Celina

Filme sobre ativista trans brasileira concorre à Palma Queer no Festival de Cannes

Documentário retrata dia a dia de Indianara Siqueira, em meio ao cenário político do país e às dificuldades da Casa Nem, abrigo carioca para transexuais em situação de vulnerabilidade
Indianara tem 30 anos de ativismo pelos direitos das pessoas LGBTI Foto: Arte de Nina Millen sofre foto de Divulgação de Bruno Ryfer
Indianara tem 30 anos de ativismo pelos direitos das pessoas LGBTI Foto: Arte de Nina Millen sofre foto de Divulgação de Bruno Ryfer

RIO - Às vezes, ela para, segura o olhar em algum ponto que parece que só ela conhece e começa a "morder" a parte interna da bochecha, como quem carrega uma angústia — por ela própria e pela legião de mulheres trans que a seguem. Essa cena se repete algumas vezes ao longo do documentário "Indianara", que será exibido nos próximos dias 19 e 22 no Festival de Cannes, na França, em várias sessões para o público. É a única produção brasileira incluída na mostra Acid (Association du Cinéma Indépendant pour sa Diffusion), não competitiva. Também disputa a Palma Queer — premiação dedicada a filmes com temática LGBTI+.

O longa-metragem mostra, desde 2016, o dia a dia da ativista transexual Indianara Siqueira, fundadora da Casa Nem, abrigo carioca para mulheres transgênero em situação de vulnerabilidade.

Já perto dos 50 anos de idade — ela completa 48 no próximo dia 18 —, Indianara tem uma história de três decadas de ativismo: pelos direitos de transexuais, mulheres e prostitutas, pela prevenção de HIV/Aids e por acesso à educação.

Ela ainda não assistiu ao filme. E nao o fará em Cannes:

— Eu estou proibida de entrar no território francês. Fui condenada lá e fiquei presa de janeiro de 2007 até agosto de 2009. Desde então, nao posso mais voltar — conta ela.

Na França, onde atuava na época como prostituta, Indianara sublocava apartamentos para outras transexuais, prática que já fazia há anos no Brasil. Mas, lá, foi acusada de proxenetismo, crime considerado grave. Foi condenada a seis anos de prisão. Depois de recurso, a pena caiu para cinco. Após metade do tempo cumprido, ela ganhou direito à condicional. Mas, supreendentemente, esse período encarcerada é lembrado por ela como algo positivo.

— Costumo dizer que, na verdade, a minha prisão foi minha liberdade. Foi onde eu me sentia livre, à vontade. Foi o único lugar onde eu me senti realmente em paz e em segurança, porque eu estava livre dessa sociedade aqui fora — lembra ela. —  E lá eu só tinha que me preocupar comigo mesma, então eu tinha tempo para ler, para refletir.

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Quando ela volta da França para o Brasil, o ativismo dela passa por uma mudança:

— Minha prisão foi esse divisor de águas para mim. Ela transformou minha vida, tudo o que eu não dava valor do lado de fora eu passei a dar. E muita coisa do que eu valorizava do lado de fora acabou perdendo total valor na prisão. A minha maneira de fazer ativismo mudou. Foi ressignificada. Talvez eu tenha me tornado mais radical nesse sentido. Mais solidária, com maior sororidade.

Indianara entre os diretores do documentário, a francesa Aude Chevalier-Beaumel e o brasileiro Marcelo Barbosa Foto: Divulgação/BRUNO RYFER
Indianara entre os diretores do documentário, a francesa Aude Chevalier-Beaumel e o brasileiro Marcelo Barbosa Foto: Divulgação/BRUNO RYFER

É esse ativismo que se vê no longa "Indianara", que passeia pelos problemas de sobrevivência da Casa Nem, pelos medos de suas moradoras, pelos conflitos políticos do Brasil, pelas mobilizações populares na Cinelândia, pela Marcha das Vadias, pelas últimas eleições.

Exibição também no Canal Futura

Dirigido pela francesa Aude Chevalier-Beaumel e pelo brasileiro Marcelo Barbosa, o documentário vem em duas versões: o longa "Indianara", que será exibido em Cannes, e um média-metragem batizado de "Nem", que estreia no Canal Futura em 31 de maio, às 22h30.

O projeto foi selecionado no 9° Pitching de Documentários do Futura, que elege ideias de documentários que tenham relação com direitos humanos e proponham um olhar mais ousado sobre o tema.

(A Indianara) É uma personagem que carrega todas as contradições do Brasil de agora — afirma o diretor, Marcelo Barbosa. — O filme não traz respostas, mas ele traz umas boas perguntas.

Para a própria personagem, o timing do documentário não poderia ser melhor.

— O filme vem num momento em que o Brasil passa por uma turbulência muito grande, né? Um governo de extrema direita, contra direitos de minorias, contra pautas identitárias. E eu acredito que é por meio da educação que a gente consegue mudar a sociedade, então me preocupa esse ataque à educação (os cortes anunciados pelo governo nas verbas de instituições de ensino federais) . O filme vem exatamente nesse momento. Talvez possa ser encarado como uma espécie de resposta a isso — diz Indianara.

O filme, em suas duas versões, foi realizado pela produtora Santa Luz e tem apoio da Fundação Roberto Marinho.s,