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Em palestra a multidão em SP, Angela Davis opta por não dizer nome de Bolsonaro: 'Eu sei que vocês o chamam de coiso'

Conferência da filósofa americana lotou Auditório Ibirapuera: 'Eu amo o Brasil, mas odeio que o capitalismo e seus apoiadores no governo brasileiro privilegiam o lucro em detrimento das pessoas', disse
A filósofa Angela Davis, um dos principais nomes do feminismo negro Foto: Arte sobre foto de Boris Roessler/picture-alliance/dpa
A filósofa Angela Davis, um dos principais nomes do feminismo negro Foto: Arte sobre foto de Boris Roessler/picture-alliance/dpa

SÃO PAULO – A filósofa americana Angela Davis arrastou uma multidão para os gramados do Parque Ibirapuera na noite fria e de céu carregado de segunda-feira (21). Na plateia externa do Auditório Ibirapuera – Oscar Niemeyer, onde cabem cerca de 15 mil pessoas, jovens se apinhavam, sentados em cangas ou jornais, para assistir à conferência da ex-Pantera Negra, que veio ao Brasil a convite da editora Boitempo e da Fundação Rosa Luxembugo para lançar “Uma autobiografia”, livro no qual ela recorda as lutas sociais que sacudiram os Estados Unidos nos anos 1960 e 1970.

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Marcada para as 19h, a conferência começou com meia hora de atraso. Apesar do frio, Angela subiu ao palco em um vestido de mangas curtas e acompanhada da historiadora Raquel Barreto, da escritora Bianca Santana e de Christiane Gomes, da Fundação Rosa Luxemburgo, que fizeram comentários e perguntas após a conferência, e pela tradutora Raquel Souza.

Angela começou agradecendo o público e mencionando as lutas indígenas pelo meio ambiente:

— Obrigada pela acolhida tão entusiasmada. Obrigada por trabalharem pelo futuro do Brasil, da região e do mundo. Obrigada a todos os que se identificam com movimentos contra o racismo, o capitalismo e o heteropatriarcado. A todos que reconhecem que, se não nos unirmos a nossos irmãos e irmãs indígenas na luta urgente para salvar o planeta, todos os nossos movimentos por justiça e liberdade terão sido em vão.

Amazônia e óleo no Nordeste são lembrados

Em sua fala de quase uma hora, Angela lembrou várias vezes o nome de Marielle Franco, vereadora carioca assassinada no ano passado.

— Nós somos o legado de Marielle Franco e devemos a ela continuar a luta pela justiça racial, em defesa das comunidades LGBTI+, dos sem-terra, dos sem-teto, pela liberdade de Lula, pela democracia e pelo socialismo.

Ao mencionar o nome do ex-presidente, preso em Curitiba desde abril do ano passado, Angela foi interrompida por gritos de “Lula livre” vindos do público. Ela se juntou ao público e gritou “Lula livre” e, depois, “Marielle presente".

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Angela lamentou as queimadas na Amazônia, “que terão efeitos devastadores para o planeta como um todo”, e a contaminação das praias nordestinas por vazamento de petróleo.

— É hora de interromper os incêndios e os vazamentos de petróleo e prestar atenção nos problemas sociais que afetam esse país maravilhoso que tem a maior população negra fora da África — afirmou. — Eu amo o Brasil, mas odeio que o capitalismo e seus apoiadores no governo brasileiro privilegiam o lucro em detrimento das pessoas.

Críticas a Bolsonaro e a Trump

A filósofa explicou que não pronunciaria os nomes dos presidentes do Brasil, Jair Bolsonaro, e dos Estados Unidos, Donald Trump, porque "nomear é reconhecer atribuir poder". Ela preferiu chamá-los de “ocupantes”, como fazem alguns deputados americanos em referência à cadeira presidencial.

— Eu sei que alguns de vocês chamam o homem que foi eleito presidente do Brasil como “o coiso” — disse.

Ela concedeu a palestra em inglês, mas falou o termo em português, arrancando gargalhadas do público.

