Celina

Marielle Franco: conheça seis mulheres negras que se inspiram no legado da vereadora assassinada há 2 anos

Elas são educadoras, rappers, cineastas , ativistas e levam adiante as lutas de Marielle
Marielle Franco Foto: Arte de Ana Luiza Costa
Marielle Franco Foto: Arte de Ana Luiza Costa

RIO - "Eu sou porque nós somos." Era com essas palavras que Marielle Franco divulgava sua campanha à Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro em 2016 e foi também com elas que tocou seu trabalho durante seu curto mandato — interrompido de forma brutal em 14 de março de 2018 por um crime ainda sem solução. Para Marielle, todas as suas conquistas até então e tudo que ainda estava por vir eram fruto de um esforço coletivo. E, como a mesma dizia, seus passos vinham de longe.

Dois anos depois, sua morte ainda parece inacreditável para algumas pessoas que a conheciam. "Ainda não caiu a ficha", diz a rapper MC Martina, que conheceu Marielle durante a campanha, em 2016.

"É lastimável tê-la como mártir. Eu quero que as próximas gerações tenham mais exemplos da grandeza da personalidade negra a partir de pessoas vivas", reforça a cineasta Éthel Oliveira, que co-dirigiu o documentário "Sementes", que acompanhou a campanha eleitoral de seis mulheres negras que decidiram entrar para a política após a morte da vereadora.

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Neste 14 de março, CELINA conta a história de outras seis mulheres negras que, assim como Marielle, dedicam suas vidas para transformar a realidade a sua volta e se inspiram no legado deixado pela vereadora.

Documentário:

O documentário
O documentário "As duas tragédias de Marielle Franco", produzido pelo GLOBO sob o selo da Celina, narra a trajetória de Marielle até a Câmara, recorda seu assassinato em 14 de março de 2018, ao lado do motorista Anderson Gomes; e explora a investigação que, um ano depois do crime, apresentou suspeitos, mas ninguém foi condenado e nenhum mandante foi identificado

MC Martina, rapper, poeta e produtora

Quando conheceu Marielle, em 2016, Sabrina Martina tinha 18 anos , começava a se aventurar nas rimas e iniciava a sua trajetória como rapper, poeta e produtora cultural. Elas se encontraram pela primeira vez em um evento de campanha de Marielle no Educap, em Ramos, Zona Norte do Rio. Marielle era cria da favela da Maré, Martina, da favela da Pedra do Sapo, no Complexo do Alemão.

— Todo mundo falava muito bem dela e eu achava estranho, porque não sabia que existia política honesta. Já estava escaldada, de início não botei fé. Eu nem sabia que tinha mulher preta, de favela, querendo fazer política. Ela foi a primeira pessoa em que eu votei — conta Martina.

A rapper, poeta e produtora MC Martina planeja lançar seu primeiro livro neste ano Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo
A rapper, poeta e produtora MC Martina planeja lançar seu primeiro livro neste ano Foto: Fernando Lemos / Agência O Globo

A rapper afirma que depois que Marielle foi eleita, passou a encontrá-la com mais frequência, em eventos na Maré e em outras comunidades da cidade. Elas se viram pela última vez em uma das reuniões da comissão que monitorava a intervenção federal no Rio de Janeiro.

— Assim que ela entrou como vereadora, fez um encontro na Maré e me chamou para dar uma oficina de hip hop. Foi a primeira oficina que eu dei. Eu tinha 19 anos, estava insegura, mas ela me incentivou — afirma.

No ano seguinte, Martina criou o Slam Laje, que até hoje acontece no Alemão. O slam é um campeonato de poesia que tem ganhado cada vez mais popularidade nas periferias do Brasil. Na competição, os participantes têm, na maioria dos casos, até três minutos para apresentarem sua performance — uma poesia de autoria própria, sem acompanhamento musical ou adereços. O texto pode ter sido escrito antes ou pode ser improvisado e não há regras para o formato.

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— Eu me apaixonei pelo slam e queria proporcionar isso para minha favela. O Slam Laje é a primeira batalha de poesia que acontece dentro do Alemão e uma das primeiras dentro de uma favela do Rio de Janeiro — conta Martina.

