Celina

Leia trechos inéditos de cartas de Anne Frank, que completaria 90 anos neste 12 de junho

Correspondências trocadas com a avó, antes da jovem ganhar seu diário, estarão na coletânia 'Obra reunida', que chega ao Brasil em novembro
Anne Frank aos 4 anos, em 1933 Foto: Divulgação/Editora Record
Anne Frank aos 4 anos, em 1933 Foto: Divulgação/Editora Record

RIO - Foi no seu aniversário de 13 anos, em 12 de junho de 1942, que a jovem alemã Anne Frank ganhou de presente o diário onde registrou memórias dos anos em que viveu escondida do regime nazista, e que acabaria se tornando o relato autobiográfico mais bem-sucedido da História. Mas essa não foi sua primeira incursão no mundo literário. Entre 1936 e 1941, antes da vida no esconderijo, Anne escreveu uma série de cartas para a avó Alice.

Nas correspondências, relatava aflições comuns a garotas da sua idade — do corte de cabelo ao uso de aparelhos nos dentes — e como os primeiros anos da Segunda Guerra já haviam mudado sua rotina. Os textos, todos inéditos, fazem parte da coletânea "Obra reunida", lançada nesta quarta-feira, data em que Anne completaria 90 anos, pela fundação que leva seu nome. A versão em português chega ao Brasil em novembro, pela editora Record.

“Eu tenho uns ferros na minha boca e um aparelho... Agora tenho que ir ao dentista toda semana (...). Isso vem acontecendo há oito semanas, e acho muito desagradável, claro.”

Anne Frank
em carta escrita para a avó, Alice Frank

A coletânea também traz as três versões existentes de" O diário de Anne Frank". A original; uma versão revisada por Anne; e a que acabou se popularizando, publicada originalmente em 1947, com alterações feitas pelo seu pai, Otto, que exclui comentários sobre a descoberta do próprio corpo e críticas aos outros moradores do esconderijo. O livro inclui, ainda, contos e o esboço de um romance que estavam acessíveis somente a pesquisadores, ilustrações, fotos de família e documentos.

Capa da coletânea que chegará ao Brasil em novembro Foto: Divulgação/Editora Record
Capa da coletânea que chegará ao Brasil em novembro Foto: Divulgação/Editora Record

No Brasil, o "Diário de Anne Frank" já vendeu mais de 1 milhão de exemplares, segundo a editora Record. Metade dessas vendas ocorreu nos últimos cinco anos, após os fãs do filme "A culpa é das estrelas", de 2014, descobrirem a obra. Na história, o casal protagonista visita a casa onde Anne se refugiou, em Amsterdã.

— É o jovem falando com outro jovem. São questões adolescentes vividas durante uma situação de extrema dificuldade, em que ela consegue encontrar formas de superação. Por isso, essa ligação profunda — avalia Joëlke Offringa, presidente do Instituto Plataforma Brasil, que representa a Casa Anne Frank no país desde 2006.

Ela considera Anne uma garota muito à frente do seu tempo e, por isso, é inspiração para todas as gerações de mulheres que vieram depois.

— No diário, Anne relata muitos confrontos com a mãe, dona de casa. Ela queria ganhar o mundo, ter sua voz ouvida e realizar coisas que a mãe não pôde, devido aos costumes da época. É muito focada nos estudos, sonhava ser escritora ou jornalista. Tinham planos profissionais que iam muito além dos cuidados da casa.

Em todo o mundo, o diário já vendeu 35 milhões de cópias, em 70 línguas diferentes.

“As lições judaicas pararam por enquanto.(...) Estou adquirindo um vestido novo, é muito difícil de obter tecido e muitos e muitos cupons de ração são necessários.”

Anne Frank
contou ela a avó Alice Frank, em carta de 1941. Anne morava na Holanda, que foi invadida em 10 de maio de 1940 e sofria com a perseguição contra os judeus

Para a educadora e especialista em Filosofia pela USP, Denísia Moraes dos Santos, o que segue unindo os jovens de hoje àquela menina, que viveu na década de 1940 o auge do horror do Holocausto, é a temática dos seu relatos:

— Anne fala sobre intolerância, sobre exclusão e marginalização, que é uma temática muito presente na vida dos nossos jovens, principalmente dos que vivem nas periferias. São discursos que atravessam toda a sociedade contemporânea — diz Denísia, que em 2015 descobriu, por meio de uma pesquisa para sua tese de mestrado, que "O diário de Anne Frank era o livro mais lido entre alunos do ensino médio de dez escolas públicas de Santo André, no ABC Paulista.

