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Celina

Dos 5 autores mais vendidos da Flip, 4 são negros e 1 é indígena. Quem são eles e por que isso é tão revolucionário

Diversidade marcou a 17ª Festa Literária Internacional de Paraty
O livro de Grada Kilomba, 'Memórias de Plantação', ocupou o primeiro lugar na lista dos mais vendidos na Flip: a obra reúne episódios do racismo cotidiano em pequenas histórias Foto: Cortesia da autora
O livro de Grada Kilomba, 'Memórias de Plantação', ocupou o primeiro lugar na lista dos mais vendidos na Flip: a obra reúne episódios do racismo cotidiano em pequenas histórias Foto: Cortesia da autora

RIO - Kilomba. Adébáyò. Krenak. Epalanga. Faye. Esses são os sobrenomes dos autores mais vendidos e falados durante a 17ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Quatro deles são negros — embora todos estrangeiros — e um é indígena — o único brasileiro, do povo Krenak, atingido pela tragédia ambiental causada pela Vale em Mariana, Minas Gerais.

Saiba abaixo quem são eles, em ordem de número de vendas.

1 - Grada Kilomba

Grada Kilomba é descendente de angolanos, portugueses e são-tomenses Foto: Cortesia da autora
Grada Kilomba é descendente de angolanos, portugueses e são-tomenses Foto: Cortesia da autora

“Memórias de Plantação” (Cobogó, 648 páginas), de Grada Kilomba, foi o livro mais vendido na Livraria Travessa, durante a Flip. Lançado em 2019, reúne episódios do racismo cotidiano em pequenas histórias baseadas nas conversas entre Grada e mulheres representantes da diáspora africana.

A autora, descendente de angolanos, portugueses e são-tomenses, vive em Berlim, na Alemanha. Formada em psicologia clínica e psicanálise em Lisboa, seu livro fala sobre memória, raça, gênero e pós colonialismo e, hoje, é uma importante referência para a discussão acadêmica e cultural sobre o tema ao redor do mundo.

Pelas ruas de Paraty, nas mesas dos bares e filas das mesas, o público comentava sobre a conexão dos temas de representatividade dos povos pretos e a psicologia, o olhar psicanalítico e filosófico sobre as questões raciais e de gênero.

2 - Ayòbámi Adébáyò

Ayòbámi Adébáyò teve o segundo livro mais vendido em Paraty Foto: Divulgação
Ayòbámi Adébáyò teve o segundo livro mais vendido em Paraty Foto: Divulgação

A nigeriana Ayòbámi Adébáyò escreveu o romance "Fique comigo" (Harper Collins, 546 páginas). O segundo livro mais vendido durante o evento fala sobre os conflitos de um casal que optou por um relacionamento monogâmico em Lagos, na década de 1980. Publicado em quinze países, figurou entre os melhores do ano nas listas de "The New York Times", "The Economist" e "The Wall Street Journal".

Adébáyò é mestre em escrita criativa pela Universidade East Anglia, na Inglaterra, e foi aluna de Chimamanda Ngozi Adichie e Margaret Atwood. Na Flip, esteve ao lado da israelense Ayelet Gundar-Goshen em “Angico”, mesa sob a mediação da historiadora e escritora Lilia Schwarcz, onde falaram sobre maternidade, amor, consentimento e as percepções dos corpos das mulheres em suas obras.

3 -Ailton Krenak

Ailton Krenak é Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Foto: Guito Moreto
Ailton Krenak é Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Foto: Guito Moreto

Resistência é o tema central do terceiro livro mais vendido na Flip, de autoria do indígena Ailton Krenak, do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. “Ideias para adiar o fim do mundo” (Companhia das Letras, 373 páginas) foi lançado este ano.

No início do século XX, o povo Krenak contava com uma população de 5 mil pessoas, tendo atingido 130 integrantes em 1989. Hoje, eles passam de 400. Esse crescimento se deve ao esforço do escritor e roteirista que começou a militar na causa muito jovem. Ailton ficou nacionalmente conhecido por seu discurso, em 1987, na Assembleia Constituinte, com o rosto pintado de jenipapo — prática indígena de combate.

Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora, falou ao lado de José Celso Martinez Corrêa, sob mediação de Camila Mota, sobre o confinamento ao qual a população indígena é submetida em suas áreas de proteção.

— É preciso adiar o fim do mundo para sempre poder contar mais uma história — concluiu o autor em sua participação na mesa ‘Vaza-Barris’ na Flip.

4 - Kalaf Epalanga

O angolano Kalaf Epalanga faz, em seu livro, um retrato da imigração africana na Europa Foto: Divulgação
O angolano Kalaf Epalanga faz, em seu livro, um retrato da imigração africana na Europa Foto: Divulgação

Nascido em Angola em 1978, Kalaf Epalanga é, além de escritor, músico. Hoje, ele vive entre Lisboa e Berlim, é cronista do jornal português "Público" e da revista "GQ" Portugal e se define como um "poeta-cantor". Em seu livro "Também os brancos sabem dançar" (Todavia, 272 páginas), ele mostra sua trajetória musical — estreitamente relacionada ao kuduro e à kizomba — e faz um retrato da imigração africana na Europa a partir de sua própria história pessoal, trazendo à tona lembranças de sua cidade natal, Benguela, e da Lisboa que o recebeu aos 17 anos de idade.

