Exclusivo para Assinantes
Celina

Heloisa Buarque de Hollanda estreia série de TV sobre movimentos de mulheres: 'Quero deixar um legado para as jovens feministas'

Pesquisadora, que estreia nesta quarta (26) série no Canal Brasil em que investiga as lutas das femininas, conta que a quarentena tem sido de produção intensa e explica como o pensamento decolonial e um laboratório com mulheres das periferias a fizeram rever uma série de conceitos
Heloisa Buarque de Hollanda Foto: Fernando Lemos
Heloisa Buarque de Hollanda Foto: Fernando Lemos

Heloisa Buarque de Hollanda me recebeu em seu apartamento no Rio de Janeiro dias antes de o governo decretar quarentena no estado. Ela se preparava para lançar "Perspectivas decoloniais", terceiro volume da coleção "Pensamento Feminista" (Ed. Bazar do Tempo), e já estava envolvida com livros e projetos audiovisuais futuros. À hora combinada de entrevista somaram-se outras: assim é a casa de Helô, de portas abertas e mesa posta para conversas sobre os muitos movimentos das mulheres. E é nesse mesmo cenário que a escritora, pesquisadora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) gravou "O que querem as mulheres?", título da série documental que estreia nesta quarta (26) no Canal Brasil, às 19h15.

A série, assim como os livros que Heloisa, 81 anos, tem publicado desde 2018, é parte de uma missão que ela se deu nos últimos anos: deixar um legado para a nova geração de mulheres que lhe proporcionou a feliz surpresa de ver o feminismo de novo na pauta do dia.

— É um ativismo. Percebi que elas não tinham repertório e então pensei: 'São as minhas netas, vou fazer uma biblioteca para elas'. É um compromisso com a formação dessa geração porque acredito que, agora, não há volta — explica.

Cena da série 'O que querem as mulheres?", que estreia no Canal Brasil. A partir da esquerda: Stephanie Ribeiro, Heloisa Buarque de Hollanda, Morena Mariah e Katiúscia Ribeiro Foto: Divulgação
Cena da série 'O que querem as mulheres?", que estreia no Canal Brasil. A partir da esquerda: Stephanie Ribeiro, Heloisa Buarque de Hollanda, Morena Mariah e Katiúscia Ribeiro Foto: Divulgação

Nessa entrevista à CELINA, feita em dois momentos — antes e durante a quarentena — Heloisa Buarque de Hollanda fala sobre a série e seus livros, explica como a proximidade com outros feminismos virou sua cabeça e por que acredita que está na hora de mulheres brancas pensarem sobre o que vão fazer com os seus privilégios.

Vídeo: E se o machismo acabasse amanhã, o que você faria?

CELINA: Como tem sido a quarentena para você?

HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA: Como todo mundo, estou trabalhando muito mais. Estou terminando livros, agora tem a série, e também tenho produzido muito para o canal do Fórum Mulher da UFRJ no Youtube. Toda semana fazemos as lives "Pandemônicas na Pandemia", que são conversas com mulheres sobre a vida afetada pela Covid-19, e a série de depoimentos Presença Preta, com mulheres negras. Tirando isso, a quarentena é chatíssima, sei que é preciso, mas ficar trancada não tem graça.

Nos últimos anos, você tem se dedicado a deixar um legado sobre o pensamento feminista. Por quê?

HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA: É um ativismo. Sou feminista há muito tempo e parecia que a minha geração não deixaria descendentes. Nos anos 1990, houve uma queda gigantesca de interesse pelo feminismo, aquela geração achou que estava tudo resolvido. Ou quase tudo. De repente, nós levamos um belo susto: uma turbulência enorme, as meninas hasteando a bandeira e reivindicando. Como eu sempre trabalhei tendência, decidi ver o que era. Assim nasceu, em 2018, o livro “Explosão Feminista” (Cia das Letras) e, a partir daí, a coleção "Pensamento Feminista" e a série "O que querem as mulheres?".

Do que trata a série?

É uma conversa entre mulheres gravada na sala da minha casa. São quatro episódios, em que discutimos de forma descontraída o feminismo da minha geração, os movimentos de mulheres negras, o ativismo indígena, o feminismo lésbico e o transfeminismo. Convidei as advogadas Leila Linhares e Comba Marques Porto, que são da minha geração; as pensadoras negras Katiúscia Ribeiro, Stephanie Ribeiro e Morena Mariah; a atriz Bruna Linzmeyer, a cantora Ellen Oléria, a escritora Amara Moira e a filósofa Helena Vieira e as pensadoras indígenas Taily Terena, Márcia Wayna Kambeba e Marize Vieira de Oliveira.

