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Celina

'Há pessoas que se acham importantes demais para arrumar a própria cama', diz autora de livro sobre trajetória de trabalhadoras domésticas

Com 500 mil seguidores nas redes sociais, Verônica Oliveira lança primeiro livro em que conta sua trajetória como mãe solo, mulher negra e faxineira. Ela aponta a necessidade de se ouvir e apoiar as trabalhadoras domésticas
Veronica Oliveira é a criadora da página "Faxina Boa", que reúne quase 500 mil seguidores nas redes sociais Foto: Divulgação
Veronica Oliveira é a criadora da página "Faxina Boa", que reúne quase 500 mil seguidores nas redes sociais Foto: Divulgação

RIO. “Inspiradora digital” é como se autodenomina Veronica Oliveira, criadora da página "Faxina Boa", que, no Twitter, Instagram e Facebook soma quase 500 mil seguidores. Nascido em 2016, o perfil surgiu como uma forma de divulgar seu trabalho e separar as vidas pessoal e profissional no ambiente virtual. Mas, com o tempo, ela percebeu o potencial da página e se dedicou à criação de conteúdos sobre as questões de interesse das trabalhadoras domésticas brasileiras. O sucesso nas redes levou à publicação do primeiro livro de Verônica, "Minha Vida Passada a Limpo", em que ela escreve sobre questões de gênero, raça e classe ao compartilhar sua trajetória como mãe solo, negra e faxineira.

Verônica Oliveira vai estar hoje na Bienal Virtual do Livro de São Paulo , a partir das 15h. Ela participa da mesa "Como alcançar os seus objetivos", ao lado de Nath Finanças e Fernando Rocha. A conversa será mediada por Fernando Martins.

Em um país que emprega quase 6 milhões de mulheres em serviços domésticos, segundo dados do IBGE de 2019, é preciso falar sobre os direitos dessas mulheres e sobre episódios de abuso e assédio de que muitas são vítimas em seus locais de trabalho . O tema é abordado no livro de Oliveira, que se viu obrigada a recusar diversas propostas de emprego para fugir dessas situações.

— É preciso dar visibilidade às demandas da nossa profissão. O assédio é uma questão comum entre as mulheres, mas, para as empregadas domésticas, ele também está ligado a questões de raça e classe. É a herança de uma sociedade escravocrata .

Em entrevista à CELINA, por telefone, Verônica Oliveira discute seu livro e seu perfil nas redes sociais, os direitos das trabalhadoras domésticas e a necessidade de ouvir e apoiar essas mulheres no combate às violências.

CELINA: Por que você decidiu escrever um livro sobre suas experiências?

Verônica Oliveira : Muitas pessoas já me falavam para escrever um livro, mas eu nunca levei isso em frente. Escrevia alguns textos e guardava. Depois, veio a proposta da editora e eu resolvi topar. Consegui encontrar uma forma de organizar tudo o que eu já tinha escrito e dar uma finalização. A partir das minhas vivências, da adolescência até a vida adulta, deixo histórias que, além da questão autobiográfica, façam as pessoas pensarem em outros aspectos da vida. Falo sobre assuntos como o mercado de trabalho, a classe média brasileira, preconceito e muitas outras coisas. Foi também uma forma de passar o tempo durante a quarentena. Enquanto escrevia, pensei que a minha história pudesse servir de incentivo para outras mulheres.

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Por que é tão difícil trabalhadoras domésticas denunciarem os casos de assédio que sofrem nos locais de trabalho?

É super complicado porque é uma situação na qual não temos muitos meios de provar os casos que possam acontecer. A outra pessoa está no ambiente dela, na casa dela. Geralmente, nesses momentos, a funcionária está sozinha com esse homem, então é uma situação muito difícil. No entanto, não podemos deixar que casos de assédio aconteçam e não denunciar. Precisamos abordar o tema e conscientizar as pessoas para que falem mais, e que os homens percebam a inadequação do comportamento deles nesses casos, que é inadmissível.

E quais as consequências disso para essas mulheres e sua relação com o trabalho?

