Celina

'É para que o quarto de empregada deixe de ser a senzala moderna', diz Preta-Rara sobre livro em que reúne relatos de trabalhadoras domésticas

Sucesso nas redes, rapper e historiadora foi a última mulher de sua família a trabalhar como doméstica e a primeira a chegar à universidade
Preta-Rara: "Espero que as pessoas se sintam parte do livro, desde a trabalhadora doméstica até a patroa" Foto: Arte de José Lopes sobre foto divulgação
Preta-Rara: "Espero que as pessoas se sintam parte do livro, desde a trabalhadora doméstica até a patroa" Foto: Arte de José Lopes sobre foto divulgação

Há três anos, ela quebrou a internet ao lançar uma página de Facebook em que publicava situações vividas quando era empregada doméstica, mostrando o tratamento muitas vezes preconceituoso e cruel dispensado a essa categoria. Logo começou a receber (e a postar) relatos de outras mulheres, e os depoimentos foram parar até na mídia internacional. Hoje, 160 mil curtidas depois, a rapper e ativista Preta-Rara lança o livro “Eu, empregada doméstica” (ed. Letramento), que pega emprestado o nome da página e traz relatos inéditos da própria autora, sua mãe, sua avó e leitoras. Entre as histórias, a chocante descoberta de que sua mãe tinha sido escravizada quando criança.

Filha mais velha entre quatro irmãos, Joyce Fernandes (seu verdadeiro nome), 34 anos, começou a trabalhar como empregada doméstica aos 18, depois de terminar o ensino médio e passar meses entregando currículo sem conseguir nada. Ao saber que a filha seguiria pelo mesmo caminho que ela, sua mãe, traumatizada por uma trajetória dolorosa exercendo essa função, chorou. Sete anos depois de arrumar o primeiro trabalho na área, a virada: Joyce passou no tão sonhado vestibular de História. Seis meses depois, conseguiria um estágio na faculdade e sua vida mudaria.

Rapper desde 2005, ela integrou a banda Tarja-Preta de 2006 a 2013 e, em 2015, lançou seu primeiro álbum solo, “#Audácia”. Hoje, se apresenta país afora como artista e palestrante, além de ter se tornado influenciadora digital (seu perfil no Instagram tem mais de 90 mil seguidores). Agora, se prepara para rodar o país com o livro, que lança dia 17 de outubro na Festa Literária das Periferias (FLUP), no Museu de Arte do Rio.

CELINA: Como surgiu a ideia de, a partir da página, transformar os relatos em livro?

PRETA-RARA: A página surgiu em 2016 e eu percebi a qualidade dos relatos. Sou historiadora e sempre quis escrever um livro sobre parte da minha trajetória, a trajetória da minha mãe, enfim. Recebendo esses relatos, eu pensei: “Nossa, isso não pode ficar somente na internet, tem que ser utilizado através da literatura.” Eu já queria ter lançado o livro em 2016 — fiz um financiamento coletivo, que atingiu um valor legal, mas não o valor total. Foi uma dificuldade achar a editora certa, de acordo com o que eu queria, até que este ano recebi o convite da Letramento para publicar. O livro traz essa narrativa em primeira pessoa, como na página “Eu, empregada doméstica”. São relatos inéditos que selecionei nesses dois anos, e que tambem falam sobre o quanto o trabalho doméstico é hereditário para as mulheres pretas. Minha avó foi empregada doméstica e minha mãe também. O livro começa contando a história da minha mãe, a da minha avó e depois a minha. Quem escreveu a orelha foi a Benedita da Silva, que é deputada federal e foi empregada doméstica também, e quem escreve o prefácio é a Taina Aparecida Silva Santos, que é uma historiadora, mestranda da Unicamp, que pesquisa escravidão doméstica e trabalho doméstico.

Como foi o processo de revisitar os seus momentos difíceis, da sua família e de outras pessoas?

Foi um processo bem solitário, de ansiedade e de tristeza, um misto de sentimentos. Porque ali, separando os relatos, coisas que eu vivenciei quando era empregada doméstica e outras que eu não vivenciei, mas me coloquei no lugar de empatia, sentindo tudo aquilo que estava lendo. Foi um processo bem longo e demorado, mas que é necessário, porque o Brasil ainda tem o ranço da escravidão e do ato de servir. Essas trabalhadoras domésticas não chegam nas residências apenas para limpar, lavar e passar, o que já é muita coisa. Diversas vezes, quando eu era empregada doméstica, estava limpando a casa da minha patroa e ela me chamava para pedir um copo d’água. Tem ainda esse ranço colonial. É importante ter essas histórias (expostas), para que realmente a gente possa gerar incômodo.

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Tem alguma história do livro que tenha acontecido com os outros, ou com sua mãe ou sua avó, que você possa contar?