Martina planeja lançar seu primeiro livro ainda no primeiro semestre, de forma independente. A publicação reunirá 20 poesias autorais. O seu trabalho como articuladora, rapper e poeta dialoga com trabalho que Marielle fazia e acreditava: o de defender a vida e a dignidade das pessoas que moram nas favelas do Rio de Janeiro. A rapper ressalta que a família de Marielle criou um instituto em nome da vereadora, para preservar a sua memória.

— Quando foi eleita, ela fez algo muito maior do que poderia imaginar e que teve impacto na minha favela, na favela dela, no estado, no mundo. Ela nos deus esperança na política — conta Martina.

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— A morte dela foi como um alerta para gente. Eu entendi que corro perigo toda vez que abro a boca para falar o que eu penso e passo dentro e fora da favela. Mas depois da morte dela eu entendi que tudo que eu faço não é só por mim. A gente tem algo que é maior do que a gente.

Silvana Bahia, diretora do Olabi

Silvana Bahia Foto: Valda Nogueira / Valda Nogueira
Silvana Bahia Foto: Valda Nogueira / Valda Nogueira

Desde 2017, Silvana ou Sil Bahia como é conhecida, de 34 anos, trabalha para a democratização da tecnologia, sobretudo para mulheres negras e indígenas por meio de cursos, oficinas, pesquisa e mentorias. Ela, criadora do Pretalab contou que conheceu Marielle Franco ainda na Maré antes de se tornar vereadora.

— Conheci a Mari como uma leonina assim como eu (risos). E lembro que fiquei impressionada com o jeito como ela falava, como se posicionava e tínhamos uma ótima relação. Quando ela se tornou vereadora, a gente teve até mais contato e fizemos mais coisas juntas. Em 2017, fizemos uma mesa no Fórum da Internet no Brasil, o evento mais importante de internet no país, e foi a primeira vez que teve uma mesa de mulheres negras — comentou.

VÍDEO:

O rosto de Maria dos Santos Soares, a Dona Santinha, se tornou símbolo de resistência durante as manifestações após a morte de Marielle Franco, em 2018. Ela, mesmo com 95 anos, é presença certa em manifestações por direitos das mulheres no Rio de Janeiro e tornou-se um símbolo da luta feminista na cidade.
O rosto de Maria dos Santos Soares, a Dona Santinha, se tornou símbolo de resistência durante as manifestações após a morte de Marielle Franco, em 2018. Ela, mesmo com 95 anos, é presença certa em manifestações por direitos das mulheres no Rio de Janeiro e tornou-se um símbolo da luta feminista na cidade.

No dia 14 de março, quando Marielle Franco foi assassinada, Silvana estava num evento que lançava um projeto junto com outras mulheres negras, entre eles o Mulheres Negras Decidem, na época chamado de Umunna. O projeto, inspirado na vida de Marielle, tem como objetivo formar mais mulheres negras na política institucional.

— Ela sempre deu a maior força para o Pretalab e era uma das minhas referências. E o dia da morte dela é uma coisa que ainda me marca muito, porque eu estava numa reunião para mulheres negras focada em tecnologia e dados, em que um dos projetos lançados, o Mulheres Negras Decidem, era inspirado na vida e carreira dela. Naquele dia, eu saí de lá com o coração cheio de alegria por ver tantas potências reunidas, mas quando fui para o aeroporto recebi a notícia do que aconteceu. Até hoje é difícil lidar com isso, mas eu tenho certeza de que ela deixou muitas sementes.

Winnie Bueno, fundadora da Winniteca

Winnie Bueno Foto: Marilia Dias
Winnie Bueno Foto: Marilia Dias

Criadora da Winnieteca , um movimento que distribuição de livros para pessoas negras, Winnie Bueno, de 31 anos, foi uma das pessoas que conviveu diretamente com Marielle também antes da candidatura. E seu projeto, de certa forma, também foi influenciado por ela.

