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Celina

Na França, uma nova geração de pensadores negros debate o racismo e o ideal dos direitos universais

O assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis ressaltou uma nova forma de encarar as raças no discurso público da França, onde as discussões raciais e religiosas tradicionalmente são silenciadas, substituídas pelo enaltecimento do ideal igualitário de que todas as pessoas compartilham dos mesmos direitos universais
Binetou Sylla (esq.) e Rhoda Tchokokam, co-autoras de “Le Dérangeur,” um livro sobre a questão racial na França, em um estúdio de rádio em Paris Foto: Andrea Mantovani / NYT
Binetou Sylla (esq.) e Rhoda Tchokokam, co-autoras de “Le Dérangeur,” um livro sobre a questão racial na França, em um estúdio de rádio em Paris Foto: Andrea Mantovani / NYT

Paris – Criada na França, Maboula Soumahoro nunca pensou em si mesma como negra. Em casa, seus pais faziam questão de destacar a cultura dos diúlas, um grupo étnico muçulmano da Costa do Marfim, na África Ocidental; para as outras crianças do bairro que, como ela, eram filhas de imigrantes africanos, identificava-se como marfinense.

Ela conta que foi só na adolescência – anos depois de descobrir Whitney Houston, Michael Jackson, "The Cosby Show" e o hip-hop, que a faziam "sonhar em ser tão descolada quanto os negros norte-americanos" – que começou a sentir uma afinidade racial com os amigos.

"Éramos todos filhos de imigrantes de Guadalupe, da Martinica, de várias regiões da África e, ao mesmo tempo, um pouco diferentes dos nossos pais, porque também éramos franceses de um jeito único, sem sermos brancos. Em casa era diferente, mas, apesar disso, nos identificamos uns aos outros; é assim que você se torna negro", explica Soumahoro, hoje com 44 anos, especialista em raças que morou nos EUA durante uma década.

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Além de estimular debates acirrados sobre racismo, o assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis ressaltou uma nova forma de encarar as raças no discurso público da França, nação onde as discussões raciais e religiosas tradicionalmente são silenciadas, substituídas pelo enaltecimento do ideal igualitário de que todas as pessoas compartilham dos mesmos direitos universais.

Esse ideal não corresponde à realidade, principalmente porque a sociedade francesa se tornou mais diversa e a discriminação permanece arraigada, levando muita gente a questionar se o modelo universalista já se esgotou.

Atualmente, ele está sendo contestado, talvez com mais agressividade, pelos negros franceses que passaram por um despertar racial nas últimas décadas – ajudados pela cultura pop dos EUA, seus pensadores e até seus diplomatas sediados em Paris, que identificaram e estimularam os líderes jovens há uma década.

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Os oponentes, brancos e negros, veem o desafio à tradição universalista como parte de uma "norte-americanização" mais ampla da sociedade francesa – e, segundo eles, pode fragmentar o país, pois representa uma ameaça muito mais séria aos princípios básicos da república moderna do que as reclamações já conhecidas sobre a invasão do McDonald's e/ou as megaproduções de Hollywood.

Mesmo os negros franceses que se inspiram nos EUA também consideram aquela sociedade extremamente deficiente e violentamente racista. Na França, as pessoas de diferentes origens se misturam muito mais livremente, e, embora as pessoas de cor ocupem menos posições de destaque/liderança do que em terras norte-americanas, elas têm, como todos os cidadãos gauleses, acesso à educação, à saúde pública e a outros serviços.

"Quando analiso os dois países, não estou dizendo que um é melhor que o outro. Para mim, são duas sociedades racistas que lidam com o problema de formas diferentes", declara Soumahoro, que já lecionou estudos afro-americanos na Universidade Columbia e hoje ensina na Université de Tours.

A maioria dos novos pensadores da questão racial da França é de filhos de imigrantes do antigo império colonial. Criados em famílias com forte consciência de sua identidade étnica diferente, aos poucos começaram a desenvolver um senso comum de consciência racial nos bairros e nas escolas a que pertenciam.

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Pap Ndiaye – historiador que liderou a iniciativa de estabelecimento dos estudos negros como disciplina acadêmica na França com a publicação, em 2008, do livro "La Condition Noire", ou "A Condição Negra" – diz que só se conscientizou de sua raça depois de estudar nos EUA, nos anos 90.

"É uma experiência por que passa todo negro francês que vai para os EUA, um mergulho em uma nação onde se exerce uma reflexão profunda sobre a cor da pele. Ela não fica escondida atrás de um discurso de não distinção de cor", diz Ndiaye, de 54 anos, que leciona no Sciences Po (Instituto de Estudos Políticos de Paris).

Filho de pai senegalês e mãe francesa, no contexto francês ele é considerado "métis", ou mestiço, embora se identifique como negro.

Sua visão de mundo e de si mesmo é um desafio radical ao Estado francês. Baseado no Iluminismo e na Revolução, o universalismo da França há tempos afirma que toda pessoa goza de direitos fundamentais como igualdade e liberdade. Ao defender a crença de que nenhum grupo deve ser considerado preferencial, mantém a ilegalidade da coleta de dados sobre raça para o censo e para quase todos os outros propósitos oficiais.

Só que o tratamento desigual da mulher francesa e das pessoas de cor de suas colônias desmentem esse conceito.

"A universalidade podia até funcionar quando não havia muitos imigrantes ou quando eles eram católicos brancos. Com o Islã de um lado e os negros africanos do outro, é evidente que o tal modelo já deu o que tinha para dar. Assim, o debate reside no fato de que de um lado temos esse ideal tão belo, mas do outro é preciso dizer que ele não funciona", escancara Gérard Araud, ex-embaixador da França nos EUA.

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Para Tania de Montaigne, autora francesa que escreve sobre raça, o negro francês se integrará completamente só por meio do Estado de direito e da cidadania. "Enfatizar a identidade racial só os confirmará como eternos excluídos em uma sociedade em que a vasta maioria aspira ao universalismo sem distinção de cor."

"Dizem que há alguma coisa, independentemente de onde você esteja, da língua que fale, da história que tenha, que preserva a natureza negra – mas é exatamente assim que acaba sendo impossível se tornar um cidadão. Sempre vai haver alguma coisa em mim que jamais se encaixará na sociedade", afirma de Montaigne, de 44 anos, cujos pais imigraram da Martinica e da República Democrática do Congo.

Para os jovens negros, a conscientização de raça se desenvolveu em parte como consequência da iniciativa das gerações mais velhas. Binetou Sylla, de 31 anos, coautora de "Le Dérangeur", livro sobre a condição racial na França, afirma se lembrar perfeitamente de comprar a primeira edição de "A Condição Negra", de Ndiaye, que ajudou a estabelecer os estudos negros na França, e "devorá-lo".

Outra coautora, Rhoda Tchokokam, de 29 anos, foi criada na República dos Camarões, tendo imigrado para a França aos 17 anos. Embora sua conscientização racial tenha surgido em terras francesas, evoluiu nos EUA, onde ela estudou durante dois anos, assistiu a todos os filmes de Spike Lee e descobriu as obras de Toni Morrison e de feministas negras como Angela Davis e Audre Lorde.

"Quando comecei a conhecer outros negros na França, passei a ampliar um pouco minhas perspectivas. Ainda não me considerava negra porque esse é um longo processo, mas hoje me vejo assim, pelo menos no âmbito político. Na época, eu estava começando a me conscientizar e, quando cheguei aos EUA, pude colocar tudo em palavras", conclui Tchokokam.