Sim, tem vários relatos de trabalhadoras que são proibidas de usar o banheiro ou de almoçar. Até hoje a minha avó não percebe que era uma violência o que a patroa falava e fazia com ela, o fato de que não a deixava almoçar. Minha avó ainda se coloca no lugar de: “Não, o alimento que ela compra é para ela.” Mas essa patroa também não pagava vale-alimentação. E a história da minha mãe é que ela foi escrava doméstica em pleno século XXI. Minha mãe morava em Uberaba (MG), e acho que quando ela tinha 9 anos, não me recordo a idade certa, uma moça chegou na casa da minha bisavó e falou que precisava de uma menina para brincar com os filhos dela. Disse que morava a não sei quantos quarteirões. Minha avó confiou nela, que tirou minha mãe de Uberaba e a levou para Campinas. Não dá nem para se colocar no lugar de trabalho doméstico, porque não era. No livro, minha mãe conta que dormia ao lado de uma casinha de cachorro e que comia comida azeda. E tem o relato de outra trabalhadora doméstica, de 83 anos, que foi impedida de usar o elevador social quando o de serviço estava quebrado. Ela subiu até o oitavo andar de escada.

Sabia dessa história da sua mãe antes do livro?

Não, eu não sabia. Eu lembro de, na adolescência, ela mencionar algo muito de longe. Mas não dessa forma, com os detalhes.

Quanto tempo ela ficou nessa situação?

Ela fala que foi criança e só saiu dessa porque os patrões foram viajar e a deixaram trancada no quintal, com comida no chão para não sei quanto dias. Aí ela menstruou, mas não explicaram que isso aconteceria. Ela achou que estava morrendo, começou a gritar e um vizinho pulou o muro e a chamou de ladra — esse mesmo vizinho tinha acesso à casa dessas pessoas, só que, quando eles recebiam visita, deixavam minha mãe trancada no quarto. Ela fala que foi criança e saiu de lá uma mocinha, porque menstruou. São histórias também de assédio sexual, de uma garota de 19 anos que tranca todos os cômodos quando vai fazer a limpeza porque o patrão quer molestá-la.

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Você tem irmãos?

Eu tenho duas irmãs e um irmão adotivo de 12 anos. Da minha família, fui a última a ser trabalhadora doméstica. Sou a filha e a neta mais velha. Ninguém abaixo de mim está nessa condição de trabalho doméstico.

Foi a primeira a entrar na universidade?

Sim, na minha família, sim.

Acha que isso impactou no fato das suas irmãs não seguirem esse caminho?

Ah, total. Da mesma forma que minha mãe se entristeceu quando eu não consegui arrumar emprego e fui trabalhar como doméstica. Ela já sabia das condições que eu encontraria. Fiz de tudo também para que as minhas irmãs não ocupassem esse lugar. Elas não ocuparam. Porque é isso, né? É um trabalho como outro qualquer, porém não é valorizado — até pelo Estado, que só reconheceu o trabalho doméstico com leis específicas a partir de 2015, com a PEC das domésticas. E aí vale ressaltar que o atual presidente foi um dos únicos que não assinaram a PEC das domésticas.

Como foi a virada na sua vida?

Quando era empregada doméstica, eu já cantava rap e já tinha o sonho de ser professora de História, desde o comecinho do ensino médio. Em 2009, eu ainda era doméstica, e fiz o vestibular para uma universidade privada, a Católica de Santos, e passei. Uns amigos me ajudaram, porque eu teria que pagar a primeira mensalidade mais a matrícula. Assim, fui me virando, fazendo bem mais faxina do que eu já fazia para poder arcar com o valor da mensalidade e tudo mais. No segundo semestre, consegui um estágio na universidade que já me garantia pagar a faculdade e ainda sobrava um dinheiro. No finalzinho daquele ano, deixei de ser empregada doméstica.

Quando teve vontade de falar sobre sua trajetória?

A sacação de expor já vinha também da época da escola. Eu desabafava através do papel e da caneta, com poesia, música e tudo mais. Quando comecei a ter acesso à internet, passei a publicar o que até então eu escrevia num papel só para mim. Fazia isso num blog, que tinha alguns acessos, mas nem tantos. Quando fui para as redes sociais, outras pessoas, fora de Santos, começaram a ler o que eu falava, e sempre diziam: "Nossa, eu me indentifico muito, é isso que penso!". Fui expondo a minha opinião como uma maneira de desabafar sobre o que eu sentia, as coisas com as quais eu não concordava.

E daí para o rap como foi?

Comecei no rap em 2005, já partindo desse ponto de desabafar. Digo que o rap é uma revista falada da periferia. A gente relata e reivindica atráves da música. Eu via que tinha ritmo, e meu pai, que era colecionador de discos, falava: “Olha, você escreve um poemas rimados. Por que não canta rap?”. Ele foi me apresentando a alguns artistas, e eu comecei a cantar nas festas juninas da quebrada e nas festinhas de escola.

Era uma época diferente do rap. Sendo mulher, foi difícil?

Foi bem difícil por conta do machismo. Ele não está só no hip hop, está no mundo, mas foi bem complicado. Só que para mim foi menos pior do que para as meninas que começaram na década de 80 ou na de 90. Eu peguei as coisas meio que já no fluxo. Mas, lembro que no começo de carreira eu não cantava de roupa curta, como canto hoje, porque os caras só prestavam atenção no meu corpo, e não nas minhas ideias. Ainda existe machismo, mas a gente já chega chegando. É outra postura.