“Hoje a mamãe e eu estivemos na cidade para comprar um casaco para mim, um cinza, além de um chapéu, e eu o acho lindo. (...) Eu queria poder começar a patinar de novo, mas vou ter que ter paciência até que a guerra acabe. (...) Tenho muita lição de casa da escola. ”

Anne Frank
Carta de 22 de março de 1941 a sua avó Alice Frank e à família Elias na Basileia

Como representante da Casa Anne Frank no Brasil, o Instituto Plataforma desenvolve ações educativas para provocar reflexões sobre os perigos da discriminação, do racismo e do antissemitismo. São oficinas, treinamentos, palestras e peças de teatro que, através do legado da jovem judia, reforçam a importância da liberdade, da igualdade de direitos, da democracia e do respeito às diferenças.

— Muitos jovens brasileiros vivem uma situação muito difícil, de discriminação, racismo e exclusão. Eles talvez nunca imaginassem que uma menina rica, do primeiro mundo e branca, poderia passar por situação ainda mais difícil. A história de vida de Anne Frank faz o jovem perceber que a discriminação pode ocorrer com qualquer um, pois é uma construção social — observa Joëlke.

“Eu passo cada minuto do meu tempo livre no rinque de patinação. (...) Às terças e sextas eu também tenho lição de casa e, para patinar, só me sobram os sábados e os domingos. Às segundas, quartas e quintas tenho francês e chego a casa só quase às seis.”

Anne Frank
Carta de 13 de janeiro de 1941 a Alice Frank e a família Elias na Basileia

Quem foi Anne Frank

Anne Frank nasceu em 12 de junho de 1929 na cidade alemã de Frankfurt. Teve uma irmã, Margot, cerca de três anos mais velha. A situação na Alemanha não era a melhor: havia poucos empregos e muita pobreza. Nesse cenário, Adolf Hitler e seu partido, que culpava os judeus pelos problemas do país, ganharam força e muitos adeptos. Por causa desse ódio aos judeus e da má situação do país, os pais de Anne, Otto e Edith Frank, decidem mudar-se para Amsterdã, onde fundam uma empresa. E é num anexo secreto da fábrica que eles se escondem durante os piores anos da guerra.

Durante os dois anos em que permanece escondida, Anne escreve, no diário que ganhou em seu aniversário de 13 anos, sobre o que acontece no esconderijo, sobre o que sente e pensa. Mas, ao ser descoberta pelos nazistas, é levada a campos de concentração, onde morre em fevereiro de 1945, em decorrência de uma febre tifoide. O mesmo destino teve sua irmã, Margot.

“(...) Ontem à noite, me deu nos nervos quando a madame falou em tom de ironia: “O pensador!” O Peter ficou todo vermelho e envergonhado (...). Por que é que as pessoas não calam a boca?! Você não tem ideia do terrível que é vê-lo assim tão solitário e não ter como ajudar.”

Anne Frank
este trecho do diário, escrito em 6 de março de 1944, não é inédito, mas durante muitos anos era desconhecido porque o pai de Anne, Otto, havia tirado da versão que chegava aos leitores, relatos sobre a vida amorosa da filha. Ele foi incluído no livro vendido no Brasil em 1995

O diário

De todos os que se escondiam no anexo secreto, apenas Otto, o pai de Anne, sobreviveu à guerra. Quando ele lê os diários da filha e descobre que ela queria ser escritora ou jornalista, e que pretendia publicar as suas histórias, faz uma primeira edição, de 3 mil exemplares. O livro, mais tarde, seria adaptado para o teatro e cinema. Em 1960, o esconderijo tornou-se museu: a Casa de Anne Frank. Otto continuou envolvido no projeto até sua morte, em 1980. Ele esperava que os leitores do diário tomassem consciência dos perigos da discriminação, do racismo e do ódio contra os judeus.