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Celina

Constrangimento, medo e coação: o que dizem mulheres que denunciaram violência doméstica na pandemia

Esse tipo de violência se agravou, mas houve dificuldade para vítimas denunciarem crimes que dependiam principalmente da presença física nas delegacias
Só nos primeiros seis meses de 2020, os boletins de ocorrência de crimes como lesão corporal dolosa e ameaça contra vítimas do sexo feminino apresentaram redução, mas as ligações para o 190 por violência doméstica cresceram 3,9% Foto: Arte
Só nos primeiros seis meses de 2020, os boletins de ocorrência de crimes como lesão corporal dolosa e ameaça contra vítimas do sexo feminino apresentaram redução, mas as ligações para o 190 por violência doméstica cresceram 3,9% Foto: Arte

Desde o início da crise sanitária causada pelo coronavírus, há um ano, organismos internacionais, especialistas e organizações da sociedade civil vêm fazendo alertas sobre o impacto da Covid-19 sobre a violência doméstica. Isso porque a pandemia potencializa os fatores de risco desse tipo de violência, que atinge majoritariamente mulheres e crianças. Se por um lado, houve interrupção ou redução da oferta de serviços presenciais das redes de segurança pública e saúde, por outro lado, houve um aumento da convivência em casa, o que pode tornar mais frequentes episódios de agressões em um contexto de crise financeira.

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Os impactos apareceram nos números. Só nos primeiros seis meses de 2020, os boletins de ocorrência de crimes como lesão corporal dolosa e ameaça contra vítimas do sexo feminino apresentaram redução, mas as ligações para o 190 por violência doméstica cresceram 3,9%, o que indica que esse tipo de violência se agravou na pandemia, mas houve dificuldade para vítimas denunciarem crimes que dependiam principalmente da presença física nas delegacias.

CELINA conversou com mulheres que se viram em situações de violência doméstica e enfrentaram uma série de obstáculos após decidirem denunciar seus agressores. Leia abaixo.

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'Além de ser vítima da agressão, nos tornamos vítima de quem achamos que pode nos proteger'

Estava em um relacionamento de um ano e meio, 9 meses casada, e já vinha passando por violência psicológica. No dia 1 de fevereiro de 2020 veio a agressão física, uma esganadura, e eu consegui acionar a polícia. Mas os PMs aqui em São Paulo não são preparados para atender violência doméstica. Me atenderam, mas não queriam me dirigir à delegacia, foi com muita insistência que consegui ir de viatura para a 63ª DP.

Aguardando para ser lavrado o boletim, ouvi de um dos policiais que aquilo era momentâneo. Ele usou esses termos: "Hoje eu socorro a senhora e amanhã está deitada com ele novamente". Além de ser vítima da agressão, nos tornamos vítimas de quem achamos que pode nos proteger. Fui atendida e direcionada para a delegacia da minha região, onde eu fui muito bem atendida. Lá, a escrivã já tinha passado por violência doméstica, então sabe amparar nesses casos. Ela me sugeriu pedir a medida protetiva e consegui.

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Depois, meu ex começou a fazer ligações. Em março de 2020, ele ligou, se impôs, e eu decidi procurar a delegacia da mulher, já que ele estava descumprindo a medida protetiva. Cheguei às 9h da manhã e a moça disse que eu não precisava fazer nada, para esperar ele me procurar e acionar o 190. Mas eu queria registrar o boletim de ocorrência. De tarde, a escrivã me atendeu, falando que não sabia lidar porque nunca trabalhou com descumprimento de medida protetiva. Acho que ela recebeu orientações da delegada por WhatsApp. Eu apresentei as provas, mas disseram que precisava estar em CD, então tive que sair para providenciar.

Fiquei na delegacia até às 18 horas. A escrivã ainda me questionou: "Você sabe o que pode acontecer com ele? Tem certeza que quer colocá-lo na cadeia?". Eu fiz valer meus direitos pelos conhecimentos que tenho por trabalhar na área da segurança e porque pesquisei muito. É um desgaste físico, psicológico e financeiro. Imagino se eu não estivesse trabalhando... me coloco no lugar de muitas, que saem da condição de violência doméstica desamparadas. Meu inquérito durou seis meses, ele foi preso por 28 dias e saiu em liberdade provisória. O julgamento da agressão ainda não tem data marcada.