— A Winnieteca surgiu a partir de um incômodo meu em perceber que pessoas brancas que se colocam como antirracistas raramente têm ações antirracistas. E assim começou essa rede que ocorre no twitter por meio de um robô. Infelizmente, o acesso ao livro ainda é limitado a pessoas negras, sobretudo por questões financeiras, sem contar nas barreiras que o racismo cria e reiventa. Eu conheci a Mari em 2016, antes de criar o meu projeto, e ali eu já percebi que ela era uma mulher muito potente para desenvolver e a gente se aproximou demais, porque durante um tempo fui militante do partido — contou.

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Para além da potência dentro da câmara, Winnie afirma que admirava a postura de Marielle Franco fora daquele ambiente. Segundo ela, uma das características que aproximavam as duas era o compromisso com a população negra.

— A ultima vez que estive com ela foi em novembro de 2017, um momento muito bonito. E ainda é muito duro precisar lidar com a ausência dela. Ela era uma mulher na qual eu me espelhava muito e tinha uma atuação e compromisso ético com as mulheres negras. Uma vez eu estava no Cacique de Ramos e ela chegou. E eu pude observar aquela mulher que era tão potente e inspiradora para mim, sendo potência e inpiração num espaço tão lindo e forte que é o samba. A forma como ela sorria, cantava as músicas e compartilhava com os amigos era incrível.

Fabíola Oliveira, idealizadora e diretora-executiva do Odarah Cultura e Missão

Fabíola Oliveira Foto: Reprodução
Fabíola Oliveira Foto: Reprodução

Há sete anos promovendo nas escolas cultura e educação para crianças da educação infantil por meio da literatura afro-brasileira e africana, oficina de turbantes e reconhecimento enquanto pessoas negras, Fabíola Oliveira também ampliou a discussão para os espaços urbanos e ali pode conhecer o trabalho de Marielle Franco.

— Sempre esbarrava com ela em espaços de luta, coletivos, e a atuação dela era muito forte. Seu discurso conversava com o trabalho que eu e meu marido fazemos, que é falar sobre racismo religioso, genocídio da juventude, assassinatos, violência obstétricas, população em situação de rua. Ela, assim como muitas outras, me inspiram e nos inspiram.

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Fabíola conta que uma vez convidou Marielle para uma roda de conversa realizada pelo Odarah, mas infelizmente, houve um imprevisto e a vereadora não pode comparecer. Ela define a atuação de Marielle como política de afeto.

— Ela era uma mulher realmente presente, fazia política com afeto. Ela afetava e era afetada pelas pessoas. E assim como todas as mulheres que caminham juntas, uma influencia a outra. Principalmente porque a luta não é um espaço de alegria nem de cura, é um espaço de adoecimento e esgotamento. A fala da Marielle sempre trazia a força e a necessidade de construirmos espaços de autocuidado, preservação e uma cuidando da outra.

Éthel Oliveira, documentarista

A documentarista Éthel Oliveira Foto: Andrea Capella/Divulgação
A documentarista Éthel Oliveira Foto: Andrea Capella/Divulgação

Assim como Marielle, a cineasta Éthel Oliveira , de 43 anos, é uma mulher negra que trabalha na defesa dos direitos humanos. Vivendo do outro lado da ponte, em Niterói , Éthel só conheceu o trabalho de Marielle no dia 14 de março de 2018, quando a vereadora foi assassinada.

— Esse meu desconhecimento sobre o trabalho dela faz parte da tragédia que a envolve. O empenho dela passava completamente despercebido — critica a documentarista.

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Éthel dedica seu trabalho às mulheres, à negritude e à cultura popular. Ela já foi pesquisadora do Laboratório do Filme Etnográfico na Universidade Federal Fluminense (UFF) e trabalhou produzindo documentários para televisão em Pernambuco e oferecendo aulas e oficinas de audiovisual, sempre pautadas pelos direitos humanos, das mulheres e da população negra.

Poucos meses depois da morte de Marielle, Éthel foi convidada pela diretora Julia Mariano e pela roteirista Helena Dias para co-dirigir o documentário que as duas tocavam sobre o levante de mulheres negras nas eleições de 2018. Ao longo do ano, elas acompanharam seis candidatas.

— Eu não conhecia o universo das mulheres na política institucional e por esse motivo achei a proposta desafiadora. O processo do filme foi bem parecido com a campanha das candidatas. Uma longa jornada sem dinheiro, apostando na nossa base. Acompanhamos seis personagens e isso por si só já é uma mega produção — conta.

