com casos de racismo em que a família da vítima se sente desamparada. Em menor número nesses ambientes, por causa da desigualdade social brasileira, alunos negros frequentemente se tornam alvo de discriminação racial em colégios privados.

O pai da menina, o senegalês Mamour Sop Ndiaye, professor e chefe do departamento de Engenharia Elétrica do CEFET/RJ, decidiu que ela e a irmã de 8 anos, que também estuda no Franco Brasileiro, não iriam assistir às aulas, que continuam acontecendo à distância, enquanto a escola não tomasse alguma atitude para proteger Fatou. Na quarta-feira (20), ele teve uma reunião com a superintendência e a direção pedagógica do colégio, e foi informado que a instituição levou o caso ao Conselho Tutelar. Na última quinta-feira (21), ele e a menina passaram quatro horas na 9ª DP (Catete), onde fizeram registro de ocorrência, prestando depoimento. Agora, ele e a mulher decidiram tirá-la da instituição.

— A Fatou vai sair da escola. Imagina: você vai ficar num lugar em que seu colega quer te vender no Mercado Livre? — argumenta. — A minha luta contra o colégio e contra esses rapazes vai ser implacável. Até então, eu tinha preocupação com a imagem da escola. Não sou de cuspir no prato onde comi: ela tem história e amigos no colégio, sim. Mas, ao mesmo tempo, nós vamos lutar. Qualquer um que nasceu para ser racista vai preferir voltar para o útero de onde veio. Vamos usar todos os meios, nacionais e internacionais. Sem violência, mas os racistas serão desmascarados. Eu, como educador, tenho responsabilidade junto aos meus irmãos brasileiros para lutarmos para acabar com o racismo.

A escola não atendeu ao pedido de entrevista da reportagem de CELINA e enviou uma nota, a mesma publicada nas redes sociais (veja ao fim da reportagem). Durante conferência online na quinta-feira, um vídeo ao qual a reportagem teve acesso, a diretora do Franco Brasileiro, Celuta Reissmann, falou a alunos do ensino fundamental sobre o episódio, mas não mencionou a questão do racismo: “A gente está aqui numa missão um pouco triste, né? Porque é uma coisa que nós estamos muito, muito abalados, é uma coisa da rede social, fora da escola, e que agrediram nossos alunos, então nós estamos tomando as atitudes, estamos com advogados, mesmo não tendo sido dentro da escola. O que eu queria dizer para vocês, meninos, é que vocês têm que ter cuidado com as redes sociais. Vocês vão crescendo, vão se acostumando com as redes sociais, escrevem o que não devem escrever. Porque, se vocês ofendem nas redes sociais, isso é crime. É crime digital. Então vocês não podem, vocês têm que ter cuidado. Às vezes é uma brincadeira boba, às vezes é pela influência dos outros colegas, mas a gente tem que ter muito cuidado. E isso que eles fizeram foi muito feio, foi muito, assim, ruim para eles, para as meninas, que estão sofrendo muito, e para nós, que somos da escola, que nos envolvemos muito com o trabalho com vocês. Então tenham cuidado, e aí a gente realmente não pode, por mais que a gente goste dos alunos, neste momento a gente não pode abrir mão de estar junto com a justiça, tá? Obrigada.”

Caso Edem: racismo em escola privada no Rio leva a discussão sobre necessidade de contratar mais professores negros

No ano passado, os pais de uma aluna do segundo ano do ensino fundamental da Escola Dinâmica de Ensino Moderno (Edem), então com 7 anos, resolveram tirar a filha  — e sua irmã mais velha — do colégio depois de ela ter sofrido repetidas agressões racistas, inclusive físicas. Na época, eles divulgaram uma carta, que foi publicada na coluna de Ancelmo Gois, em que diziam, entre outras coisas: “Depois de tudo isso, nós não acreditamos mais na capacidade de vocês de colaborarem na formação da nossa menina. Por isso estamos tirando a nossa filha dessa escola.” Procurados pela reportagem, eles disseram não querer recordar o episódio traumático, assim como outras famílias de vítimas de racismo em escolas particulares que CELINA tentou entrevistar.

A profissional liberal Lia*, que topou conversar sob anonimato, viu sua filha, Juliana*, sofrer racismo ainda pequena em uma história que ganhou bastante publicidade. Depois de se ver sozinha, sem apoio de ninguém, acabou trocando a menina de colégio.Em duas outras instituições, a criança foi vítima de discriminação racial. Na terceira ocasião, ao ver que, mais uma vez, a instituição não sabia lidar com a questão, ela decidiu não comprar mais briga.

