Exclusivo para Assinantes
Celina

Djamila Ribeiro: 'Falta aos brancos ler os autores negros'

Filósofa lança nesta terça-feira em SP o livro 'Pequeno manual antirracista', que chega às livrarias a partir de quarta
Djamila Ribeiro, nome importante do feminismo negro brasileiro Foto: Arte sobre foto de Marcos Alves
Djamila Ribeiro, nome importante do feminismo negro brasileiro Foto: Arte sobre foto de Marcos Alves

RIO - Filósofa, mestre em Filosofia Política, escritora e ativista com milhares de seguidores nas redes sociais, Djamila Ribeiro se tornou referência no feminismo negro no país. Aos 39 anos, ela foi recentemente eleita uma das cem mulheres mais influentes e inspiradoras do mundo pela rede britânica BBC.

Só mulheres: Plataforma 'Celina' lança banco de fontes público exclusivamente feminino

A escritora lança agora seu “Pequeno manual antirracista” (Companhia das Letras), inspirado no livro “How to be an antiracist”, de Ibram X. Kendi. A publicação brasileira traz onze capítulos que buscam ajudar a entender as origens do racismo e saber como combatê-lo.

Para Djamila, o livro não é voltado apenas para pessoas negras:

— As pessoas brancas precisam desnaturalizar o olhar sobre essas questões. Não entendem que é um problema das pessoas brancas também, é um problema da sociedade.

“Pequeno manual antirracista” tem lançamento nesta terça-feira, 5, em São Paulo e chega às livrarias do país na quarta. No Rio, a previsão é de que seja lançado oficialmente em 26 de novembro.

CELINA: Do que o 'Pequeno manual racista' trata?

DJAMILA RIBEIRO: Basicamente, são capítulos curtos em que eu falo de assuntos como racismo e mercado de trabalho, racismo e afeto, e explico a importância de se discutir esses temas dando dicas, reflexões. Claro, não tenho que encerrar o assunto, mas são lições breves para entender as origens do racismo e como combatê-lo, basicamente.

Quem você acha que é o público do livro?

Penso que tanto pessoas negras como pessoas brancas. As pessoas brancas precisam entender as origens sociais do racismo, desnaturalizar o olhar, descondicionar o olhar sobre essas questões, porque muitas vezes acham que o racismo é um problema dos negros. Não entendem que é um problema das pessoas brancas também, é um problema da sociedade. E é um livro importante também para nós, negros, porque temos acesso a reflexões críticas para poder pensar sobre a nossa condição. Eu acho que é um livro para todo mundo que esteja aberto a discutir essas questões, que são tão importantes, não só para determinados grupos, mas para a sociedade brasileira como um todo.

Qual é o papel dos brancos na luta antirracista? Como brancos podem ser úteis nessa questão?

Eu acho que o primeiro passo é entender que é necessário se informar. Muitas vezes, as pessoas têm o privilégio de nem sequer olhar e entender a situação. Diz-se muito que empatia é se colocar no lugar do outro. Eu acho que não, porque não tem como a gente se colocar no lugar do outro. Eu nunca vou saber o que é ter meu afeto criminalizado se sou uma mulher heterossexual. Mas posso ler sobre esse tema, posso escutar o que minhas companheiras lésbicas falam, posso convidá-las para escrever na minha coleção. Então eu entendo empatia como uma constituição intelectual e política. Falta às pessoas brancas ler os autores negros, ler o que se tem produzido historicamente sobre esse tema, para, aí sim, munidas de conhecimento sobre a nossa sociedade, pensar ações concretas de combate a essas desigualdades. Então acho que trata-se de entender esse processo intelectual e político para, do seu lugar, conseguir impactar positivamente outras pessoas.

Nacionais x estrangeiras: Autoras negras brasileiras ainda são pouco publicadas por grandes editoras, seja na literatura ou na não-ficção

Isso remete à ideia do lugar de fala. Ainda existem confusões a respeito desse conceito?