Elisa Aparecida Ferreira da Silva, 42 anos, assistente operacional de segurança, de São Paulo (SP)

'Não acredito em justiça, ainda vivo escondida'

Tive um relacionamento 12 anos antes e, no final de 2019, voltamos a ficar juntos, por cerca de três meses. Ele me cobrava muito por ciúmes, até que me deu socos pela primeira vez e me derrubou dentro de casa. Tenho problema nas costas até hoje. Depois, pediu desculpas. Eu aceitei, mas não demorou muito para voltar a acontecer. Eu tenho apneia e ronco e, durante a noite, ele me dava cotoveladas. Eu tinha sempre muita dor. Saí de casa em fevereiro de 2020, peguei só o passaporte, meus documentos e a roupa do corpo.

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Ele continuou me pedindo perdão. Mas, em março veio com duas armas tentar me matar. Ele é policial aposentado, então sempre anda com uma. Consegui fugir. Uma viatura me socorreu, mas o policial que estava nela era amigo dele e, quando entrei na delegacia da mulher de Porto Alegre (RS) para fazer a ocorrência, ele soube que eu estava lá. Chegou cinco minutos depois, dando carteirada para entrar. A funcionária precisou trancar a porta.

Fiz a ocorrência de tudo que passei, mas não incluíram quase nada do que falei. O juiz indeferiu a medida, dizendo que não foi violência doméstica. É muito triste. Onde a mulher vai pedir socorro então? Consegui ir embora para Santa Catarina, onde fiz a ocorrência na delegacia da mulher e consegui uma medida protetiva. O atendimento foi outro. Também mandaram uma precatória para tirar o porte de arma dele, mas não aconteceu nada. Não acredito em justiça. Ainda vivo escondida.

Helena, 58 anos, ex-vendedora (nome alterado para preservar a identidade da entrevistada)

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'Senti que estava na delegacia do agressor, e não da mulher'

Vivi um relacionamento abusivo durante oito meses, em 2020. Em janeiro de 2021, ele disse que queria terminar e eu pedi que apagasse vídeos e fotos íntimas minhas que havia feito. Eu tinha medo que pudesse divulgá-las. Ele pulou para cima de mim, me agrediu com socos, tapas, cotoveladas e chutes. Foi um dos piores momentos da minha vida, achei que ia me matar. Consegui me soltar e ligar para meus pais me buscarem. Ligamos para brigada militar de Porto Alegre, e os policiais militares chegaram e me trataram muito bem.

Chegamos na delegacia da mulher por volta de 2h da manhã, o delegado me acolheu, mas disse que iria trocar o turno, e a outra delegada daria início ao caso. Ela chegou atrasada, ficou conversando… Fiz meu depoimento por escrito e preenchi os papéis para requerer a medida protetiva. Às 11h, ela me chamou, perguntou "como foi mesmo, o que ele fez?", e me encaminhou para o exame de corpo e delito. Fui bem tratada no IML, já estava com hematomas se formando e a funcionária falou que seria o bastante para dar o flagrante.

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Quando a delegada e a escrivã me deram o papel com o boletim de ocorrência para assinar, nada do que expliquei estava ali. Ela disse que não iria dar o flagrante porque não enxergou o crime, que eu estava parecendo muito confusa, não sabia especificar se as marcas eram de chute, tapa ou soco. Eu achava que ia morrer, como iria gravar cada marca? Foi o segundo tipo de violência que sofri naquele dia. Eu disse que não iria assinar, ela fez algumas mudanças mas ainda não estava certo, então ela disse que, se eu não assinasse, não ia sair dali. Estava exausta depois de quase 12 horas e me senti coagida. O depoimento que fiz por escrito também não havia sido incluído.

Senti que estava na delegacia do agressor, e não da mulher. Assinei e fui embora com meus pais. Meu ex é funcionário público, advogado influente, de família rica. Fiquei com a sensação de que não existe justiça para homem rico, branco e hétero no Brasil. Estou fazendo tratamento psicológico e psiquiátrico, todo esse processo que vivi dentro e fora da delegacia me marcou demais. Depois procurei uma advogada que me orientou a ir até a corregedoria fazer a denúncia das profissionais e também conseguiu que eu fosse ouvida novamente. Consegui a medida protetiva e o julgamento ainda está em andamento.

Roberta, 26 anos, estudante de nutrição (nome alterado para preservar a identidade da entrevistada)