Exclusivo para Assinantes
Celina Coronavírus

Diário de uma bailarina na quarentena: aulas, uma bebê, pais aposentados e um MBA

Megan Fairchild, do New York City Ballet, se divide entre aulas, a filha de 1 ano e 5 meses, um curso e o jogo de quebra-cabeças com os pais
A bailarina do New York City Ballet, Megan Fairchild, se exercita na sala de sua casa ao lado da filha Foto: Kim Raff / NYT
A bailarina do New York City Ballet, Megan Fairchild, se exercita na sala de sua casa ao lado da filha Foto: Kim Raff / NYT

SANDY, Utah – Para os bailarinos, uma vida normal significa dançar e suar muito próximos dos outros por até doze horas por dia, seis dias por semana. Normalmente, as aulas matinais do New York City Ballet parecem tão lotadas quanto a estação de metrô da Rua 42, depois de dois trens passarem sem parar. Para os bailarinos, a distância de dois metros é coisa rara.

Nesta nova vida que todos estamos levando, não temos acesso aos nossos estúdios habituais, com pisos especiais, espelhos e barras de balé. E talvez o mais desafiador seja que o evento para o qual trabalhamos todos os dias – a apresentação ao vivo – está em espera in

Esteja atenta: Isolamento domiciliar por coronavírus pode aumentar sobrecarga das mulheres

Como o resto do mundo, estamos tentando trabalhar remotamente. Mas, em nosso trabalho, isso não é tão simples quanto mudar da grande mesa do escritório para um laptop em casa.

Encontrei um refúgio em Utah, na casa em que passei minha infância e da qual saí há vinte anos para seguir uma carreira na dança. Nunca pensei que voltaria aqui e ficaria tanto tempo assim, mas de alguma forma isso não parece estranho. Acho que meus pais, aposentados, estão mais confusos com a nova situação do que eu! Para mim, a vida estranhamente fechou um círculo completo: a sala de estar onde meu irmão Robbie Fairchild e eu costumávamos fazer shows de dança ao som de Billy Joel e Simon & Garfunkel se tornou agora o melhor lugar para meu "home office".

Megan Fairchild, bailarina do New York City Ballet, se exercita durante a quarentena Foto: Kim Raff / NYT
Megan Fairchild, bailarina do New York City Ballet, se exercita durante a quarentena Foto: Kim Raff / NYT

O Zoom provou ser a plataforma ideal de conexão, mesmo em um setor tão físico como o meu; estamos todos em comunhão para ter aulas de balé e fazer exercícios para manter a forma física necessária ao nosso trabalho. O piso de madeira da sala de estar não é bom para trabalhos de ponta, a menos que eu use um tapete de ioga, mas consigo fazer uma aula de balé parcial em um espaço aberto. Uso o armário de porcelana como barra de balé e tento trabalhar minha técnica normalmente.

Utah está tão longe da vida de Nova York quanto é possível imaginar, e, em circunstancias normais, a ideia de passar semanas a fio aqui não seria meu ideal de diversão. Mas agora é um alívio estar em um lugar com fácil acesso ao ar livre, máquinas de lavar e tempo para a família, com meus pais, meu marido e minha bebê de 1 ano e 5 meses.

Entrevista: 'Sou como o Pelé e seus mil gols: a única pessoa que conquistou isso', diz Ingrid Silva, negra e primeira bailarina do Dance Theater of Harlem

Um lado da sala de jantar está configurado para ser o espaço de trabalho do meu marido, enquanto edito as aulas de balé do YouTube e as entrevistas no meu computador na outra extremidade – entre as funções de mãe, de manter a forma e de fazer aulas pelo Zoom e realizar os trabalhos domésticos (estou fazendo um MBA na Universidade de Nova York). Por conta da bebê, temos de seguir certa agenda: meu marido tem a prioridade de trabalhar durante a semana e faço a maior parte do meu trabalho aos fins de semana ou enquanto minha filha tira um cochilo.

Um dia da minha nova vida é mais ou menos assim:

– Uma ou duas horas em minha aula de contabilidade ou de firmas e mercados pela universidade. Duas vezes por semana, participo de uma sessão escolar de três horas pelo Zoom. Estou achando deprimente ver todos nós em casa e fico um pouco emocionada cada vez que a sessão começa.