É, causa muita polêmica. Muitas pessoas deturpam o conceito. Dizem que lugar de fala é interditar o debate, quando na verdade o que a gente busca é a multiplicidade de vozes, para que não tenha um grupo somente falando, produzindo, ditando o que é a Humanidade. Nós gostaríamos de ter mais pessoas negras, indígenas, mulheres participando desse regime discursivo. Isso nada tem a ver com impedir o debate. É justamente trazer mais questões para ele. Fora isso, é fundamental que as pessoas que vêm de um grupo social marcado pelo privilégio entendam que existem outros grupos, que o mundo não se forma apenas a partir das elaborações de homens brancos heterossexuais. O mundo se faz a partir das elaborações de vários outros grupos. Esses homens brancos naturalizam o lugar deles como o único possível. Então, lugar de fala também está relacionado a compreender isso, que nós estamos lutando por coexistência e pela queda dessas hierarquias que nos colocam muitas vezes num lugar no qual sequer somos ouvidas.

Capa do mais recente livro de Djamila, "Pequeno Manual antirracista" Foto: Divulgação
Capa do mais recente livro de Djamila, "Pequeno Manual antirracista" Foto: Divulgação

Uma interpretação comum sobre esse assunto é que quem não está em determinado lugar de fala não pode, de maneira alguma, falar. Mas não é isso que você explica.

Exato, é justamente o contrário disso. Porque, senão, caímos numa inércia também: “Ah, não é o meu lugar de fala, então não vou fazer nada.” Você pode não vir de um lugar social, mas você também é impactado por isso. Então, se pessoas negras são discriminadas, existe um grupo que está se beneficiando dessa opressão. E as pessoas não entendem que discutir racismo também é discutir branquitude, não só negritude. Debater gênero não é só debater o feminino, mas também a masculinidade. E como, dos nossos lugares, nós devemos discutir esses temas visando encontrar saídas emancipatórias. Então todo mundo tem lugar de fala e todo mundo deveria debater sobre os outros lugares de fala também.

Acompanhe Celina no Instagram: @projetocelina

Nos últimos anos, avançamos no debate sobre racismo. Falamos sobre feminismo negro, que há alguns anos era algo mais restrito ao ativismo no Brasil. Como você vê avalia o momento atual de discussões?

Eu acredito que, ao mesmo tempo em que estamos vivendo um momento muito difícil no Brasil, de retrocesso e de aprofundamento da criminalização dos movimentos sociais, nunca se falou tanto desses temas. Acho positivo poder falar sobre isso no debate público. O quanto se popularizou citar “lugar de fala”... Mesmo que seja para criticar o feminismo, as pessoas estão falando disso. Porque, durante muito tempo, isso foi um tema que ficou escondido, as pessoas não debatiam tanto, tinham medo de dizer. Acho que o grande ganho deste tempo que a gente vive hoje é poder discutir isso, ter mais gente interessada, ver cada vez mais as pessoas tentando compreender, querendo entender, e acredito que isso nunca aconteceu no Brasil. O lado bom deste momento histórico é ter jovens organizados, ver coletivos de meninas tão novas, chegar a determinados espaços periféricos e ter saraus, organizações. Também é importante mostrar esse lado do que está acontecendo no Brasil.

Na Flip: Dos 5 autores mais vendidos, 4 são negros e 1 é indígena. Quem são eles e por que isso é tão revolucionário

O que você acha mais interessante na nova geração?

Acho bem bacana observar o tanto de blogs que existem sobre os temas, educadores fazendo coletivos, núcleos de estudos em universidades. Para não ser injusta, não vou nem citar nomes, mas acho muito bonita essa efervescência que se vê hoje de jovens no Rio de Janeiro debatendo política de drogas, pessoas nas periferias se organizando e mostrando que produzem conhecimento, rompendo com esse olhar de “ah, temos que levar a luz para a periferia”, como se as pessoas ali também não produzissem existência, saberes. É muito bonito ver essa manifestação, sobretudo vindo dos espaços periféricos e dos jovens, que assumem protagonismo.

Djamila Ribeiro Foto: Marcos Alves / Agência O Globo
Djamila Ribeiro Foto: Marcos Alves / Agência O Globo

Você acha que isso também tem a ver com o acesso das novas gerações negras à universidade, a partir das ações afirmativas?

