Celina

'Lutar por resposta é uma forma de estar com Marielle o tempo inteiro', diz Mônica Benício

Viúva da vereadora assassinada há um ano afirma que a solução do caso é importante para trazer justiça social ao país
Monica Benício, viúva de Marielle Franco diz que sente saudades, e não raiva: “É um projeto de justiça, e não de vingança”. Foto: Arte de Lari Arantes
Monica Benício, viúva de Marielle Franco diz que sente saudades, e não raiva: “É um projeto de justiça, e não de vingança”. Foto: Arte de Lari Arantes

BRASÍLIA - Há um ano, Mônica Benício estava preparando o jantar e notou que sua mulher, Marielle Franco, demorava a chegar. Ligou para ela incessantemente, mas não houve resposta. Logo depois, Mônica soube por uma amiga que a companheira fora alvejada em seu carro.

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Mônica se isolou. Parou de comer, perdeu contato com as notícias e demorou meses para voltar a acompanhar as redes sociais. Em entrevista ao GLOBO, realizada antes da prisão dos dois suspeitos do assassinato de Marielle, ela relata como é, um ano depois, não ter resposta das autoridades sobre quem são os mandantes e os executores do crime que tirou a vida de sua companheira. Diz que sente saudades, e não raiva: “É um projeto de justiça, e não de vingança”.

Como você conheceu a Marielle?

Foi uma viagem com amigos em comum, em 2004. Éramos as pessoas que acordavam mais cedo na casa, então íamos caminhar juntas na praia. Logo percebemos que, na infância, a gente morava na mesma comunidade na Maré. Quando fui deixá-la na rodoviária, foi uma cena dramática, porque as duas choravam e a filha dela também. A gente se ligava todos os dias do orelhão, mas ficamos um ano numa relação que a gente entendia como amizade. Nossos amigos já diziam que não era só isso, o que até nos ofendia um pouco. Nenhuma das duas tinha histórico de relacionamento com outras mulheres. Um ano depois, dormindo juntas, aconteceu um beijo. No dia seguinte, a gente se beijou de novo e falamos: “vamos viver isso e ver no que dá”.  Entre idas e vindas, foram 14 anos de relacionamento.

Como foram os últimos anos que passaram juntas?

Foi, sem dúvida, a melhor fase da nossa relação. A gente terminou e voltou diversas vezes. Tinha muita pressão social, uma questão de lesbofobia muito grande, que era social e da família também.  Além disso, havia a dificuldade econômica. A gente consegue ficar junto quando tem autonomia financeira e ao passar por um processo de empoderamento. Nossa relação era de parceria, havia um companheirismo muito grande. Então, por mais que se tivéssemos problemas, porque nós tínhamos, era um casamento real. Não havia conto de fadas, como acontece com todo casamento LGBT. Mas os três últimos anos foram, sem dúvida, a melhor fase da relação.

Você já contou antes que o pedido de casamento foi especial. Como foi?

Há muitos anos isso era um desejo, mas a gente não conseguia. Acho que o pedido foi a única vez em que a Marielle conseguiu fazer uma surpresa. Ela era meio distraída, e eu descobria tudo que estava planejado: festa de aniversário surpresa, viagem... A gente foi a um show da Mart'nália, e ela tentou fazer contato com a produção. Marielle queria fazer isso do palco, mas não conseguiu. Quando me contou, quase infartei só de pensar na possibilidade. Durante a música “Namora comigo”, ela abriu a caixa. Como tremia, eu pensei que Marielle estava passando mal. Mas ela abriu a minha mão e colocou a aliança. Foi muito significativo.

Como era a relação da Marielle com o trabalho?

Era muito diferente da relação dela em casa. Marielle era enérgica, tinha um posicionamento firme e muita convicção nas coisas em que acreditava. Era uma defensora dos direitos humanos, mulher, favelada, negra, lésbica, então entendia todos os tipos de preconceito com a população que representava. Ela fazia o trabalho com paixão, porque conhecia essa dor intimamente. Talvez a pressão do cotidiano fosse tão grande que, em casa, ela se permitia ser acolhida. Marielle era a amiga para quem todo mundo sabia que podia ligar de madrugada, mas em casa havia cumplicidade, e ela se colocava no lugar do acolhimento, de querer ser mimada, poder reclamar e pedir carinho, ser mas manhosa do que era, de fato, aquela mulher que parecia ter cinco metros de altura, de tão gigante.

Quais são as coisas que mais fazem você lembrar da Marielle? O que do jeito dela te marcou?