— Ficaram falando em apaziguamento, sendo que não era uma briga: foi uma agressão, houve uma vítima. Conversei com ela: “Minha filha, isso tudo é uma avalanche de racismo. Tem racismo aqui, aqui e aqui.” E a gente foi se curando em casa — conta. — Não acredito mais no sistema. No centro da proposta da escola, está o ensinar. Não dá para dizer que ela quer, mas não sabe como: se uma escola não sabe como ensinar, eu não sei quem eu posso esperar que saiba. Se eles não sabem, é porque eles não quiseram aprender. Professores que lecionam há décadas se habituaram a usar o meio online, mas não se habituaram a lidar com o racismo. O racismo tem 500 anos neste país. O meio online tem dez — aponta ela.

Entrevista: 'Não basta fazer feiras com temática negra se a escola não contrata mais professoras negras', diz pesquisadora

Mestre em Relações Étnico-Raciais pelo Cefet-RJ com especialização em Educação e Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal Fluminense, a pedagoga Viviane Angelo resolveu se aprofundar no tema há nove anos, depois de um episódio de racismo vivido por seu filho, na época com 5 anos, na escola particular em que ele estudava. A falta de habilidade do colégio para lidar com a situação fez com que ela própria buscasse se aprofundar em estudos na área. Viviane frisa que, em primeiro lugar, a História do Brasil precisa ser recontada.

— Sem mexer nessas feridas, fica muito difícil avançar nessa discussão. Porque nós conquistamos uma legislação que modificasse a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que foi a Lei 10.639, inserindo a temática do negro no Brasil e a História da África. Ela é de 2003, e até hoje a gente vê uma dificuldade na institucionalização dessa lei. E essa dificuldade tem arcabouço cultural, porque a gente não tem essa perspectiva de leitura da História racial do país no nosso currículo formal. Eu me formei em Pedagogia e não tive, em momento algum, disciplina ou leitura de textos, nada que me preparasse para essa temática na educação. Num primeiro momento, a gente precisa conversar sobre currículo: ele precisa ser modificado para, desde as formações de professores, fazer essa reeducação das relações étnico-raciais. A formação continuada é a grande chave — defende.

A professora Patricia Corsino, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cita o texto “Educação após Auschwitz”, de Theodor Adorno:

— Ele fala que não pode ser uma educação só de acúmulo de conhecimento. Ela tem que sensibilizar para o outro também — observa. — Não conheço a escola, nem sei como são os pais desses alunos, então fica difícil dizer. Mas a gente tem um racismo estrutural na nossa sociedade, e ele vai ficando mais exacerbado nas elites. Você ainda tem aí, especialmente em alguns grupos sociais, esse lugar de classe dominante que vai além do preconceito. O que aconteceu com essa menina agora foi racismo mesmo, porque é você considerar o outro inferior, inclusive as palavras foram muito horríveis, desumanizando a pessoa.

Mensagem: 'Vocês vão compreender a minha dor', escreve mãe da menina Fatou

Fatou garante que participou de várias discussões sobre racismo no colégio:

— Os professores sempre levaram esse debate para a sala de aula. Inclusive, sempre me deram destaque. Eu tive uma professora que me cedeu tempo de aula para eu fazer uma apresentação sobre História da África, por exemplo — recorda.

Ela comemora o apoio que tem recebido nas redes sociais (com a exposição do caso, pulou de 600 seguidores no Twitter para 22 mil) e dos outros alunos. Porém, conta que é a segunda vez que passa por uma situação grave de racismo por parte de colegas de turma:

— Uma vez, numa aula de francês, eu estava rindo de alguma coisa e um aluno desse mesmo grupo que falou essas atrocidades chegou e disse: “Volta para a África, para o seu ebola.” Foi em 2016, na época do surto da doença. A professora ouviu, testemunhou ao meu favor, mas o colégio não tomou nenhuma posição — lembra ela. — Agora, os agressores estão assistindo aula normalmente, sem nenhum empecilho. Já fui agredida durante a aula virtual. Eu me senti muito abandonada pela escola. No momento em que eu precisava desse apoio, não tive.

Viviane Angelo, que atualmente é professora da rede municipal de ensino e também é inspetora escolar da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, defende também que é importante que as instituições de ensino prevejam sanções para casos de racismo, para ajudar a coibi-lo.

