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Celina

Como é ser mulher na Rocinha? Quatro moradoras contam como é viver na maior favela do país

Em vídeo, elas explicam de que forma o cotidiano da comunidade pauta maternidade, escolha profissional, vida afetiva e atuação política
Quatro moradoras contam como é ser mulher na Rocinha Foto: reprodução
Quatro moradoras contam como é ser mulher na Rocinha Foto: reprodução

O barulho das buzinas das motos e carros que passam pela Rocinha é comum para os moradores. Mas a confusão sonora pode significar algo muito maior quando se é mulher na maior favela do Brasil, principalmente quando os sons se transformam em assédio, medo e preconceito.

Entre os becos e vielas por onde os quase 100 mil habitantes circulam estão histórias de mulheres que lutam por seus direitos , trabalhando por melhorias, respeito e reconhecimento por meio de iniciativas conscientizadoras. É isso o que fazem Michele Silva, Rita Smith, Michele Lacerda e Francisca Oliveira, conhecida como Chica da Rocinha, que contam à Celina como é ser mulher na Rocinha.

Em vídeo, conheça as histórias das mulheres da Rocinha:

Moradoras da Rocinha contam como é viver na maior favela do país, que é marcada pela violência.  Entre os becos e vielas por onde circulam cerca de 100 mil habitantes, mulheres lutam por seus direitos e enfrentam todo tipo de preconceito.
Moradoras da Rocinha contam como é viver na maior favela do país, que é marcada pela violência.  Entre os becos e vielas por onde circulam cerca de 100 mil habitantes, mulheres lutam por seus direitos e enfrentam todo tipo de preconceito.

Criadora do jornal "Fala Roça", um veículo impresso da comunidade, Michele Silva é publicitária, tem 30 anos e diz que a ideia do projeto surgiu pela necessidade de ouvir histórias boas da Rocinha e contar sobre a vida dos nordestinos , parcela dos moradores que têm grande importância na história da Rocinha.

— Quando eu e meu irmão criamos o "Fala Roça", pensamos num diferencial: falar da cultura nordestina, que é muito forte na Rocinha. Me incomodava o fato de a grande mídia só noticiar coisas ruins o tempo todo. Percebi que havia a necessidade de mostrar o que há de bom e, principalmente, humanizar o morador, que, na maioria das vezes, é visto como um objeto de estudo — diz a publicitária.

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Michele também atuou na mobilização para doações após o temporal do dia 6 de fevereiro, que destruiu grande parte da comunidade. Apesar do momento difícil, ela acredita que a situação a aproximou mais dos moradores e a fez conhecer outras histórias surpreendentes:

— Eu nunca tinha visto a Rocinha tão devastada como naquele dia. As pessoas estavam assustadas, mas ao mesmo tempo com vontade de ajudar. O contato que tive com as famílias, me ajudou muito como ser humano e como mulher. Conheci pessoas que estavam sem comer há dias e, mesmo não sendo atingidas pela chuva, foram nos pedir ajuda. Foi emocionante. Até hoje eu procuro manter contato com elas, saber se está tudo bem. Entendo que esse é meu objetivo aqui: além de informar, ajudar e mostrar que há coisas boas aqui — afirma Michele.

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Cerca de 70% dos moradores da Rocinha são nordestinos ou seus descendentes. Entre eles está a escritora paraibana Francisca de Oliveira, a Chica da Rocinha, que fugiu da seca no Nordeste e, aos 20 anos, foi morar na comunidade. A paixão pelo local que a acolheu é tanta, que decidiu colocá-lo como se fosse um sobrenome.

— Eu amo a Rocinha. Assim que cheguei fiz parte da associação de moradores, depois fui agente de saúde, atuei na educação e continuo lutando por melhorias. Vejo que meu papel como mulher e nordestina é esse: reivindicar que o poder público olhe com mais carinho para nós e enaltecer esse lugar tão acolhedor e rico que é a Rocinha. Enquanto eu puder, estarei nas ruas e nas manifestações em prol da nossa comunidade — comenta Chica, autora do livro “Uma esperança na luta”, que narra a sua história.

Quando se trata de saúde, principalmente a tuberculose, a Rocinha já teve os piores índices da América Latina, chegando a mais de 400 casos por 100 mil habitantes, em 2001, segundo números da Frente Parlamentar. Hoje, o quadro é diferente: são 179 por 100 mil habitantes. Essa queda se deu a partir da implementação de iniciativas como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e à atuação dos agentes comunitários de saúde, que se empenham em campanhas de conscientização para os moradores.

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Rita Smith, de 56 anos, perdeu a mãe para a tuberculose. Mais tarde, ela também contraiu a doença, mas seguiu com o tratamento e se curou. Rita, então, tornou-se agente comunitária de saúde, área em que atuou por mais de dez anos. Hoje, aposentada, ela ainda oferece parte do seu tempo para alertae os moradores sobre os riscos da tuberculose.

— Fiquei indignada com a morte da minha mãe, que era minha companheira. Depois que eu também tive tuberculose, resolvi trabalhar para que as pessoas soubessem como se prevenir, como tratar a doença e para que perdessem a vergonha de ir ao médico. Como mulher e cria da Rocinha, não posso deixar que outras pessoas percam quem amam ou fiquem doentes por falta de orientação — conta Rita, que além de ter enfrentado a tuberculose, venceu o alcoolismo e o preconceito por ser negra e lésbica.

— As pessoas me viam na rua e atravessavam. Era triste perceber isso. Eu chegava em casa e meu filho não sabia se eu estava bêbada ou sóbria. Até que começou a me incomodar e resolvi parar de beber. Só que depois tive que ouvir piadas e até me esconder por gostar de mulher. As pessoas não entendiam eu ter filho e gostar de uma mulher. E eu também não sabia explicar aquilo, só sabia que gostava e gosto — afirma.

Michelle Lacerda, é produtora cultural, tem 31 anos e é daquelas que contagiam pela força, bom humor e garra. É sobrinha de Amarildo de Souza, o ajudante de pedreiro que após ter sido levado para averiguação por policiais da UPP da Rocinha, em julho de 2013, foi torturado e até hoje não teve o corpo encontrado. Ela conta que sua vida mudou após o ocorrido e que sentiu a necessidade de lutar por essa e outras causas.

— O sumiço do meu tio me fez pensar sobre diversas questões sobre o nosso povo preto e favelado. Inclusive oriento meus filhos com alguns cuidados, principalmente por serem negros e morarem numa favela. Um deles quer ser jogador de futebol. Eu e o meu marido fazemos de tudo para que isso aconteça. Queremos eles sendo jogadores de futebol, advogados, o que eles quiserem ser. Eu prezo pela vida deles, quero e preciso deles vivos — comenta ela.

Criada no terreiro de Umbanda, religião brasileira que sincretiza elementos africanos e cristãos, e iniciada há algum tempo no Candomblé, religião de matriz africana, Michelle se sente orgulhosa por poder realizar os xirês ou as giras (rituais) em sua casa. Para ela, isso é uma forma de resistência.

— Desde sempre as religiões de matriz africana são muito atacadas. Eu mesma já fui hostilizada por conta da minha fé. Uma vez, um rapaz arrancou o ojá (turbante branco usado por quem é iniciado) da minha cabeça e zombou de mim. Me senti tão mal e desrespeitada. As pessoas precisam aprender a respeitar a crença dos outros e a respeitar o próximo também. Por isso que poder fazer as giras na minha casa, além de ser um prazer, é um ato de resistência, por tudo o que o povo de terreiro enfrenta — afirma.