Ah, sem dúvida. Nunca se teve tantas pessoas negras cursando o ensino superior. Isso é um retrato desse número grande de universidades que foram construídas nos interiores do Brasil, os institutos federais. Tem a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, por exemplo, onde a maioria é formada por estudantes negros. Isso, de fato, é um reflexo direto dessas políticas públicas na área de educação nos últimos anos. Com um maior número de pessoas negras ingressando na universidade, a gente também tem uma mudança nas produções, na forma de enxergar a sociedade. Eu mesma faço parte dessa geração que teve acesso a políticas públicas na área de educação: estudei num campus que foi criado em 2007, e sou da turma de 2008.

Giovana Xavier: 'Não estou na academia para ser legitimada pelo script branco'

Para você, o que o Brasil precisa para combater de verdade o racismo?

Eu penso que é, de fato, os gestores públicos entenderem a importância de colocar a interseccionalidade na prática, entender que não é meramente um conceito teórico. É preciso pensar políticas para populações negras, para as mulheres, não é pensar de forma localizada. Muitas vezes tem acontecido o seguinte: criam uma secretaria de mulheres e uma secretaria de habitação social, mas não compreendem que, na hora de se pensar políticas de habitação, é preciso levar em conta raça e gênero. Quem são as pessoas que mais sofrem com a falta de moradia? Quantas mulheres não saem de relacionamentos abusivos porque não têm onde morar? Então, na hora de pensar educação, saúde etc precisa pensar gênero e raça. Ainda falta esse olhar. Se a gente não melhora a vida de grupos que têm um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo, a gente não melhora o índice de desenvolvimento da cidade, do país. E, para nós, ativistas,  o momento é de maior repressão, de retrocessos, de cortes no orçamento da educação, de maior militarização, com um discurso que reforça essa política violenta em relação aos movimentos sociais, à população negra. Não sabemos muito bem para onde o país está indo. Então é um momento de preocupação, sem dúvida. Porém também acho que é uma época de resistência, acho que os movimentos estão tentando criar espaços para resistir a todos esses absurdos.

E como você avalia a visibilidade para as autoras negras no país?

Eu entendo que é um movimento, não um momento. Que começou muito tempo atrás e que hoje ganha mais visibilidade. Finalmente, as pessoas reconheceram um talento como Conceição Evaristo, que demorou tanto tempo para ser reconhecida. Eu penso que é um grande feito a própria coleção Feminismos Plurais, que eu coordeno pelo selo Sueli Carneiro, tornar acessível esse tipo de leitura. Eu estava em Fortaleza há duas semanas para um evento da coleção, e foram duas mil pessoas até o lugar. Acho que estão entendendo a importância de se valorizar essas autoras. Acho que muitos estão agora entendendo que não dá para pensar o Brasil sem pensar essas questões de raça e de gênero como fundamentais. Então entendo isso como um movimento que não tem mais volta, que não é uma moda. Nós sempre estivemos aí, o problema é que nós não éramos visíveis.

Lista: Seis livros para conhecer e entender o feminismo negro

Falando na coleção Feminismos Plurais, você também publicou autores homens nela. Qual o papel dos homens negros na luta das mulheres negras?

Eu acho que é fundamental, porque, para nós, mulheres negras, não tem como separar o homem negro do debate, porque ele também é discriminado. No feminismo hegemônico, às vezes, é mais fácil a mulher branca separar o homem branco, porque ele está no topo da pirâmide social no Brasil. Nela, a "escadinha" é a seguinte: homem branco, mulher branca, homem negro, mulher negra. O homem negro está mais próximo de nós em termos de condições socioeconômicas. Nós parimos homens negros. Eles são assassinados cotidianamente. São as mães negras enterrando seus filhos. Então não tem como, para a gente, desvincular. Claro que tem a questão do machismo, que a gente denuncia sempre, mas a questão racial acaba nos unindo. Nós pensamos que o homem negro tem um papel fundamental nesse debate porque a questão racial é estruturante de todas as relações sociais.