— Cada unidade precisa ter um regimento, que é o corpo da escola. É onde vai estar escrito o que pode e o que não pode. Se a escola entende que a gente está num país que é atravessado por essas questões, e a gente ainda precisa ter tópicos que proíbam esse tipo de postura, de forma estrutural, você pode colocar isso enquanto punição. A palavra racismo deveria estar dentro do regimento, para que, diante de um quadro desses, a escola esteja documentada para tomar sua ação sem nenhum tipo de problema, porque o regimento é a lei maior da instituição, e ela tem autonomia. Óbvio que ela tem que respeitar as legislações que regem a educação.  Confesso que nunca li, em nenhum regimento, qualquer tópico que falasse diretamente sobre o racismo. No mais, eu acho que é a reeducação da educação étnico-racial geral, desde a direção até o corpo técnico (coordenadores, inspetores) e os professores — sugere.

O pai de Fatou, professor, deixa uma reflexão importante para os brasileiros:

— Eu, como africano, do Senegal, não chamaria de racismo. Para nós, africanos, isso se chama apartheid. Segregação racial. Você ter um país em que a maioria é negra, mas essa maioria não tem acesso a nada, em nome do racismo, então é apartheid. Só que na África nós tínhamos consciência. O Brasil está vivendo apartheid, mas não tem consciência disso.

Nota do Colégio Franco-Brasileiro

Tomamos ciência de um fato ocorrido envolvendo alunos da 1ª série do Ensino Médio do Colégio Franco-Brasileiro, em conversas de um grupo de WhatsApp formado pelos próprios alunos. Nessas conversas, foram constatadas atitudes extremamente racistas.

Estamos profundamente indignados com o ocorrido e reiteramos que o Colégio Franco-Brasileiro repudia, de forma veemente, toda forma de racismo.

O ato de discriminar agride os Direitos Humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana. É nossa responsabilidade enfrentar o racismo nos diferentes espaços que ocupamos, incluindo os ambientes virtuais.

Em nossa proposta pedagógica, destacamos que: “educamos para a democracia e não para o autoritarismo, para a igualdade de gênero e não para o sexismo, para o pluralismo econômico e não para o dogmatismo, para a diversidade cultural e não para o etnocentrismo, para a igualdade racial e não para o racismo, para a liberdade religiosa e não para o fanatismo”.

Estamos analisando todos os fatos para que as devidas providências sejam tomadas.

Violência e misoginia nas redes pode levar a ataques

A professora de Literatura na Universidade Federal do Ceará e blogueira feminista Lola Aronovich vê semelhança entre a linguagem usada pelos adolescentes e a típica de chans (fóruns anônimos) frequentados por incels (do inglês “involuntary celibates”, celibatários involuntários). Ela explica que, nesses espaços virtuais, jovens brancos e antissociáveis tentam ser aceitos por outros rapazes tímidos. E normalmente culpam as mulheres e o feminismo por sua dificuldade em se relacionar afetivamente, destilando uma série de preconceitos.

“E, tristemente, o que os une são preconceitos como racismo, misoginia e LGBTfobia. Eles costumam não ser notados por garotas e, por isso, reservam seu rancor a todas as mulheres. Também gostam de classificar mulheres, muitas vezes dando notas a elas, e mulheres e meninas gordas e negras sempre recebem notas muito menores. Então eles têm ódio ainda maior a essas mulheres, porque elas também os rejeitam. Seu ódio é por serem rejeitados, e nos chans eles são aceitos”, explica a professora, que é vítima de ameaças e agressões de Incels há anos — um deles inclusive foi preso, por diversos crimes que cometeu na internet.

Ela lembra que incels começaram a ficar conhecidos justamente quando passaram a realizar atentados em escolas e universidades, e alerta: agressões discriminatórias na internet podem acabar evoluindo para atos de violência. “Sempre há o risco de que trocas de mensagens preconceituosas possam evoluir para atentados. Afinal, a palavra-chave é aceitação. Para ser aceito pelo grupo misógino e racista, o novo membro precisa provar ser misógino e racista. Às vezes, apenas palavras não são suficientes. Esse rapaz que quer entrar no grupo seria capaz de, por exemplo, gravar um vídeo pregando ódio contra mulheres negras? Seria capaz de começar um site ou página no Facebook chamado ‘Eu não mereço mulher preta’? Essa página foi criada por incels em 2015. Como ele pode atazanar a vida das vítimas?”, explica.