Exclusivo para Assinantes
Celina

'Ela é clarinha, nem parece sua filha. Que sorte a dela': jornalista conta os episódios de racismo vividos pelas mães e crianças negras

Em artigo, mãe conta como é criar uma criança negra em uma sociedade racista, e alerta: 'É obrigação de toda mãe que tenha o mínimo de consciência social reconhecer a desigualdade racial e lutar por um futuro diferente'
Além dos cuidados com alimentação, moradia, saúde e estudo, as mães de crianças negras precisam tornar o filho forte suficiente para sobreviver a uma sociedade racista Foto: Arte de André Mello
Além dos cuidados com alimentação, moradia, saúde e estudo, as mães de crianças negras precisam tornar o filho forte suficiente para sobreviver a uma sociedade racista Foto: Arte de André Mello

Eu sempre quis ser mãe. Sempre. Os anos passaram, a estabilidade econômica-financeira-emocional não veio, e o tal momento certo não chegava. Mas, aos 34 anos, ela chegou: de surpresa, sem esperar, minha filha chegou. Há cinco anos, me tornei uma mãe de menina.

Quando um feto é fruto de um casal interracial, além do gênero, outra especulação presente nas conversas é sobre a cor da criança. “Será que vai te puxar? Ou vai ser branca?", "Vai conseguir clarear a família, hein!”, frases que ouvi durante toda a gravidez, em tom de suposta brincadeira. Pós-gestação, o padrão de pergunta mudou: "Ela é tua filha? Nem parece, é clarinha", "Que sorte a dela".

VÍDEO: E se a mamãe fosse uma super-heroína? Crianças contam qual o super poder de suas mães

Esta última é tão arraigada de racismo que chega a machucar. Porque me faz lembrar de episódios da infância que parecem ter acontecido ontem. De classe média no subúrbio carioca, sempre fui uma das poucas negras no colégio particular. No balé, o primeiro gosto amargo do racismo: as coleguinhas brancas não me dirigiam a palavra. Na piscina de um clube, a agressão de um grupo de meninos ecoa até hoje, mais de 30 anos depois, na minha cabeça: "olha a neguinha! Ela não sabe nadar". Na televisão, no cinema, nas propagandas, não tinha ninguém como eu. Não compartilhei o mesmo sonho de ser paquita da Xuxa. Nunca me vi representada ali.

Provavelmente, minha pequena não irá passar por traumas assim. No caso dela, o impacto será por ser filha de uma negra. Meu trabalho diário é criar uma cidadã que saiba que a vida pode ser mais difícil dependendo da sua tonalidade de pele.

SIGA CELINA NO INSTAGRAM

Se você toca no assunto apenas na data supostamente comemorativa (13 de maio) no trabalhinho da escola, você é privilegiado, sim. Uma mãe negra — independente da classe social — não tem essa opção. Porque ela sabe que a cor do filho pode ser sentença de morte, apenas por correr na rua ou usar um guarda-chuva. Porque sabe que vão olhar com desconfiança quando ele entrar no ônibus e irão atravessar a rua quando vier em sentido contrário. Sabe que vão duvidar de sua capacidade intelectual.

O assunto é inerente ao seu dia a dia. Além das preocupações básicas — alimentação, moradia, saúde, estudo —, ela tem o peso de tornar o filho forte suficiente para sobreviver a esta sociedade. Ela tem que fortalecer sua autoestima, criar mecanismos de defesa, lutar contra uma supremacia branca na educação e professores despreparados, ensaiar frases prontas para reagir a quem critica o nariz e a como agir numa dura policial. É doloroso, é cansativo.

LEIA TAMBÉM: Por que as mães sofrem tanto com a culpa? Cinco mulheres contam como lidam com esse sentimento

Você acha que isso já "não cola muito"? Então saiba que, no mesmo subúrbio carioca, nos dias de hoje, crianças aprendem na escola e chegam em casa falando que o lápis de cor bege é "cor da pele". Se não fosse pelo trabalho de mães negras atentas, a perpetuação da cor branca como algo normatizado iria ser transmitida para outra geração. Saiba que crianças novinhas de 3, 4, 5 anos, caçoam do cabelo crespo do colega negro, destruindo a autoestima de um indíviduo que acabou de nascer. E lá está a mãe atenta e leoa, que bota a discussão na mesa e não deixa barato. Para alguns, é barraqueira. Para nós, é questão de sobrevivência.

Se você romantiza a maternidade, você entendeu tudo errado. É obrigação de toda mãe que tenha o mínimo de consciência social reconhecer a desigualdade racial e lutar por um futuro diferente. Não sabe como? Leve seu filho para assistir a filmes e a peças com protagonistas negros ("Bituca" e "Pequeno príncipe preto", por exemplo). Leia livros com a temática, pesquise, se importe. E, principalmente, dê exemplo. Quantos amigos negros você tem? Quantos deles frequentam a sua casa? O racismo existe sim e — ao contrário de que alguns dizem por aí — não é coisa rara no Brasil.

* Ana Carolina Diniz é jornalista