Celina

Dia das Mães: 'A expectativa de vida das pessoas trans no Brasil é de 35 anos. Eu tenho 29, como fica a criação do meu filho?'

Nós resistimos e estamos construindo todos os espaços que nos foram negados: a família, a escola, a universidade, tudo é lugar de denúncia
Matuzza Sankofa é mãe, mulher trans e diretora da Casa Chama Foto: Reprodução
Matuzza Sankofa é mãe, mulher trans e diretora da Casa Chama Foto: Reprodução

Meus pais são divorciados e, assim que minha mãe descobriu minha orientação sexual, decidiu me colocar para fora de casa. Foi quando saí de Itabina, minha cidade no interior de Minas Gerais e fui para Belo Horizonte, onde fiquei uns dias na rua até o conselho tutelar me pegar. Morei em uma instituição para menores até os 18 anos, quando tive que sair. Passei por situação de rua até que acabei numa república, onde me ajudaram a encontrar um emprego de redutora de danos na instituição BH de Mãos Dadas Contra as Drogas, focada no público LGBT+. Nessa época, eu me reergui e consegui morar sozinha.

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Todos que viviam comigo no abrigo em Belo Horizonte se prostituiram para viver. Eu fui chamada para trabalhar no CAPES, fui para os movimentos sociais, mas no fim de 2019, fiquei desempregada. As instituições passaram a sofrer ataques e tiveram seus recursos cortados depois da eleição de Jair Bolsonaro. Foi aí que vim para São Paulo, depois de postar um pedido de ajuda no Facebook. Uma antiga moradora de rua de Belo Horizonte, que já estava em São Paulo, me abrigou. Ela fazia curso no É de Lei, organização de redução de danos focada em usuários de drogas e, no meu segundo dia na cidade, deixei meu currículo lá. Eles não tinham nenhum trans nem gente preta trabalhando com redução de danos. Hoje sou coordenadora de três projetos.

Em São Paulo, eu conheci o Aiace.  Foi há uns 7 meses, na UBS Barra Funda, onde a Casa Chama presta atendimento médico e humanização às pessoas trans. Nós nos olhamos, mas não conversamos. Uma amiga me contou que ele tinha um filho, e eu sempre tive esse desejo. Acho que por ter tido esse lugar da família negado, eu sempre desejei ter família e filho. Tanto que, desde que comecei a trabalhar, tenho uma poupança exclusivamente para ter um filho. Só mexi nela depois que conheci o Malcom, filho do Aiace.

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Fomos nos conhecendo e conversávamos muito sobre a questão de ser trans, sobre como educar um filho. Um dia, convidei o Aiace para ir à praia e nunca mais nos separamos. Até que o Malcom foi me acolhendo nesse lugar de mãe e abrindo esse espaço para mim. O Aiace transicionou há um ano, então o Malcom perdeu uma mãe e ficou com dois pais. Hoje, se você perguntar, ele diz que tem dois pais, Aiace e o ex, que é cisgenero, e que eu sou a mãe. Moramos juntes há um tempo, como uma família, e temos vontade d ter um filho nosso. Era uma vontade minha, porque eu não tinha entendido que o Malcom era meu filho. Só percebi depois que ele me acolheu. Mas pode ser que outro filho venha; Aiace tem possibilidade de engravidar, porque parou a hormonização que estava fazendo há um ano. Eu também comecei há mais ou menos um ano e meio, mas agora esperamos um pouco porque veio o desejo de gerar.

É isso. Somos uma família afrotranscentada, preta. O Aiace é músico e é o melhor pai que já conheci. A gente está construindo essa família muito legal e fora dos padrões; até vemos casais transcentrados, mas a é branco e de classe média. A gente está construindo esse lugar novo com afeto e cuidado.

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Este é o primeiro dia das mães desde que saí de casa, há 15 anos, que vai ser simbólico para mim. No passado, foram anos de muita dor e tentativas de reaproximação com a minha mãe. Em todas as vezes, essa aproximação foi negada até que desisti. Agora, vejo que a data está chegando e estou muito feliz: talvez eu ganhe um presente ou um desenho; a gente vá comemorar junto. Esse lugar do acolhimento enquanto família é um marco. É o nosso primeiro lugar na vida e, para as pessoas trans, é o primeiro lugar onde você está e também o primeiro lugar de que é excluído. Um lugar que te reprime e te expõe às maiores violências.

Não dá para romantizar esse lugar. Enquanto mãe trans o meu maior desafio é a transfobia. Pela sociedade, não posso ser vista como mãe. E ainda quando o filho não é biológico, vem a limitação. Não posso acompanhar o Malcom numa consulta, por exemplo. Se saio com ele na rua sozinha, os olhares me dão medo. Ficam me olhando com cara de susto e de medo, tentando entender se está tudo bem com ele, como se eu fosse uma violentadora. Minhas amigas que são mães trans contam situações parecidas: uma delas estava no metrô e chamaram o segurança, questionando por que ela estava com uma criança.

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Essa negação da nossa família traz uma sensação de tristeza. Você é expulsa da sua família, sobrevive a isso, resiste, descobre outras possibilidades de existência familiar e de afeto, mas quando reivindica o seu direito, não é reconhecida. Por meu nome não estar no RG do Malcom, dependo sempre da presença do Aiace; precisamos fazer tudo juntos.

Há pouco tempo, tivemos uma conversa com o outro pai do Malcolm, que em três anos não contribuiu financeiramente para os gastos do filho. Ele aceitou com tranquilidade que eu sou a mãe. Comecei a pensar na questão legal e estou com muita vontade de descobrir quais possibilidades temos para oficializar isso na Justiça. Independente da relação com o Aiace, a minha relação com o Malcolm nunca vai acabar. Nunca me senti tão abraçada, é um amor tão gratuito. Malcolm me trouxe muita responsabilidade: o que eu posso fazer no dia a dia pra que, quando ele crescer, seja tudo leve? Para que ele seja acolhido? E se ele for uma pessoa trans ou LGBT? Além disso, ele também é uma pessoa preta. Quais caminhos eu posso construir para que ele seja acolhido de uma forma diferente da que eu fui? Procuro trazer para o Malcolm a autoestima que foi negada para a gente. Não me lembro de ter ouvido da minha família que eles me amavam, e a gente fala isso para o Malcolm o tempo inteiro.

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As primeiras pessoas na família que acolhem as pessoas LGBT são as crianças. Eu tenho quatro sobrinhos e quando disse para eles “Eu sou tia, não tio”, passaram a me chamar de tia imediatamente. Minha sobrinha mais nova, Cecília, assim que expliquei que era trans e que gostaria que me chamasse de tia, disse: “Ah, mas eu sempre soube que você era tia”. Quando o Malcolm for mais velho, nós vamos conversar sobre sermos trans, mas é um processo muito natural.

A expectativa de vida das pessoas trans no Brasil  é de 35 anos; eu tenho 29. Como fica a criação do meu filho? Tivemos avanços muito importantes e temos nos organizado para coisas grandes como as últimas eleições, na qual elegemos 30 pessoas trans pelo país inteiro. Não temos mais como retroceder e nos limitar na sociedade. Já estamos com o pé na porta e não vamos mais aceitar que espaços sejam negados para a gente. Nós resistimos e estamos construindo todos os espaços que nos foram negados: a família, a escola, a universidade, tudo é lugar de denúncia. Quando construímos uma família, mesmo com todos os processos de exclusão e de negação da existência dessa família, mostramos que existimos e denunciamos isso também.

* Matuzza Sankofa é mãe, mulher trans e diretora da Casa Chama