Como é esse diálogo com uma nova geração de feministas?

É muito rico. Eu entendi que o feminismo dessa geração tem as mesmas causas, mas não as mesmas estratégias da minha geração. O nosso era coletivo, mas agora elas dizem “o meu primeiro assédio”. Com as pesquisas de campo e a proximidade com elas, eu percebi que essas meninas não tinham repertório. Então disse a mim mesma: “São as minhas netas, vou fazer uma biblioteca para elas”. Por isso eu digo que os livros e a série são um ativismo. É um compromisso com a formação dessa geração porque acredito que, agora, não há volta.

Acredita nisso, apesar do avanço do conservadorismo no país?

Acredito. Há um retrocesso institucional; não tem verba para pesquisa, não se pode fazer filmes e tudo o mais que temos visto. Mas a cabeça dessa geração está feita, e isso não tem volta. A expressão delas pode ficar comprometida no cenário atual, mas é temporário. Assim que der, elas vão seguir em frente.

Elas vivem em um país governado pela extrema-direita. A sua geração enfrentou a ditadura militar.

O feminismo não era bem visto naquela época, assim como não é agora. No Brasil da ditadura militar, a Igreja era muito importante, o que tornava ainda mais difícil reivindicar a pauta feminista internacional, que era corpo, sexo e aborto. Além disso, a prioridade era derrubar a ditadura. As bandeiras delas são as mesmas que foram levantadas pela minha geração. Infelizmente, a violência, o assédio e a falta de respeito só fazem aumentar. A única coisa que avançou um pouquinho foi o mercado de trabalho, mas, mesmo assim, pelo tempo de luta, é um problema não resolvido.

Na última semana, as mulheres precisaram defender o direito de uma menina de 10 anos ao aborto.

O que aconteceu foi absurdo, aborto é um direito adquirido, o tema não deveria nem ter entrado em pauta. A posição da Igreja foi espantosa. Mas, veja, a maioria da opinião pública ficou ao lado da menina, o que prova que essa pauta andou. O que temos é um governo atípico, que movimenta segmentos que nunca se manifestaram.

Com o fim da ditadura, a sua geração teve conquistas importantes.

Nós fizemos muita coisa, apesar de todo esse constrangimento, porque entendemos que a nossa via seria institucional. Graças a esse trabalho, existem delegacias e secretarias da mulher em quase todos os estados; isso não existe em outros países. O Conselho Nacional da Mulher foi um compromisso firmado com o Tancredo Neves. A Constituinte de 1988 foi uma conquista das mulheres, o lobby do batom ficou em cima, e por isso ela é moderna no que diz respeito às mulheres. Infelizmente, não é executada como deveria. A minha geração trabalhou institucionalmente e usou os poucos canais de visibilidade de que dispunha. A geração feminista atual pegou a internet, que é a cereja do bolo, e foi fundo. É um modo de fazer política completamente diferente.

Qual a diferença?

Essa geração feminista saiu das manifestações de 2013; elas têm demandas diretas, fora da política normal. O Manuel Castells já tinha chamado atenção para isso quando disse que a política do século XXI não teria intermediários. Mesmo depois que 2013 arrefeceu, as mulheres continuaram. Mas foi de lá que elas trouxeram a estratégia horizontal e a demanda sem intermediários. A minha geração entrou pela política formal, virou deputada, negociou com o Tancredo. Elas conversam com a amiga, falam em primeira pessoa. Não estou dizendo que são individualistas; até porque quando uma diz “eu” faz eco. Elas criam um coletivo a partir do indivíduo.

Fomos do 'pessoal é político' para a 'política é pessoal'?

Exatamente. No meu tempo, o pessoal era político; mexeu no corpo, estava mexendo na política. Agora é o contrário: para fazer política é preciso ser pessoal. Essa inversão é bonita demais. Quando a Bila Sorj escreveu isso, achei que ela tinha matado a charada. Se você me perguntar quem eram as lideranças feministas da minha geração, eu posso listar cinco. E agora? Mesmo a Djamila Ribeiro ou a Antonia Pellegrino não são lideranças, elas são referências.

Falta a essa geração o caminho institucional?