Uma das questões centrais do livro é que o então jovem Epalanga vive "num limbo entre as cidadanias angolana e portuguesa desde que escapou da guerra em seu país para poder tocar a vida em Lisboa", diz a sinopse.

Ele também é autor de outras duas obras: "Estórias para meninos de cor", lançado em 2011, e "O angolano que comprou Lisboa (por metade do preço)", de 2014.

5 - Gaël Faye

O escritor francês Gaël Faye, autor de "Meu pequeno país" (Rádio Londres) Foto: Divulgação/Philippe Nyirimihigo
O escritor francês Gaël Faye, autor de "Meu pequeno país" (Rádio Londres) Foto: Divulgação/Philippe Nyirimihigo

Filho de uma ruandesa e um francês, Gaël Faye tem 37 anos, nasceu no Burundi e emigrou para a França aos 13. Somente em 2019 ele estreou na literatura, e já conquistou público e crítica. Seu primeiro livro, "Meu pequeno país" (Radio Londres, 268 páginas), lançado há poucos meses, foi vencedor do prêmio Goncourt des Lycéens — versão para estreantes do principal prêmio literário da França.

Mas o segredo do sucesso pode repousar, ao menos em parte, em algo simples: Faye escreve sobre o que o toca pessoalmente. Seu livro trata da guerra entre tutsis e hutus, que levou ao genocídio de 1994 no país natal de sua mãe, pelo ponto de vista de uma criança. O autor contou que perdeu parentes no massacre, mas disse que não pretendeu fazer um romance autobiográgico.

A obra já foi traduzida para 29 línguas, vendeu mais de 800 mil cópias e, atualmente, está sendo adaptado para o cinema.

A carreira de escritor demorou a começar para Faye. Antes disso, ele se formou e fez mestrado na área de finanças em Londres, e, em 2009, lançou seu primeiro álbum de música, com o grupo Milk Coffee and Sugar, seguindo depois carreira solo. Somente dez anos depois, viria a se debruçar sobre a literatura. E já começou muito bem.

Ranking comemorado por especialistas

A representatividade negra e indígena entre os livros mais vendidos da Flip foi muito comemorada por escritores, pesquisadores e ativistas. Ela revela, segundo a historiadora Raquel Barreto, uma demanda dos leitores por outras vozes.

— O mercado sempre disse que determinados assuntos não vendiam, mas esses resultados têm mostrado que isso não é verdadeiro. Eles mostram uma demanda dos leitores por outras vozes — afirma a pesquisadora, especialista nas autoras Angela Davis e Lélia Gonzalez.

A historiadora considera que as políticas de ações afirmativas nas universidades públicas tiveram papel importante nessa transformação.

— As cotas mudaram bastante o perfil das universidades públicas brasileiras, principalmente nos cursos de humanidades. Isso gerou uma demanda dos alunos negros e negras, dos alunos indígenas, de outra epistemologia que lhes representasse. Uma demanda por conhecimentos e saberes, no plural, produzidos por outros indivíduos — diz.

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Para a atriz e escritora Cristiane Sobral, o maior reconhecimento de autores negros em eventos como a Flip também é fruto de anos de militância e ativismo do movimento negro.

— É um trabalho que está sendo feito há anos. A visibilidade está chegando agora, mas muitos ficaram invisíveis ao longo da história. É um reconhecimento tardio — afirma.

Este não é o primeiro ano que autores negros figuram entre os mais vendidos durante a Flip, lembra Sobral. Em 2018, a filósofa Djamila Ribeiro teve seus dois livros entre os campeões de venda no evento. No ano anterior, a biografia de Lázaro Ramos ocupou o primeiro lugar da lista e a ruandesa Scholastique Mukasonga teve dois títulos entre os cinco mais vendidos.

Demanda por outras vozes (e mais brasileiros!)

Para Cristiane Sobral, no entanto, o aumento do interesse do público nessas obras ainda não se refletiu em mais abertura para autores negros brasileiros no mercado editorial.

— Nós ainda não somos contemplados pelo mercado editorial. A maioria dos autores negros publicam de forma independente ou em pequenas editoras. Há uma contradição aí, porque o público leitor tem demonstrado interesse nessas obras A gente sabe que o mercado editorial está em crise, mas quanto dessa crise não está no fato de o mercado ignorar que os próprios leitores estão sinalizando o desejo de ler outras histórias? — afirma.

Sobral e Barreto afirmam que, ao ficarem restritos ao mercado independente e a editoras menores, esses autores muitas vezes não chegam nos catálogos de grandes livrarias.

— Na produção de conhecimento negro no Brasil, as duas vozes mais potentes, Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, só tiveram seus livros autorais publicados de forma independente em 2018, pela União dos Coletivos Pan-Africanistas. É muito importante que esse esforço tenha vindo da própria militância, mas é sintomático que o mercado tenha ignorado essas produções — diz Barreto.

Ambas também apontam que, entre os cinco autores mais vendidos na Flip deste ano, apenas um é brasileiro: o indígena Ailton Krenak.

— A gente celebra esse resultado, sem dúvida, mas ainda está na luta para que haja esse reconhecimento da literatura nacional — afirma Sobral.