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Coronavírus: 'Isolamento é uma oportunidade para mudar a divisão sexual do trabalho', diz antropóloga

Heloisa Buarque de Almeida, professora na USP, aponta que as mulheres podem ficar mais sobrecarregadas nesse período de isolamento domiciliar devido à desigualdade na divisão das tarefas domésticas
A antropóloga Heloisa Buarque de Almeida é professora na Universidade de São Paulo, onde faz faz parte do movimento feminista Rede Não Cala, e coordenadora do Comitê de Gênero e Sexualidade da Associação Brasileira de Antropologia Foto: Arte sobre foto de Raphael Teixeira
A antropóloga Heloisa Buarque de Almeida é professora na Universidade de São Paulo, onde faz faz parte do movimento feminista Rede Não Cala, e coordenadora do Comitê de Gênero e Sexualidade da Associação Brasileira de Antropologia Foto: Arte sobre foto de Raphael Teixeira

Durante a pandemia de coronavírus a indicação é ficar em casa sempre que possível . Por isso, muitas pessoas estão trabalhando de suas residências, e escolas e creches também suspenderam as atividades ou seguem atuando de forma remota. Em um país no qual a divisão do trabalho doméstico ainda é muito desigual - de acordo com dados do IBGE referentes a 2018, as mulheres dedicam cerca de 21 horas semanais a essas tarefas, enquanto os homens gastam a metade do tempo - dar conta de cozinhar, limpar e cuidar das crianças nesse momento é uma responsabilidade que recai principalmente sobre elas.

A antropóloga Heloisa Buarque de Almeida aponta que a distribuição dessas tarefas entre homens e mulheres, conhecida como divisão sexual do trabalho , ainda é pouco questionada no Brasil.

— O espaço doméstico no Brasil ainda é visto como muito feminino. Alguns países lutaram para transformar isso, como Inglaterra e França, e lá vemos homens mais participantes, mas acho que no Brasil questionamos muito pouco. É comum que as pessoas naturalizem dizendo que os homens não sabem fazer determinada tarefa, quando na verdade ninguém nasceu sabendo fazer nada, todo mundo tem que aprender. A gente ensina as meninas desde cedo quando damos panelas para elas, mas ensinamos pouco aos meninos —  ela afirma.

A equipe de CELINA conversou com a antropóloga, que também é professora na Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Comitê de Gênero e Sexualidade da Associação Brasileira de Antropologia, para entender quais os impactos da divisão do trabalho doméstico sobre as mulheres durante o isolamento social devido a pandemia de Covid-19 .

Acredita que as mulheres estejam mais sobrecarregadas durante o isolamento domiciliar devido à pandemia de coronavírus?

Sim, provavelmente muitas estão sobrecarregadas porque a sociedade brasileira ainda naturaliza as atividades domésticas como mais femininas. Nesse momento do isolamento, isso fica muito mais patente, porque com essa situação, além de terem que cuidar da casa, muitas delas estão trabalhando em casa, de forma online, e também vão ter que ajudar as crianças nas lições e trabalhos que eventualmente vão conseguir fazer, se é que as crianças vão conseguir estudar, ainda não sabemos bem como vai ser. É bem difícil, para mim por exemplo, que tenho um trabalho mais intelectual, conseguir me concentrar com crianças do lado.

O 'instinto materno' também é uma questão cultural? Como esse papel de cuidado atribuído às mulheres pode impactar as mães que agora precisam trabalhar no mesmo ambiente que os filhos?

Sim, é totalmente cultural. A gente chama dessa forma mas não é um instinto, é o nosso treino. A mulher sempre foi mais dedicada aos filhos. Ela vai ter que aprender a confiar mais no marido também, deixar ele se virar um pouco. Elas tomam tanta responsabilidade que, às vezes, é difícil delegar. Esse vai ser também um aprendizado: temos que confiar que os caras podem aprender certas coisas que não faziam, podem querer efetivamente dividir as tarefas. Vejo algumas mulheres reclamando quando não é feito do jeito delas. Também temos que tomar cuidado para não misturar responsabilidade e controler.A minha sugestão nesse momento é deixar o outro fazer, não se cobrar tanto, não querer dar conta de tudo.

Artigo : a pandemia vai nos ensinar que as mães não são as únicas responsáveis pela saúde das crianças

Então o isolamento social pode ser uma oportunidade para mudar esse cenário?

Sim, é uma oportunidade para mudar essa divisão sexual do trabalho, porque os maridos vão estar em casa também. E também é uma grande oportunidade para os pais ficarem mais próximos dos filhos. A criança vai achar um jeito de pedir para o pai também as coisas e não só para a mãe. No Brasil, em relação ao trabalho doméstico, se tem uma função que os homens começaram a assumir mais nos últimos 20, 30 anos, é o cuidado com os filhos. Inclusive porque admitimos uma masculinidade mais afetiva. Quando eu tive filho, por exemplo, meu pai falava para meu ex-marido: "Que bom que na sua geração você pode ficar bastante com a filha no colo sem ninguém te recriminar". Mas claro que é algo desigual, pode mudar em relação às regiões ou cidades pequenas.

É possível fazer um recorte social ao falar sobre a sobrecarga das mulheres nesse momento?

Sim, não dá para falar só de mulher, porque são mulheres em condições diferentes. Tem uma elite que ainda não se tocou da importância de dispensar e manter o pagamento das empregadas e faxineiras. No Brasil existe uma desigualdade de classes brutal e ainda temos um resquício de escravidão com a figura da trabalhadora doméstica, tanto que as primeiras pessoas que morreram no Brasil foram um porteiro e uma doméstica, funções de classe popular, típicas de um país muito desigual. Para pessoas de classe popular é uma situação desesperadora Tivemos a votação da renda básica, isso pode ser muito importante porque muitas dessas trabalhadoras não estão recebendo . Além de cuidar dos filhos, estão desesperadas porque estão morrendo de fome. Lembrando que grande parte delas são chefes de família e não têm marido para ajudar.

As mulheres de classe média, ao menos para as que dispensaram as trabalhadoras domésticas, vão se sobrecarregar por ter que aprender a fazer tarefas que não costumavam fazer. Eu mesma estou precisando aprender a fazer faxina de um jeito que não fazia. Vai ser lindo os homens fazerem isso também e, em alguns casos, vejo que estão fazendo. Até porque nem todo mundo vive na família tradicional, com mamãe, papai e filhinho. Os arranjos familiares são muito diferentes no Brasil.

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Quais outros impactos o isolamento domiciliar pode ter sobre as mulheres?

Outro ponto que precisamos falar é sobre o aumento da violência doméstica , que costuma ser pensado em relação aos mais pobres, mas acontece em todas as classes. E que pode também não incluir violência física, mas ser uma violência psicológica, moral. Com todo mundo confinado, as pessoas vão ter que conviver muito mais intensamente, homem e mulher, e o que tende a acontecer é ter um nível muito grande de cobrança para as mulheres. Vai ser um aprendizado forte por um lado. Por outro, uma situação que pode agravar muito a desigualdade e a violência doméstica. Família não é só lugar de amor, é de desigualdade também e, às vezes, de violência. Essa é uma preocupação que precisamos ter nesse momento.