Elas já fazem política, de forma intensa, mas não mandam no país. Há um desejo de entrar na política institucional, até porque são poucas as mulheres lá. Isso pode ser importante, veja o que está acontecendo nos Estados Unidos desde a chegada ao Congresso de um número maior de mulheres no campo progressista.

Esse ano você lançou um livro sobre o feminismo decolonial. Como foi para uma feminista histórica se deparar com esse pensamento?

Esse livro inteiro é uma interpelação dos conceitos eurocêntricos que foram trabalhados pela minha geração. Ser mulher no Brasil é outra coisa, então trouxemos a realidade local e a latino-americana. Nessa pesquisa, vi que tinha uma questão do corpo muito presente; a conversa é queer, é trans. Quando o queer chega ao Brasil, é visto como uma performance de elite porque, na nossa realidade as travestis são assassinadas. Já entreguei um livro sobre as sexualidades do sul global, e acho que estou dando muito spoiler...

O feminismo negro e o latino-americano são a vanguarda da quarta onda feminista?

Sem dúvida. O feminismo negro é o que há de mais avançado no Brasil. No resto da América Latina, há um protagonismo indígena fortíssimo. É muito bonito ver essa geração de mulheres negras conquistando visibilidade, ocupando seus espaços na universidade, reivindicando o seu lugar de fala. É interessante também como muitas mulheres negras identificam o feminismo como eurocêntrico e se declaram mulheristas. O Mulherismo é um movimento que quer a luta das mulheres; Katiúscia Ribeiro e Jurema Werneck, por exemplo, são mulheristas. A luta das mulheres é gigantesca e variada, mesmo dentro do movimento feminista. O feminismo lésbico, por exemplo, é revolucionário. Ele interpela a ideia da família, que diz que a mulher é a responsável pela reprodução.

De que maneira as perspectivas decoloniais impactaram o seu trabalho acadêmico?

A impressão é que perdi a vida toda. Estudei todas aquelas gringas, mas parece que esse conhecimento não serve. Estou exagerando, é claro, o pensamento feminista europeu e americano é sofisticado e importante, mas nos serve relativamente. Ele se adequa à mulher da elite brasileira, não a todas as brasileiras. Eu tenho um laboratório com mulheres das periferias e não uso a palavra “feminismo” lá. São mulheres incríveis, que lideram ongs enormes contra a violência e estão organizadas, mas não se reconhecem feministas. O que o feminismo quer? Uma presidente, uma CEO. Tudo bem querer essas coisas, mas quem se preocupa com as mulheres negras e pobres, moradoras das favelas, que estão batalhando à beça? Elas não têm as mesmas demandas, e o feminismo não as ouve, não incorpora as suas lutas.

Na Bienal do Livro, no ano passado, você disse que 'já passou a hora de as mulheres brancas discutirem os seus privilégios'.

Passou. A nossa fala é pálida, literalmente. O que nós vamos fazer? Ficar falando dos nossos privilégios? Nada acontece assim. É preciso saber que se é privilegiado e que esse privilégio precisa ser dividido. Você pode ouvir as demandas de quem não tem o mesmo privilégio que você. Fazer doação, caridade, ensinar corte e costura às mulheres das periferias não é ouvir.

E o que é ouvir?

É saber por que eu não estou atendendo àquela demanda, por que aquela mulher não é feminista. As discussões trazidas pelas mulheres no laboratório, por exemplo, passam longe do que eu penso e do que o feminismo hegemônico pensa. Elas produzem conhecimento e isso precisa ser levado a sério, precisa ser ouvido da mesma forma como ouvimos a Judith Butler. Acordar para isso é maravilhoso. Feminismo é isso: ouvir a outra. Quem gosta de falar sozinho é homem. Aliás, de falar sozinho e de interromper.

Você é muito interrompida?

A universidade ainda é muito machista. Tem manterrupting , mansplaining e todos os man que você puder listar. As mulheres ainda não estão autorizadas a produzir conhecimento, basta olhar as bibliografias e contar quantas são as mulheres citadas. Elas fazem mais teses de doutorado, há uma produção maciça de conhecimento feminino, mas que não entra como referência. Para escrever o “Explosão feminista”, eu me planejei para citar apenas mulheres. Mas, em alguns assuntos, simplesmente não encontrei as referências. Não existem?  É claro que existem. O problema é que o machismo na Academia não aceita um olhar novo sobre o objeto, tem que ser sempre a mesma coisa. Para não dizer que nada mudou, hoje há mais mulheres negras entre os alunos. Infelizmente, ainda são poucas no corpo docente.