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Meninas na construção. Meninos na cozinha. Por que é importante promover a igualdade de gênero nas brincadeiras das crianças

Especialistas afirmam que a divisão dos brinquedos entre garotos e garotas ajuda a reforçar estereótipos que, no futuro, podem ter impacto na escolha profissional de homens e mulheres
Nas lojas, encontrar brinquedos que desconstruam a segmentação por gênero não é tarefa fácil Foto: Arte de Lari Arantes
Nas lojas, encontrar brinquedos que desconstruam a segmentação por gênero não é tarefa fácil Foto: Arte de Lari Arantes

RIO - Meninas brincam com bonecas e panelinhas. Meninos se divertem com carrinhos e blocos de montar. Desde a infância, todos nós nos deparamos com ideias do que devem ser os comportamentos apropriados a homens e mulheres. São visões estereotipadas que, segundo especialistas, reforçam preconceitos e podem até limitar as escolhas profissionais no futuro. Por isso é bom prestar atenção na escolha dos brinquedos.

- A brincadeira é um dos momentos mais importantes da infância. Nela são instituídas e reveladas as desigualdades de gênero - afirma a psicóloga e fundadora do Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt-Terapia Virginia Suassuna.

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Segundo Suassuna, brincar dentro desses estereótipos fortalece a construção social de que a menina nasce mais calma e apta a cuidar da casa e dos filhos, enquanto os meninos são mais agitados e, por isso, querem ganhar o mundo. Na vida adulta, em geral, essas ideias se refletem no mercado de trabalho, com o homem exercendo papéis sociais mais valorizados do que os da mulher, que está mais presente em carreiras relacionadas ao cuidado com as pessoas. E, mesmo quando trabalha fora, cabe a ela assumir a responsabilidade pelas tarefas domésticas e pelos filhos.

- Eu quero que minha filha se entenda no mundo tendo a liberdade de escolher, não se enquadrando dentro de padrões impostos pela sociedade. A começar pelos brinquedos. Dou a ela aqueles que podem desenvolver suas habilidades no geral, como os bloquinhos de montar - conta a servidora pública Marianna Ribeiro Charret, de 29 anos, mãe de Amora Luna, de um ano e oito meses.

Na festa de aniversário de um ano da filha, Marianna sugeriu aos convidados que a presenteassem com livros e brinquedos de madeira, evitando os cor-de-rosa. Em casa, Amora brinca com itens da cozinha reais enquanto observa a mãe cozinhar.

- Eu dou panela de verdade para ela. No período em que engatinhava, a vestia com calças porque facilita os movimentos. Como demorei a colocar brincos na Amora e nunca a vesti com roupas cor-de-rosa, era comum que Amora fosse confundida com um menino. O universo infantil é cheio de estereótipos - diz Marianna.

A desconstrução desses papéis encontra no preconceito uma enorme barreira, ressalta a assistente social e especialista em direitos sociais pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Antonia Camila de Oliveira Ramalho:

- Muitos pais acham que os brinquedos podem influenciar a orientação sexual dos filhos. Mas ninguém constrói a identidade sexual por meio deles. Isso é mito. É preciso desconstruir os preconceitos através da educação, que deve ser estendida a outros espaços sociais, como a escola e a igreja.

Cruzar essa fronteira é mais complicado para os meninos, observa a pedagoga e especialista em educação infantil da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Lilian Moreira Cruz:

-  O garoto é reprimido se pede uma boneca para o pai porque há o temor que assim ele se torne gay, como se isso fosse possível. Já uma menina com um carrinho na mão não é motivo de espanto. Os brinquedos podem ser um instrumento de opressão.

Em 2017, Antonia Camila reuniu uma turma de crianças de 4 a 6 anos para observar suas escolhas. Justamente por conta dessa repressão social, ela conta, poucos meninos escolheram brinquedos não considerados adequados para eles:

- Os meninos que tentaram buscar brinquedos de meninas eram chamados de "bichas" pelos outros. São crianças que não nasceram com esse tipo de comportamento. Elas reproduzem a educação que receberam e, muitas vezes, a religião pode ter influência nisso. De qualquer maneira, a educação de base precisa constituir valores e princípios igualitários. Mas essa mudança não acontece do dia para a noite, porque o patriarcado é um sistema difícil de ser quebrado - explica Antonia Camila.

Brinquedos sem gênero

Nas lojas, encontrar brinquedos que desconstruam a segmentação por gênero não é tarefa fácil. A começar pela disposição nas prateleiras.

- O vendedor já pergunta de cara: "É para menino ou menina?". Há corredores específicos para cada um. No das meninas, a cor rosa predomina - afirma Marianna.

O número de lançamentos de brinquedos sem gênero ainda é tímido no Brasil. O presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), Synésio Batista da Costa, conta que eles vêm sendo produzidos desde 2013, mas que a indústria trabalha sob demanda:

- A indústria não tem a intenção de entrar nesse debate. Atendemos às demandas. Já temos muitos itens que não destacam se é para menina ou menino, da cozinha à bola. Agora, para a minha tristeza, não são os que mais vendem. Pais e avós ainda entram na loja buscando produtos específicos para meninos e meninas. A sociedade ainda não evoluiu a ponto de associar a questão da igualdade de gênero aos brinquedos - diz o presidente da Abrinq.

A empresa gaúcha Xalingo, de Santa Cruz do Sul, é pioneira no desenvolvimento de brinquedos sem gênero no país. Em 1960, o bloco de montar da linha "Brincando de Engenheiro", um dos itens mais tradicionais da marca, já trazia um menino e uma menina estampados na embalagem. Mas foi em 2014 que a empresa lançou uma linha de produtos sem gênero, com carimbos, blocos e itens de cozinha, entre outros. O fogão, que historicamente era cor-de-rosa, ganhou tons neutros. Na embalagem, meninos e meninas aparecem juntos brincando de cozinhar.

A cozinha, aliás, tem sido uma atividade importante na quebra de estereótipos de gênero. Segundo analistas do varejo, a proliferação de programas de TV sobre culinária, principalmente os que promovem competições, foram determinantes para essa mudança de comportamento.

Nos EUA, uma das maiores e mais antigas varejistas do país, a Target, desde 2015 não separa os brinquedos por gênero em suas lojas físicas. No site da rede é possível filtrar a busca por brinquedos de meninos, meninas ou “neutro”. No Reino Unido, a campanha Let Toys Be Toys (Deixem os brinquedos serem brinquedos, em tradução livre), criada no início desta década, influenciou redes varejistas a mudarem a organização das prateleiras de suas seções infantis. Saíram as divisões por gênero e entraram categorias de brinquedos como “bonecas”, “aventura” e “ciência”.

E então, todos para a cozinha?