– Gravo um exercício na barra de balé ou entrevisto um colega dançarino para postar em meu canal do YouTube ou edito um vídeo do dia anterior. É minha maneira de me conectar com a dança e retribuir neste momento em que todos perdemos a possibilidade de assistir às aulas juntos.

– Vou ao quintal ou caminho perto das montanhas. Manter-me longe dos outros vizinhos na trilha parece hostil, mas necessário.

– Ajudo meus pais com seus quebra-cabeças. É vergonhoso admitir, mas tenho feito tantos quebra-cabeças nas últimas semanas que reapareceu uma antiga lesão no pescoço, causada pelo balé, e agora tenho de fazer meus antigos exercícios antes de ajudá-los.

Sem preconceito: Pedreiro e bailarino, carioca desafia 'masculinidade tóxica'

– Escolho duas das seguintes atividades diárias: corrida de 30 minutos ao ar livre ou elíptica em casa; aula de Pilates, GyroKinesis ou ioga on-line; um treino na barra de balé ou o do City Ballet – que a companhia oferece por meio do Zoom. É legal ver meus colegas bailarinos na visualização de grade quadriculada enquanto treinamos juntos.

– Cozinho para minha bebê e espero que a comida não acabe no chão. Sinto muita falta dos lanches e das refeições que a creche fornecia e que me poupavam de pensar em duas refeições a mais por dia.

– Canto e danço com minha filha. "Bounce Patrol" foi temporariamente banido de nossa casa, depois que todos ficamos com as músicas grudadas na cabeça.

– Faço o jantar dia sim, dia não. Dividimos essa tarefa entre os adultos. Também tenho assado muitos pães para compensar a falta de um Starbucks na esquina.

– Converso via FaceTime com meu irmão, que ainda está em Manhattan, e tento mantê-lo conectado enquanto todos nos escondemos.

– Coloco nossa filha para dormir e relaxo assistindo à televisão. Minha mãe e eu tentamos nos distrair com um episódio de "Dateline" ou algo completamente ridículo como "Tiger King". No andar de baixo, meu pai assiste às notícias preocupantes e meu marido escuta podcasts atrasados.

Coronavírus: o que as mulheres precisam saber para preservar sua saúde durante a pandemia

É fácil sentir-se confuso quando você raramente sai de casa, e notei que, se eu não começar meu dia me exercitando, tenho dificuldade para manter minha mente ativa e produtiva.

Ainda estou pegando leve com as aulas de balé, pois vejo que essa situação ainda vai durar bastante. Em 2014, tirei um ano de folga do City Ballet para participar do espetáculo da Broadway "On the Town". Durante aquele período, fiz a maioria dos meus treinos de barras de balé por conta própria, em espaços estranhos, como o atual, e sei que é fácil enjoar muito rapidamente. Por enquanto, encontro motivação filmando meus treinos de barra e publicando os vídeos no YouTube, oferecendo correções e fazendo comentários que me vêm à cabeça enquanto treino.

Após uma semana de distanciamento social, fiz minha primeira tentativa de dar aulas de balé pelo Zoom. As alunas estavam na costa leste dos EUA, em sua cozinha ou em seu quarto, apoiando-se em uma cadeira ou uma cômoda. O pianista tocou o piano em casa e, de alguma forma, mesmo com toda a distância entre nós, vi doze meninas em minha visualização de galeria seguindo o ritmo da música e fazendo correções. Uma garota pulou uma série de exercícios e se sentou no chão. Ela explicou depois, no bate-papo, que havia pisado em um cacto em seu quarto e que precisava tirar o espinho.

Depois de parar minha carreira de balé por um ano para participar do espetáculo da Broadway e por mais um ano para ter minha bebê, essa pausa não me aflige tanto quanto sei que afligiria nos meus primeiros anos como dançarina. Consegui me afastar duas vezes da minha carreira de balé, sempre retornando com o corpo e a mente revigorados.

Quando você se dedica a algo tão intensamente, um pouco de respiro pode lhe dar uma perspectiva nova e fazer com que você o valorize ainda mais. Quando, um dia, voltarmos aos nossos estúdios normais, nunca mais esnobaremos o toque em um piso de dança Marley e uma barra perfeitamente posicionada – feita para dançarinos.

Megan Fairchild é bailarina principal do New York City Ballet