A Marielle era muito estabanada e desatenta dentro de casa. Eu fiz um jardim no quintal que tinha 200 plantas. Eu cuidava e regava. Na segunda-feira, dia 12 de março, estava fazendo um trabalho, e ela me perguntou se eu já tinha regado as plantas. Eu respondi que seria ótimo se ela pudesse fazer essa gentileza. De repente, vejo a Marielle passar pela casa com balde, molhando tudo. Eu tinha dito a ela para pegar a água da cisterna, mas Marielle preferiu o balde. Comecei a rir e falei que ela estava com medo da cisterna porque já era noite. Ela respondeu: “Tenho medo de ter um bicho.” Sugeri que conversasse com as plantas e, um  tempo depois, a escutei dizendo “ah, essa minha roxinha é a favorita”. Tive uma crise de riso: a planta preferida dela era a única artificial que tínhamos. “Mas parece tão real”, ela disse. Essa desatenção com as coisas do dia a dia me dava vontade de cuidar dela.

Você imaginava que ela corria risco?

A Marielle tinha um índice de rejeição muito baixo. Era sempre simpática e solícita. Era difícil encontrar alguém que não gostasse dela. Quando veio me perguntar se deveria ou não ser candidata a vereadora, eu disse que, enquanto eleitora, achava excelente. Mas disse também que como eu a amava, ela não teria o meu voto porque isso acabaria com a vida dela. Eu me referi a agendas, mudanças de rotina. Jamais imaginei que seria do jeito que foi. Ela tinha o meu apoio, e foi uma das campanhas mais bonitas de que o Rio tem notícia. Eu acho que, na verdade, quem planejou o assassinato não tinha noção do que estava fazendo. Não podia esperar que tivesse essa repercussão. Porque a Marielle era isso, o corpo dela era o corpo que o Brasil acha que é o mais descartável, o corpo da mulher, o corpo da negra, o corpo LGBT, favelada.

Como foi a noite do assassinato?

Não tem muito o que falar sobre isso, foi um caos. Ela me mandou uma mensagem meia hora antes dizendo que estava chegando em casa. Então, até hoje, é muito difícil entender que ela não vai chegar. Acho que toda essa repercussão e o que ela se tornou não ajuda muito no processo do luto, porque é difícil entender que é real. Por mais que o tempo passe, ainda é difícil acreditar.

Como foram os primeiros dias depois da morte?

Eu tenho flashes. A noite de 14 de março não foi tão difícil quanto o dia seguinte. É o momento em que você acorda e, em algum segundo, tem a esperança de que não tivesse acontecido. Olhar a cama vazia foi um desespero total. Eu resisti a aceitar calmantes. Mas a dor chegou a um ponto em que eu já não dava mais conta. Fiquei a base de remédios por semanas. Tive sempre amigos ao meu lado porque eu não fazia absolutamente nada sozinha. Era como se eu estivesse esperando ela voltar. Tenho poucas lembranças dos primeiros meses. Do velório, por exemplo, tenho flashes. Passei muito mal, fiquei na enfermaria da Câmara. Parei de comer, perdi 11 quilos em um mês. Não sabia nem que isso era humanamente possível. Só aceitava coisas que eram líquidas e ruins, nada que pudesse ser associado ao prazer. Nesse ponto, intensifiquei a terapia, mas depois abandonei. Acho que os momentos de mais dor, infelizmente, são os que eu consigo lembrar.

Você conseguia acompanhar as investigações e ver as notícias?

Num primeiro momento, fui blindada por todo mundo. Pouca coisa chegava até mim. Aí vieram as fake news, a parte desumana disso tudo. Pedi que só chegasse até mim o que era bonito, só as manifestações de carinho que já aconteciam pelo mundo. Fiquei um tempo afastada das redes sociais, justamente para não ver nada. Quando eu finalmente comecei a recuperar um pouco de fôlego, passei a acompanhar as investigações mais de perto. Para mim, já tinha se passado muito tempo – e a gente está falando de uns dois meses depois – para que não houvesse resultado. Então, vinha um sentimento de indignação e de medo. Então passei a dedicar a minha vida para que a gente não fique sem resposta. Foram momentos muito difíceis, mas estar mergulhada nessa luta ressignificou toda a dor. Lutar por resposta é uma forma de estar com Marielle o tempo inteiro. É um esforço diário: levantar e lembrar por que eu tenho que estar de pé.