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Durante a maior parte de sua fala — de quase uma hora —, Angela abordou a violência racista das polícias, o encarceramento em massa da população negra e a guerra às drogas.

Cena do documentário "Libertem Angela Davis" Foto: Reprodução
Cena do documentário "Libertem Angela Davis" Foto: Reprodução

'O nome de Ágatha tem que reverberar pelo mundo'

Ela lembrou a menina Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos, morta no mês passado com um tiro de fuzil nas costas.

— O nome de Ágatha tem que reverberar pelo mundo: uma linda menina negra tem que dar sua vida por que a polícia brasileira atira antes de perguntar — disse Angela. — O homem que ocupa o cargo de presidente do Brasil diz que a polícia tem que atirar para matar. Violência policial produz aumento da violência de gangues, da violência nas comunidades e até na violência nos espaços íntimos. O Brasil deve aprender com os EUA: a guerra às drogas é um pretexto para matar jovens negros e acelerou o processo de encarceramento em massa. Nós não queremos reforma carcerária. Nós queremos abolição carcerária.

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Ela complementou, explicando como funciona a lógica da violência racista:

— É preciso tomar consciência da lógica do racismo. Se algumas pessoas negras podem ser acusadas de tráfico, todos os negros, especialmente se morarem em determinados bairros, podem ser considerados suspeitos. Este é o pilar fundamental do racismo: se não pode atirar em um, atire em outro; se não pode prender um, prenda outro.

Nos anos 1970, a americana chamou a atenção do mundo como símbolo dos Panteras Negras, movimento que defendia a resistência armada nos bairros negros contra a perseguição policial Foto: Reprodução
Nos anos 1970, a americana chamou a atenção do mundo como símbolo dos Panteras Negras, movimento que defendia a resistência armada nos bairros negros contra a perseguição policial Foto: Reprodução

Angela mencionou encontros com várias feministas, intelectuais e ativistas negras brasileiras, como a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), a antropóloga Lélia Gonzalez (1935-1994), a escritora Conceição Evaristo, a filósofa Sueli Carneiro, a ativista sem-teto Preta Ferreira e a transexual negra Erica Malunguinho, deputada estadual paulista pelo PSOL.

Depois de pedir solidariedade aos povos palestino e curdo, Angela encerrou sua fala desejando “muito sucesso em suas lutas”. Os aplausos vieram acompanhados do coro “ele não”.

Elogios a Margareth Menezes, Clara Nunes e Elza Soares

Na conversa que se seguiu à palestra, Angela falou um pouco mais sobre as lutas sociais, elogiou a música brasileira lembrou que escreveu sua “Autobiografia” a convite da escritora Toni Morrison, que trabalhava como editora nos anos 1970. Falecida em agosto, Toni foi a única escritora negra a receber o Nobel de Literatura.

Respondendo a uma pergunta de Christiane Gomes, da Fundação Rosa Luxemburgo, Angela disse ser essencial pensar em novas noções de igualdade.

— Queremos ser iguais a quem? Aos homens brancos? Eu não quero ser igual a homens brancos e ricos. Não quero o direito de explorar e excluir. Quando falamos em igualdade e justiça, devemos olhar para quem dedicou sua vida à luta pela liberdade.

Ao comentar suas viagens ao Brasil, Angela elogiou a política de cotas adotada por universidades públicas e as “vozes fortes de cantoras negras”, como Margareth Menezes, Clara Nunes e Elza Soares.

— Quando ouço Margareth Menezes, tenho uma experiência coletiva do que é a alegria. Os artistas têm um papel fundamental nas lutas pela liberdade. O Brasil tem tradição musical das mais vibrantes e pode liderar o mundo nos ensinando a ter experiências coletivas de alegria — afirmou ela. — Quando falamos da História do povo negro, sempre nos lembramos da violência inenarrável da escravidão, mas não devemos nos esquecer de que nas lutas pela sobrevivência e pela superação da violência sempre estiveram presentes a criação de alegria, de beleza e de prazer. Estes são os presentes do povo negro para o mundo.