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Para Éthel, o filme "Sementes", que será lançado em agosto desse ano, faz algo inédito ao abordar o "fazer político das mulheres negras."

— E não digo isso de forma a achar vantagem, digo até um pouco triste. Imagine se pudéssemos ver o filme sobre a campanha da Lélia Gonzalez? Se a trajetória política de Leci Brandão e da Robeyoncé Lima estivesse sendo registrada? Já está mais que na hora de um grande filme sobre Sueli Carneiro, por exemplo. Essas trajetórias são absolutamente inspiradoras — afirma a cineasta.

O documentário
O documentário "As duas tragédias de Marielle Franco", produzido pelo GLOBO sob o selo da Celina, narra a trajetória de Marielle até a Câmara, recorda seu assassinato em 14 de março de 2018, ao lado do motorista Anderson Gomes; e explora a investigação que, um ano depois do crime, apresentou suspeitos, mas ninguém foi condenado e nenhum mandante foi identificado

Éthel vê semelhanças no seu trabalho com o que Marielle Franco fazia, mas lamenta ver a vereadora ser transformada em mártir.

— Ela e eu estamos no mesmo front. O que é lastimável é tê-la como mártir. Eu quero que as próximas gerações tenham mais exemplos da grandeza da personalidade negra a partir de pessoas vivas. Precisamos de contato com essa grandeza agora, imediatamente. Há muitas histórias para serem contadas e isso não é apenas um benefício para a população negra é um benefício para toda humanidade — finaliza.

Luana Alves, psicóloga e professora de cursinho popular

Nascida em Santos, no litoral paulista, Luana Alves, de 26 anos, mudou-se para a capital quando passou no vestibular de psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Lá entrou em contato com o movimento estudantil e se entendeu, como a própria define, como uma pessoa "que deseja outro tipo de sociedade."

Ela conta que, no seu ano, só tinha outros dois colegas negros numa turma de 70 alunos. Alguns anos depois, em 2014, Luana conheceu a rede Emancipa , articulação social que desde 2007 oferece cursos populares pré-universitários para estudantes de escolas públicas.

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— Comecei a ajudar, participando dos círculos de discussão do Emancipa. Fui me aproximando cada vez mais e, entre 2016 e 2017, passei a dar aulas no curso Vladimir Herzog, um dos maiores da rede, que fica no Grajaú, Zona Sul de São Paulo. Todo trabalho é voluntário — conta.

A psicóloga e ativista Luana Alves Foto: Arquivo Pessoal
A psicóloga e ativista Luana Alves Foto: Arquivo Pessoal

Também em 2014, Luana se filiou ao Psol e, no ano seguinte, ao participar de um evento do partido no Rio de Janeiro, conheceu Marielle.

— Foi a primeira vez que a ouvi falar. Depois, como ajudava no mandato da Sâmia Bomfim, que se elegeu vereadora em São Paulo no mesmo ano que Marielle se elegeu no Rio, passei a acompanhar o trabalho dela de longe.

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Quando soube da morte da vereadora, Luana conta que seu sentimento inicial foi de pavor, seguido por revolta e vontade de lutar que foram demonstradas no ato realizado na Avenida Paulista no dia seguinte ao atentado.

— As mulheres negras da esquerda, como um todo, entenderam que esse tiro foi em nós também. A primeira coisa com que a gente teve que lidar foi com essa dor coletiva. Depois, procurar entender o que significa politicamente esse assassinato na escalada autoritária que vive o país. A terceira coisa é olhar para a luta dela e ver o que a gente faz que ela também fazia — conta a psicóloga, lembrando que Marielle também chegou a dar aula em cursos populares preparatórios para a universidade — Ela entendia a importância disso. Sem dúvida, ela inspira todos nós na rede Emancipa.

Hoje, Luana está finalizando sua residência do curso de psicologia e trabalha na viabilização de mais um curso preparatório da rede no Jardim Jaqueline, na região do Butantã, Zona Oeste de São Paulo. As aulas têm início neste mês e o lema da rede em 2020 tem a ver com o que Marielle colocava, diz Luana: "A educação derruba mitos: poder às periferias."