Você pode ser chamada de influenciadora. Quando teve noção do seu impacto na vida das pessoas?

Na realidade, eu comecei a ter noção desse impacto fora da internet. Faço shows no Brasil inteiro e me chamam para palestras. As pessoas vinham muito emocionadas, falando: “Nossa, eu te sigo, eu vi você fazendo isso, li seus textos,vi sua foto de biquíni  e me deu coragem de colocar também. Pensei que a minha mensagem estava chegando. As pessoas ficavam megaemocionadas, porque parecia que elas nunca iam me ver na vida. Hoje, eu me coloco de uma forma em que elas humanizam o meu corpo. Não estou 24 horas reivindicando coisas, eu me divirto também.

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Existem diversas cobranças. Tem gente que deposita a mudança do mundo nas costas de apenas uma pessoa. Como se eu fosse dar conta de todas as mazelas, de todos os problemas, e também como se eu tivesse que me posicionar sobre tudo. Teve uma cobrança gigantesca para que eu escrevesse sobre o segurança que bateu no menino negro no mercado. Eu me indentifiquei com o texto da Tia Má e com a postagem do Lázaro Ramos, então não tinha por que escrever. Eu me vejo no texto de outras pessoas também, mas na internet existe essa cobrança. Aí, eu puxo o freio e deixo as pessoas cientes.

O que espera com o seu livro?

Eu espero que esse assunto venha à tona novamente, da mesma forma que foi uma explosão em 2016. Sempre lembrando que eu não sou precursora de nada, que vieram mulheres antes de mim, como a Laudelina de Campos Melo, que foi a criadora do primeiro sindicato das trabalhadoras domésticas. Espero que as pessoas se sintam parte do livro, desde a trabalhadora doméstica até a patroa. Que consigam vivenciar cada relato tomando a dor para si e que tentem mudar isso. Não adianta falar que leu o livro e que trata bem a trabalhadora, mas depois atrasa o pagamento, não a registra ou fica pedindo para ela fazer coisas além do pré-estabelecido. É para mexer com essa estrutura colonial no Brasil e para que a gente consiga realmente que o quartinho da empregada deixe de ser a senzala moderna.

Recebe mensagens agressivas por conta da página?

Sim. Diversas. Já aconteceu de patrões reconhecerem o relato e falarem para eu apagar, senão iam me processar. Aí eu disse: “Mas vou apagar por quê?”. Algumas trabalhadoras domésticas começaram a me mandar mensagens falando que tinham perdido o emprego porque o patrão leu o relato e tudo mais. Então, desde o início, os relatos são de forma anônima. É igual ao livro. Mas já recebi ameaça e já tentaram derrubar meu perfil.

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Alguma dessas situações marcou você?

Várias. Uma foi quando eu trabalhava na casa de um senhor. Eu já tinha trabalhado para a filha dele, e ela era maravilhosa comigo, me incentivou a estudar. Ela se mudou e perguntou se eu podia trabalhar na casa dos pais dela: a mãe era cega e o pai, idoso. Ele pediu para eu comprar um leite para o café da tarde. Na minha casa, a gente sempre comprava as coisas mais baratas, não prestava atenção na marca. Eu repeti isso lá e comprei o leite mais barato. E aí, quando eu cheguei, ele surtou, falou para eu levar para a minha favela, porque, se eu tomava aquele leite no muquifo onde eu morava, era problema meu, mas que ele jamais tomaria aquele leite que pobre tomava. Eu lembro que foi a primeira vez que consegui reagir no serviço. Abri o leite, virei tudo na pia e joguei a caixa na cara dele, falando: “Se não serve para o senhor, não serve para mim.” Saí pegando as minhas coisas, chorando, e não voltei nem para receber o dinheiro do mês que eu tinha a ganhar. Eu nunca mais o vi, nunca mais a vi, nunca mais quis ter notícias. Nem sei se está vivo.

Já teve história de gente com quem você trabalhou que vestiu a carapuça do relato?

Sim (risos). Foi a filha de uma mulher que reconheceu o primeiro relato, logo no início da página no Facebook. Saiu na BBC de Londres e em diversos lugares do mundo. Fui ao programa da Fátima Bernardes, e lá também mostraram esse relato. A filha reconheceu, porque eu assinei com o primeiro nome dela, me chamou de ingrata e disse: “Mas é normal minha mãe não querer que você almoçasse lá. Se você trabalhasse numa loja, você ia ter que almoçar na loja também?” Eu falei: “Não, provavelmente a loja me daria vale-alimentação. Sua mãe não me dava, eu era cozinheira e não podia comer nem o que sobrava da panela.” E aí ela falou: “Eu acho melhor você apagar, senão a gente vai te processar.” Mas é aquilo: não tinha como processar, porque eu não coloquei o sobrenome. Só eu e minha mãe sabemos quem ela é.