Djamila Ribeiro: "Acho que muitos estão agora entendendo que não dá para pensar o Brasil sem pensar essas questões de raça e de gênero como fundamentais. Então entendo isso como um movimento que não tem mais volta, que não é uma moda" Foto: Marcos Alves / Agência O Globo
Djamila Ribeiro: "Acho que muitos estão agora entendendo que não dá para pensar o Brasil sem pensar essas questões de raça e de gênero como fundamentais. Então entendo isso como um movimento que não tem mais volta, que não é uma moda" Foto: Marcos Alves / Agência O Globo

Você se tornou um ícone no Brasil. E a gente sabe que nem a ascensão social nem a fama blindaM as pessoas de sofrerem racismo. Para quem ascende socialmente e frequenta espaços majoritariamente brancos, qual é a face mais difícil do racismo?

Eu acho que é importante as pessoas entenderem que, mesmo quando a gente ganha visibilidade, não deixa de ser mulher negra. E, muitas vezes, isso vai incomodar, porque saímos do lugar em que a sociedade esperava que a gente estivesse, que sempre é o lugar da subalternidade ou de ser aquela que precisa ser vista com pena. Quando a gente sai desse lugar, há uma reação. As pessoas se incomodam ao ver mulheres negras ocupando outros espaços e confiantes de ocupar esses espaços. É como se a gente sempre precisasse justificar por que estamos nesses lugares. Recebemos cobranças que pessoas brancas não recebem. Isso diz muito sobre como a sociedade brasileira é racista e não está preparada para nos ver em outros lugares. Sobretudo quando nos colocamos no lugar de produtoras de conhecimento: isso gera muitos incômodos. Como o racismo é estruturante, ele está presente em todos os espaços. Acho importante as pessoas entenderem que não é porque houve uma ascensão — eu não diria nem de classe, mas econômica, muitas vezes — que a gente está blindado disso. Muito pelo contrário: às vezes a gente acaba sendo mais alvo, justamente porque saiu da posição que era a esperada para nós.

Que recado você daria para as gerações negras mais jovens, sobretudo as mulheres negras no Brasil hoje?

Acho que é importante termos acesso às nossas histórias, daquelas que vieram antes. É isso que a gente tenta fazer com o selo Sueli Carneiro. Essas mulheres mais velhas foram invisibilizadas pela História. E nós, que temos oportunidade, de alguma maneira — e temos muito por conta da luta dessas mulheres —, precisamos entender a importância de visibilizá-las, de trazer o pensamento delas. Não perder nunca a perspectiva histórica.

Você acha que redes sociais, apesar de terem ampliado a possibilidade de se debater racismo e machismo, às vezes fazem com que o debate se disperse?

Eu gosto muito das redes. A coleção Feminismos Plurais, por exemplo, não teria toda essa visibilidade se não fosse por elas. Também eu não teria visibilidade. Acho que a gente consegue fazer uma disputa de narrativa interessante. Existem vários trabalhos importantes que foram visibilizados por conta das redes, já que a mídia hegemônica ainda ignora certas produções. Por outro lado, há esse risco do esvaziamento, que é algo sobre o qual eu venho falando sempre nas minhas palestras. As pessoas querem falar sobre tudo e não querem ter o trabalho de ler, de se informar corretamente. Então, às vezes, esvaziam conceitos ou temas que são muito importantes, nessa ânsia de falar. Temos que tomar muito cuidado. Eu pensei a coleção por isso, porque conceitos como lugar de fala e empoderamento estavam sendo esvaziados. Sobretudo, se esses conceitos dizem respeito à luta negra ou à luta feminista, as pessoas não têm o mesmo cuidado de ler e de se informar como teriam se fossem produções de homens. Precisamos nos informar, conhecer antes de falar sobre isso, para não correr o risco de esvaziar lutas e ferramentas de transformação tão importantes.

Falando nisso, o que você acha da moda do 'cancelamento' nas redes?

O cancelamento é uma mania muito imatura: "Eu discordo, vou cancelar". Nesse tipo de atitude, não há maturidade para o debate. Temos que entender que nem sempre vamos concordar. Desde que haja respeito, e não agressividade ou deslegitimação, tudo bem. O desrespeito me incomoda muito: “Ah, eu acho que lugar de fala é uma bobagem”. As pessoas, hoje em dia, acham que podem falar sobre tudo e nem sequer têm o respeito de ler, de conhecer. Para criticar, a gente precisa conhecer. Senão, a gente acaba esvaziando a reflexão crítica. E fica uma arena de guerra.