Qual a sua opinião sobre a linha de investigação e a atuação das autoridades?
No início, eu tinha alguma confiança de que o trabalho que estava sendo feito era sério, que nos levaria aos responsáveis de fato. Depois, comecei a ficar com medo de que isso não acontecesse, de que entregariam qualquer resultado apenas para silenciar a luta. Num terceiro momento, as coisas começaram a tomar um caminho diferente. O assassinato da Marielle foi um crime político. Uma pessoa que articula um crime desse tem poder e certeza da impunidade. A minha preocupação é que a gente consiga que essa pessoa seja responsabilizada pelo que fez, que ela não faça isso com mais ninguém. O atentado contra Marielle foi um atentado à democracia. Não há democracia enquanto a gente não conseguir responder quem mandou matar e quem matou Marielle. O que as autoridades nos dão hoje, a família e à sociedade como um todo, é um silêncio profundamente desrespeitoso.

Como foi lidar com as agressões e alegações de grupos políticos opostos?

A gente tem que falar do valor da vida. Todas as vidas importam. Marielle defendia isso. Ela atendia na Comissão de Direitos Humanos a mãe do policial assassinado em serviço e a mãe do traficante que foi executado. O que a gente tem que entender é: o que, socialmente, representa a execução da Marielle? Ela era uma figura pública, uma parlamentar em exercício, democraticamente eleita, que não terminou seu mandato. O recado foi claro. Justiça por Marielle é construir a sociedade mais justa e igualitária que ela morreu defendendo. Por isso é diferente e por isso é tão violento quando, hoje, nós temos um deputado estadual que quebra uma placa em homenagem a Marielle. Isso é mais um reforço da barbárie. É um discurso de ódio, de uma violência que nossa sociedade não precisa mais.

Como a notícia do assassinato chegou até você?

Eu estava fazendo o jantar. Liguei para a Marielle, porque eu cheguei em casa e era para a gente ter chegado mais ou menos juntas. Quando entrei em casa, mandei uma mensagem e ela não respondeu. Eu sabia que Marielle estava com a assessora dela. Pensei: "Ah, jogou o telefone no fundo da bolsa e está de fofoca". Liguei mais uma vez, ela não atendeu. Fiquei com uma angústia meio esquisita. Comecei a ligar seguidamente. Aí entrou uma ligação de uma grande amiga da Marielle, e ela não costumava me ligar. Já atendi preocupada e perguntando "cadê a Marielle?". Ela falou assim: "Olha, tem uma amiga no portão e você precisa ir lá, porque ela não está conseguindo tocar o interfone". Perguntei se tinha acontecido alguma coisa, e ela disse que sim. Larguei o telefone e fui correndo até o portão. Quando eu cheguei, a amiga que estava lá olhou para mim e me disse para ser forte. Na minha cabeça, tinha acontecido um acidente, o Anderson tinha batido com o carro, eles estavam no hospital... Algo que pudesse ser revertido. As vizinhas vieram correndo, perguntando se era verdade. Eu desmaiei, e as minhas lembranças são de muito tempo depois, quando eu já estava em casa com amigos e a família.

Com relação a demora da resolução do caso, você pensou em desistir? Sentiu que isso te desgastou?

Pensar em desistir de acompanhar ou de lutar nunca aconteceu, por mais cansativo que seja. Mas, no início, tinha uma questão de desistência pessoal, desistência da vida mesmo. Eu parei de comer, de fazer as atividades que fazia. Sempre fui regrada com alimentação, preocupada com exercício físico e tinha uma rotina saudável. Abandonei tudo que se referia ao autocuidado. Foi um processo de autodestruição natural. Mas, conforme foi passando o tempo, houve cada vez mais acolhimento das pessoas, o que foi me ajudando a ficar de pé. Todo dia é um dia muito difícil.

Quando você tatuou o rosto dela no braço?

Foi no dia do aniversário da Marielle, 27 de julho. Retrato em tatuagem é sempre uma coisa muito dramática (risos), então fui procurar um cara que era bom em fotorrealismo. Viajei até Porto Alegre para fazer como um presente de aniversário.  É de diversas formas importante para mim. Às vezes eu brigo e grito com ela que me deixou nessa roubada. Mas isso é importante porque nas dificuldades eu lembro porque é importante seguir.

Qual o sentimento que você mais vive hoje?

Acho que é a saudade que mais pega. Dentro disso está a lembrança do amor, da tristeza e da ausência. Agora tem a raiva pela questão de ainda não termos uma resposta. Mas isso não vai trazê-la de volta. Então é uma luta mais pela preservação da memória da Marielle. É um projeto de justiça, e não de vingança. Talvez, se pudesse trazer a Marielle de volta, eu ficasse irritada. É um exercício de saber lidar com a presença da ausência, um dia de cada vez. Tem saudade todo dia, tem tristeza todo dia, é isso.