Ser vítima de ma forma de assédio mexe com seu psicológico de uma forma absurda. Eu, por exemplo, optei por não atender homens por medo do que poderia acontecer comigo em determinados ambientes. Mas muitas pessoas não têm essa possibilidade, pois precisam da renda ou trabalham para uma empresa privada e não têm a opção de deixar de atender certos clientes. Isso é muito exaustivo.

De que formas a criação da página “Faxina Boa” te ajuda a lidar com isso?

No início, eu achava que por ser uma pessoa conhecida nas redes sociais isso iria me blindar de certas coisas e me proteger de sofrer o que outras pessoas sofriam. Isso nunca aconteceu porque muitas pessoas continuaram agindo de forma preconceituosa comigo. Mas, quando entendi o potencial das redes, aproveitei da melhor forma possível. Hoje, eu participo de muitas palestras para contar das minhas experiências. É incrível poder falar com pessoas tão diferentes e, quem sabe, poder ajudar a mudar a cabeça delas sobre certos assuntos. Às vezes, eu tenho a impressão de que estou falando sozinha, mas quando vejo a interação das pessoas nas minhas redes percebo que tem muita gente me ouvindo. Espero também que isso ajude outras pessoas que não possuem a mesma visibilidade.

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Como fatores como classe e raça potencializam as violências sofridas por essas mulheres em ambiente de trabalho?

Com o tempo, eu passei a perceber que os clientes costumam tratar prestadores de serviço como pessoas que devem estar sempre à disposição. A partir do momento em que o serviço é contratado, nasce essa ideia de que durante o período pelo qual se está pagando, o empregador seria uma espécie de “proprietário” daquela pessoa. Fatores de raça e classe influenciam ainda mais a forma como pessoas de classes mais altas se sentem donas de outras pessoas, ou superiores a elas, nessas relações. Muitas vezes, por exemplo, as pessoas se recusam a entrar no elevador junto com você. Pode parecer besteira, mas são micro agressões que são frequentes e que também deixam muitas marcas.

Por que existe uma resistência de parte da população em relação à realização de tarefas domésticas?

Parte disso vem da criação que recebemos, que desvaloriza o aprendizado de tarefas domésticas como arrumação e limpeza. Existe uma mentalidade de que algumas pessoas são “importantes demais” para, por exemplo, arrumar a própria cama ou limpar a própria bagunça, e que, por isso, é preciso que exista alguém para servir. Quando crescem e vão morar sozinhas, não sabem cuidar da casa porque isso não foi ensinado a elas.

Como as trabalhadoras domésticas podem se fortalecer para combater essas violências e garantir seus direitos?

Uma forma de começar esse movimento é a partir do conhecimento; quanto mais essas mulheres e trabalhadoras entenderem seus direitos, mais elas podem começar a se impor para combater essas violências. Muitas pessoas que trabalham com prestação de serviços domésticos não conhecem seus direitos muito bem, e acabam mais expostas a essas situações, sem saber o que fazer ou a quem recorrer. Precisamos disseminar mais informação e discutir o tema. Falar sobre também ajuda e estimula outras pessoas a se sentirem mais à vontade para abordar o assunto.

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Enquanto sociedade, como devemos agir de forma a combater essas violências?

Da mesma forma que as pessoas costumavam dizer que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, existe essa ideia de “não se meter na vida dos outros”. Mas, quando alguém toma conhecimento de uma situação de abuso ou exploração, é preciso tomar uma atitude e fazer uma denúncia. Teve um caso em São Paulo de uma senhora que foi encontrada em um imóvel fechado, no qual ela foi mantida presa depois que a família se mudou. Alguns vizinhos sabiam das condições em que essa mulher se encontrava, mas ninguém fez nada. Mesmo que não aconteça com você diretamente, mas você presencia ou toma conhecimento da situação, é necessário se posicionar. Precisamos que as pessoas mudem de comportamento, porque se continuarmos encobrindo esses casos as coisas não vão mudar.

*estagiária sob supervisão de Renata Izaal